quarta-feira, 27 de junho de 2012

Jornada da Alma: saúde e abismos mentais em tela

Já ouviu falar em Sabina Spielrein? Pois então, o seu papel ainda está por ser devidamente realçado na psicanálise, e nomeadamente no trabalho de Jung. Judia russa, viveu, ela própria, os abismos do imprevisto espírito humano, tendo indo parar num hospital em Zurique onde trabalhava o jovem Jung. Posteriormente, graduou-se com um trabalho sobre um caso de esquizofrenia. Foi assassinada, junto com as suas filhas, pelos nazistas.Um pouco da história de Sabina está num filme do cineasta italiano Roberto Faenza, denominado Jornada da Alma.  A seguir, uma resenha do mesmo. 


Capa do DVD Jornada da Alma 

Por Rocio Novaes

A história de Sabina Spielrein vista através da lente do cineasta italiano Roberto Faenza (“Página da Revolução”), me surpreendeu por levantar inúmeras questões para além do tema central que aborda a paixão entre ela e Carl Gustav Jung, seu psiquiatra.

Em 1904, Sabina é levada por seus pais para o Hospital Psiquiátrico de Burghölzli, em Zurique, onde Jung, recém nomeado primeiro assistente do Dr. Eugene Bleuler, faz seus primeiros experimentos com o método de associação de palavras e repudia veementemente os procedimentos arcaicos da psiquiatria. Sabina viria a ser uma das primeiras pacientes submetidas à nova técnica que hoje conhecemos como associação livre. Portanto, para Jung, que ainda era discípulo de Freud, a cura desta paciente, cujo diagnóstico era histeria, implicava não apenas em seu reconhecimento profissional, mas também na possibilidade de superar os tão desumanos tratamentos a que eram submetidos os pacientes psiquiátricos.

Por outro lado, Sabina, ao pressentir em Jung a possibilidade de ser compreendida e amada, passa, após um período de total negação, a aceitar o tratamento.

O encontro de Sabina e Jung perpetua a incógnita da transferência e contra-transferência e sua significativa importância no processo de cura, sempre presente nas discussões em psicanálise. Neste caso, tal incógnita é levada ao extremo e uma avassaladora paixão rompe resistências, apesar dos riscos que representa para ambos. Sabina sabe do casamento de Jung, que sabe das implicações éticas de um romance entre um médico e sua paciente.

Vale apontar que as exigências de “neutralidade” e de “impessoalidade” impostas ao analista e tidas como pressupostos para sua eficácia na interpretação da transferência, atravessa a história da psicanálise, mas atualmente começa a ser questionada, embora timidamente.

A necessidade e/ou opção de Jung pela renúncia à sua paixão e seu pedido, ou imposição, pois beira mesmo a uma certa chantagem, para que a amante seja amiga de sua esposa, remete Sabina à busca de si mesma.


Não é por acaso que estuda medicina, se especializa em psicanálise, e troca correspondências com Freud: interditado, o objeto do desejo sobrevive, através da identificação.

Há uma cena muito significativa  em que  Sabina, ainda internada, (sua alta do hospital ocorre em 1905, após quase um ano de tratamento), reage com uma tentativa de suicídio  ao sentir-se traída por Jung que se ausenta por alguns dias. No retorno deste, ela lhe mostra seu testamento, segundo o qual sua cabeça é oferecida a Jung, para que a disseque e a estude. Em agradecimento, ele lhe presenteia com um seixo que representa sua alma.

A impossibilidade de metáfora de Sabina em um surto de psicose histérica, representada por esta doação, no real, de parte de seu corpo, contrasta com a total simbologia que Jung atribui ao seixo.

Por outro lado, Sabina precipita em Jung sua decisão de rompimento, quando lhe pede um filho, ou quem sabe, permissão para a maternidade, uma vez que sua crença de que seria incapaz para ser mãe estaria no âmago de sua estrutura histérica, pois  impossibilitaria a realização de seu imenso desejo de procriação, localizado no enredo de forma sensível ao focalizá-la em sua obsessão em modelar gatinhos em argila.


Mas, ao contrário do previsível: não suportar o rompimento e desestruturar-se, a ex paciente, e ex amante de Jung, além de tornar-se mãe, dedica-se à psicanálise de crianças e dirige uma famosa escola soviética, conhecida como Escola Branca ou Creche Branca.

A partir da separação dos amantes, é o contexto histórico-social em que os personagens estão inseridos que parece servir de bússola ao roteiro, aliás, polifônico: constam na ficha técnica seis roteiristas. Mas a regência de Roberto Faenza dá o tom deliciosamente melodramático em, pelo menos, dois momentos: na cena em que Sabina reúne os pacientes no sanatório para um baile improvisado ao som do piano, demonstrando toda sua vivacidade e contagiando os demais, o que sinaliza sua saída do estado psicótico; e naquela em que um senhor russo narra a história de um menino apático e solitário, que mantinha os dedos entrelaçados e recusava qualquer contato. Através de flashback, recurso talvez banal, mas eficaz, vamos sabendo como a diretora da Escola Branca logrou, após inúmeras tentativas, desatar os dedos desta criança e provocar seu sorriso. O menino era o próprio narrador.

Costurado por uma situação contemporânea em que um historiador e uma suposta descendente de Sabina Spielrein se unem por, em última análise, estarem interessados na pesquisa de um mesmo tema, o enredo pode, para alguns, incomodar por sua fragmentação. No entanto, parece-me absolutamente coerente com o destino de Sabina, que aderiu à revolução russa para depois ter que enfrentar Stálin, e acaba sendo executada por soldados nazistas (era judia), junto com suas duas filhas, em uma sinagoga de Rostov, sua cidade de origem.

Por fim, parte de seu diário, e não seu diário completo, é encontrado na década de setenta e é a partir dele que a dupla de pesquisadores nos guia nesta jornada para a alma de uma mulher que, ao percorrer o caminho da loucura, encontra sua própria capacidade de promover a cura, a sua e a de outros.

Aplausos para Andréa Guerra, responsável pela música do filme e para Emília Fox (“O Pianista”) no papel da protagonista.
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