Nos últimos tempos, ciências como história, sociologia e antropologia
têm, com freqüência, tomado a saúde como objeto de estudo, contribuindo, por
exemplo, para superar os enfoques estritamente biomédicos. Como parte disso, a
educação em saúde tem surgido como uma temática central nas abordagens
históricas, sociológicas e antropológicas. Este é o norte do artigo abaixo, que escrevi quando ainda trabalhava na UFPE, e foi publicado na Revista Espaço Acadêmico (nº 114 - http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/viewFile/10350/6250).
Ivonaldo Leite
O profissional da saúde e a educação:
novas configurações
Nas
sociedades contemporâneas, a realização de cuidados de saúde constitui um campo
de práticas sociais, profissionais e formativas em plena expansão e
diversificação (Canário, 2003), isto tanto por conta de razões demográficas e
sociais como também políticas. Como assinala Canário (ibidem, p. 119), “a ênfase colocada na
promoção da saúde, alargando o conteúdo deste conceito e articulando-o com
contextos sociais e ambientais (em vez de um acento tônico na ‘cura de
doenças’), corresponde a uma nova visão paradigmática”, a qual tem conduzido,
nos últimos tempos, a uma reformulação do papel atribuído às instituições e aos
sujeitos responsáveis pelos serviços de saúde.
Nesse
sentido, ocorre de forma similar em outras esferas da atividade social e
profissional, como no caso do campo da pedagogia, onde tem emergido como
atributo a atuação não só nos espaços formais, na escola, mas também nos
contextos educativos não-formais, isto é, fora da escola, no âmbito, por
exemplo, das ONGs, movimentos sociais, empresas, etc. De igual modo, o campo da
saúde tem passado por significativas reconfigurações, seja por decorrência das
mudanças paradigmáticas que lhe perpassam, seja, ainda, em decorrência de
fenômenos como a revolução tecnológica e informacional. Dessa maneira, a formação emerge como um
instrumento imprescindível em função de, pelo menos, dois propósitos: compreender
os novos cenários das sociedades contemporâneas e levar a cabo as ações
específicas, próprias do métier dos
profissionais de saúde.
Em
países europeus, como Portugal (mais adiante, veremos o Brasil), a importância
atribuída à formação em saúde tem dado expressão a três grandes tendências,
cujos contornos revelam o grau de processualidade que a questão formativa
adquire nos dias de hoje.
A
primeira tendência diz respeito ao
desenvolvimento e a expansão quantitativa da oferta de formação contínua,
dirigida aos profissionais de saúde, sobretudo aos enfermeiros. Tendo em conta
designadamente o caso português, pode ser realçado, por exemplo, o Programa ProSalus,
responsável pela efetivação de ações de formação a partir de uma perspectiva
marcadamente inovadora, qual seja, a adoção de guias teórico-metodológicos
referenciados em temas como “histórias de vida, formação-ação, formação
multiprofissional, formação e desenvolvimento organizacional” (ibidem, p. 120).
A
segunda tendência refere-se a uma
espécie de re-arrumação da hierarquia profissional no campo da saúde. Ou seja,
como afirma Canário (2003, p. 120):
Corresponde
a um processo de enriquecimento, diversificação e complexificação de uma
“paisagem” profissional tradicionalmente polarizada no médico e na enfermeira,
mas tendo como referência tutelar o ideal tipo da profissão médica, marcada
pela tenacidade e pela cientificidade, consubstanciando-se no que é geralmente
designado por “modelo biomédico. Esta reconfiguração dos territórios
profissionais da saúde corresponde a uma reformulação no interior das
profissões clássicas, com a emergência ou revalorização de determinados ramos
especializados (é o caso do clínico geral ou do enfermeiro de saúde pública).
Trata-se
de um movimento que se desenvolve numa dupla direção: por um lado, faz surgir
novos espaços de atuação profissional e novas especialidades, delineando um
quadro que, mutatis mutandis, a
título de exemplo, lembra, no caso brasileiro, a configuração da esfera de
atuação do profissional de saúde coletiva. Por outro lado, o movimento incide
sobre um horizonte teórico-prático que questiona a tendência de
hiperespecialização científico-disciplinar, cuja base é uma abordagem
fragmentada da saúde humana, tendente a transformar cada pessoa “numa
quadrícula sem sentido” (Santos, 1987, p. 46).
Quanto
à terceira tendência, ela concerne à
articulação entre a formação – sobretudo, a formação inicial – e os processos
de construção, reconstrução ou afirmação identitária dos grupos profissionais
não-médicos. Esta tendência, por outra parte, tem sido responsável pelo
surgimento de uma esfera no ensino superior português que, ocupando-se do campo
da saúde, tem as suas funções voltadas às questões da formação inicial e
contínua, da pesquisa e da intervenção nas comunidades locais. Isto tanto no
âmbito das faculdades de medicina como nas de educação, sendo um exemplo neste
último caso a Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade
de Lisboa, pioneira na institucionalização da pós-graduação orientada
especificamente para a qualificação de grupos multiprofissionais em saúde.
No
caso brasileiro, dentre os aspectos que têm marcado a relação entre educação e
saúde, podem ser referidos três elementos.
O
primeiro é de natureza sócio-histórica. Isto é, no Brasil, o realce no tema
educação e saúde é algo já com uma longa tradição. De acordo com Melo (1987), entre
as décadas de 1950 e 1960, houve um período áureo da educação sanitária no
Brasil, a qual integrava, de forma interligada, educação e saúde nas políticas
oficiais. Daí resultou, por exemplo, a instituição de escolas maternais, creches
e parques infantis. Por outro lado, todavia, tal movimento era decorrente de
uma ideologia modernizante levada a efeito pela burguesia industrial, que,
assim, estruturou uma pedagogia da saúde que tinha como propósito remover (sem
diálogo) obstáculos culturais e psicossociais, no seio das comunidades, diante
das políticas oficiais de saúde (Canesqui, 1984). Esse cenário começa a se
alterar a partir da década de 1970, quando, sob a influência da pedagogia de
Paulo Freire, emergem os movimentos de educação popular em saúde (ibibem).
Foram movimentos que, “comprometidos com as necessidades e possibilidades das
classes populares, encaminharam uma nova articulação entre a educação e a
saúde, onde, em paralelo à causalidade biológica, são consideradas as dimensões
de vida e trabalho como fatores predisponentes centrais” (Mohr e Schall, 1992,
p. 200).
O
segundo elemento é temporalmente mais recente. Diz respeito à formulação, pelo
Ministério da Educação, das diretrizes curriculares para os cursos da área de
saúde. Com base na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996, que
assegura ao ensino superior uma maior flexibilidade na organização curricular
dos cursos, a ideia de currículo mínimo de cada curso foi substituída pelas
chamadas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs). Elas definem, de modo geral,
o perfil dos profissionais de cada área, o conjunto de competências e o rol de
conteúdos a serem ministrados.
No
caso dos cursos da área de saúde, as DCNs “vieram ao encontro das necessidades
do Sistema Único de Sáude (SUS), estruturado a partir de uma ampla rede de
atenção relacionando-se com serviços de outros graus de complexidade” (Almeida
et. al, p. 157). Daí emergiu a demanda por profissionais com uma formação que
compreenda a integralidade dos cuidados requeridos pela população. Assim, “as DCNs propõem um perfil profissional
com boa formação geral, humanista, crítico e reflexivo” (ibidem, p. 157). Como
consequência, no que se refere ao curso de medicina, em 2003, foi lançando o
Programa Nacional de Incentivo às Mudanças Curriculares para as Escolas
Médicas, através de portaria interministerial do Ministério da Educação e do
Ministério da Saúde. O Programa foi formulado tendo como propósito reorientar a
formação médica, prevendo iniciativas como a celebração de protocolos entre os
gestores do Sistema Único de Saúde e as escolas médicas; a inserção do médico
no processo social com vistas à prevenção de doenças; e a adoção de
metodologias pedagógicas ativas no processo no processo de formação, que
permitam interação com a realidade social.
O
terceiro elemento que tem marcado a relação educação e saúde no Brasil,
conforme a nossa abordagem, concerne à Educação
Permanente. Ela tem inspirado e norteado fortemente as ações pedagógicas no
campo da saúde nos dias presentes. Conforme Ceccim (2005, p. 162):
A
Educação Permanente em Saúde pode corresponder à Educação em Serviço, quando
esta coloca a pertinência dos conteúdos, instrumentos e recursos para a
formação técnica submetidos a um projeto de mudanças institucionais ou de
mudança de orientação política das ações prestadas em dado tempo e lugar. Pode
corresponder à educação continuada, quando esta pertence à construção objetiva
de quadros institucionais e à investidura de carreiras por serviço em tempo e
lugar específicos. Pode, também, corresponder à Educação Formal de
Profissionais, quando esta se apresenta amplamente porosa às multiplicidades da
realidade de vivências profissionais e coloca-se em aliança de projetos
integrados entre o setor/mundo do trabalho e o setor/mundo do ensino.
Por
outro lado, indo mais às raízes do conceito de Educação Permanente em Saúde, é
de se registrar que há quem o veja como um desdobramento da Educação Popular,
designadamente tendo como aporte a obra de Paulo Freire, e há quem o compreenda
como um desdobramento do Movimento Institucionalista em Educação, onde são
figuras de relevo os franceses René Lourau e George Lapassade, os quais
propuseram alterar a noção de recursos humanos, oriunda da Administração e
depois da Psicologia Organizacional – como o elemento humano nas organizações
-, para a noção de coletivos de produção. No centro desta perspectiva, estão as
categorias auto-análise e auto-gestão. Seja como for, cabe razão a
Ceccim (ibiem, p. 162), quando ele afirma que:
Aquilo
que deve ser central à Educação Permanente em Saúde é sua porosidade à
realidade mutável e mutante das ações e dos serviços de saúde; é sua ligação
política com a formação de perfis profissionais e de serviços, a introdução de
mecanismos, espaços e temas que geram auto-análise, autogestão, implicação,
mudança institucional, enfim, pensamento (disruptura com instituídos, fórmulas
ou modelos) e experimentação.
Pesquisa e saúde: a formação
profissional em pauta
Contrariando
uma determinada tradição acadêmica que tende a limitar, no campo da saúde, a
investigação às dimensões manipuláveis deste, isto é, aos “objetos
experimentais” sobre os quais ele incide, donde o trabalho em laboratório é uma
das suas principais expressões, tem-se registrado internacionalmente, nos
últimos tempos, o desenvolvimento de um conjunto de investigações voltado à
prática e ao processo de formação dos profissionais da área. Dentre os temas
que têm sido focados, podem ser referidos a formação inicial, o condicionamento
das práticas profissionais pela dimensão organizacional e a autoformação.
No
que toca à formação inicial,
atendo-nos aqui ao caso dos enfermeiros, tem sido posto em evidência a relativa
“ineficácia” da formação inicial, destacando-se a dificuldade de realização do transfert das aprendizagens oriundas da
situação de formação para situações reais de trabalho. Tendo em conta a pesquisa que conduziu, no
contexto lusitano, Costa (1994, p. 221) assinala que os enfermeiros das
unidades de saúde estudadas tendem a indicar uma relação negativa entre o que
foi a formação inicial e a experiência, mesmo durante a formação em cuidado com
idosos. De forma similar, mas de modo mais direto, Palmeiro (1995, p. 182)
afirma que os enfermeiros objeto de seu estudo têm “uma posição quase unânime
no que se refere à insuficiência e inadequação da formação inicial, face às
realidades com que se confrontam no contexto de trabalho”.
Carraça
(1994, p. 204), por sua vez, a partir de um estudo de caso com médicos
portugueses, enfatiza o seguinte:
As
percepções dos inquiridos sobre a formação inicial, ao nível da faculdade e ao
nível do internato em geral, tendem a polarizar-se negativamente em termos de
adequação às necessidades da prática. A faculdade recolhe referências mais
negativas, surgindo respostas de formação ‘totalmente inadequadas’.
Tanto
no caso dos enfermeiros como no dos médicos, a ilação que desde logo se retira
é que há um “desajustamento” entre o que foi “ensinado” e “treinado” na
formação inicial e as práticas profissionais observáveis nos contextos de trabalho.
Contudo, coloca-se como necessário problematizar o significado desse “desajustamento”.
Antes
de tudo, o “desajustamento” entre a formação inicial e a ação nos contextos de
trabalho só é entendido como ineficaz em decorrência do fato de a matriz
conceitual que, tradicionalmente, se tem como referência nos processos de
formação, conceber a prática profissional como um momento de “aplicação”
caracterizado pela previsibilidade. Nesta perspectiva, uma formação inicial
“pouco eficaz” é possível de ser “corrigida” com uma adição de racionalidade
técnica e de cientificidade. Ignora-se, assim, as particularidades da distinção
entre as duas situações (de formação e de trabalho). Como destaca Canário
(2003, p. 138):
A ação
profissional tem lugar em contextos sociais, marcados pela singularidade e
incerteza, em que se cruzam as prescrições hierárquicas, a procura social e os
interesses dos próprios profissionais. É por esta razão que a sociologia do
trabalho tem, sistematicamente, posto em evidência a distância que separa o
trabalho prescrito do trabalho real. Por outro lado, a aquisição de um conjunto
de saberes, a interiorização de um conjunto de valores e o domínio de um
conjunto de gestos técnicos não constituem pré-requisitos susceptíveis de uma
transferabilidade linear, determinando a ação profissional.
Tendo
isso em consideração, pode-se então fazer uma diferenciação entre qualificação e competência. Quer dizer, importa ter em conta que os saberes
prévios ao exercício profissional não são uma garantia de competência, pois a
produção de competências corresponde a um processo multidimensional,
simultaneamente individual e coletivo, sempre contingente, o que significa
dizer dependente de um determinado contexto e de um determinado projeto de
ação. Ou seja, o conceito de competência diz respeito a “saber encontrar e pôr
em prática eficazmente as respostas apropriadas ao contexto na realização do
projeto” (Reinbold e Breillot, 1993, p. 15), sendo o mesmo dizer, como em Morin
(1990), que elas são propriedades globais resultantes da reorganização e do
acréscimo de complexidade do cérebro. Portanto, pode-se “armazenar”
informações, mas não competências.
Relativamente
ao condicionamento das práticas
profissionais pela dimensão organizacional, Palmeiro (1995, p. 179) é
incisivo:
A
parcelarização do trabalho por tarefas tende a desenvolver comportamentos de
isolamento, dificultando a própria cooperação e partilha de experiências,
diminuindo em simultâneo a responsabilização do enfermeiro pelos cuidados que
presta. A tentativa de “trabalho em equipe” frustra-se, à partida, por
problemas logísticos, é um fato, mas também por problemas de dependência e de
comunicação interprofissional.
Trata-se,
ao fim e ao cabo, de uma discrepância entre, de uma parte, as diretrizes
contemporâneas do campo da saúde e o funcionamento efetivo dos seus serviços.
Essa discrepância não tem significação meramente conjuntural, como um fato com
consequências meramente momentâneas, mas, sim, se inscreve num quadro
estrutural que mantém um modelo de prática médica centrada na instituição, na
doença e na consulta.
Denominando
tal modelo como “modelo da caixa”, e tendo em atenção designadamente o trabalho
em centros de saúde, Canário enfatiza que ele “é concomitante e favorece o
modelo biomédico como [única] referência estruturante das práticas
profissionais dos médicos que são ‘convidados’ pela situação a ‘refugiar-se’ no
território da consulta individual”. Essa situação, por outro lado, não é
dissociável do estilo de gestão
adotado nos serviços de saúde, que, por vezes, limita a capacidade de
interlocução das unidades de atendimento com os contextos sociais onde elas
estão situadas.
Last but not least, a autoformação. Ela
aparece como sendo marcada por uma dupla dimensão. Por uma parte, refere-se às
decisões individuais dos profissionais em relação ao seu aperfeiçoamento
formativo, seja buscando cursos de qualificação, seja realizando aquisição
bibliográfica e fazendo leituras a respeito do campo de atuação. Por outra
parte, a autoformação concerne às aprendizagens decorrentes dos contextos/processos
de trabalho, isto é, da prática. Esta é uma via experiencial de aprendizagem
que coloca em primeiro plano a importância de uma reflexão sistemática e
deliberada das práticas realizadas nos contextos
de trabalho.
Quer
numa dimensão, quer noutra, tem-se que os processos formativos correspondem,
fundamentalmente, a processos autoformativos no sentido em que cada um gerencia
e se apropria de “um conjunto de situações por que passou, realizando um
trabalho, sobre si próprio, de autoconstrução, como pessoa e como profissional”
(Canário, 2003, p. 141-2).
Nota metodológica sobre a construção do
artigo
Ao
nos aproximarmos da conclusão deste trabalho, cabe uma nota explicativa
relativa a métodos e materiais a partir dos quais ele foi construído. Escrito
no âmbito de um projeto de pesquisa que busca apreender as principais
abordagens das ciências sociais/humanas voltadas ao campo da saúde, o presente
artigo, metodologicamente, foi produzido sob os aportes de uma revisão
bibliográfica, a qual relacionou livros, artigos e trabalhos de pós-graduação.
Realizou-se uma leitura desse material tendo-se como guia de análise unidades
de inferência, isto é, unidades temáticas por via das quais foram apreendidos os
enfoques do material concernentes à relação educação e saúde. Tratou-se, como
se percebe, de um procedimento que combina análise de discurso e análise de
conteúdo, sem necessariamente recorrer, neste último caso, à quantificação
estatística. Para o acesso à bibliografia referente a Portugal e a realização
da análise da situação lusitana no tocante à relação educação e saúde, foi de
grande valia uma estadia realizada pela autoria do artigo nesse país.
À guisa de conclusão
Da
abordagem aqui desenvolvida, realizando uma incursão pela bibliografia
revisada, é possível, da nossa parte, apresentar um quadro conclusivo que,
estruturado por dois pressupostos analíticos que delineamos, evidencia a
importância da contribuição acadêmica das ciências humanas nos processos de
formação sem saúde.
O
primeiro pressuposto analítico refere-se ao significado do que se entende por
formação. Diferente do que tradicionalmente se entende, é necessário realçar
que a outorga de um diploma, na formação inicial, representa a autorização
jurídico-cognitiva e política para o exercício de uma profissão, mas não
necessariamente a concessão de todo o repertório de competências para o
exercício da mesma, e menos ainda a chancela da identidade que caracterizará as
práticas profissionais do outorgado.
Daí
advém o segundo pressuposto. Ele diz respeito ao fato de que, tanto em saúde
como outras áreas, a constituição das competências é indissociável do processo
de socialização profissional. Quer isto dizer que os contextos de trabalho são
também espaços de formação, que eles fornecem subsídios imprescindíveis à
constituição das competências e influenciam fortemente o jeito de ser do profissional, ou seja, são indutores da definição
da identidade profissional.
Assim
sendo, poder-se-á dizer que a questão da mudança das práticas profissionais em
saúde (na sua dimensão individual e coletiva) requer atenção à questão da
socialização profissional, tendo-se então que a efetiva produção de mudanças
coincide, nos contextos de trabalho, com uma dinâmica formativa e de construção
identitária que demanda novas (e alternativas) formas de atuação profissional.
Ora,
se considerarmos que temáticas como socialização, relações humanas, mudança
social, subjetividade, processo de formação, etc. são par excellence temáticas das ciências sociais/humanas, é forçoso
enfatizar que um dos imperativos do novo de atuação dos profissionais da área
de saúde demanda que sejam assimilados os contributos das referidas ciências. São
contributos que, ressalte-se, não se restringem apenas à esfera da relação
entre a educação e o campo da saúde, mas incidem sobre os objetos específicos
deste campo, aportando novas concepções. Neste sentido, há de se referir, por
exemplo, as formulações das ciências sociais/humanas em torno de questões como:
1)
biomedicalizção, biosociabilidade e biopoder; 2) a “velha” e “nova” saúde
pública; 3) o público e o privado; 4) ação coletiva e participação; 5) saúde e
direitos humanos.
Enfim, trata-se de entender que a distinção entre
ciências naturais e ciências sociais/humanas deixou de ter sentido. Essa
distinção assenta numa concepção mecanicista da matéria e da natureza à que
contrapõe os conceitos de ser humano, cultura e sociedade. Porém, com os
avanços recentes em ciências como física e biologia, tal distinção deixou de
ter sentido tanto no plano lógico como empírico, na medida em que se põe em
causa, por exemplo, as dicotomias sobre as quais a ciência moderno-positivista
se ergueu.
Importa, portanto, ter presente nos serviços de
saúde que as atribuições a serem exercitadas em seu âmbito requerem que o ser
humano seja compreendido em toda a sua integralidade, e não apenas a partir do
enfoque de uma área científica específica, que, assim sendo, será sempre um
enfoque parcial e, como tal, incapaz de apreender o significado das situações
em consideração. Isto é, tendo em conta que o ser humano é síntese de muitas
determinações, é imperativo que o profissional de saúde o compreenda em sua
complexidade, nos processos de formação, construindo então um conhecimento
profissional cuja pertinência é validada pelo compromisso com a promoção da
vida em todas as suas dimensões.
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