segunda-feira, 16 de abril de 2012

A Vida é Breve ou a Tragédia de Flora Emília

A história é conhecida. Vita brevis, isto é, 'A Vida é Breve',  é uma publicação do Codex Floriae, encontrado em Buenos Aires por Jostien Gaarden - uma carta de Flora Emília, mulher com quem Aurélio Augusto, ou melhor, Santo Agsotinho, partilhou os prazeres carnais de uma vida amorosa, donde resultou um filhou (Adeodato).  Ocorre que, à dada altura, o ainda Aurélio, em constantes estados de desespero, de instabilidade espiritual,  sentiu-se chamado pela introspecção, pelo distanciamento da 'vida do mundo', e abandonou tanto Flora como o filho. Flora, inteiramente entregue às imprevisibilidades do amor, caiu em lancinante dor, na angústia da busca para entender os sentidos do sentimento amoroso. No Brasil, com a tradução de Pedro Maia Soares, o livro está publicado pela Companhia das Letras; em português luso, de onde conheço a obra, a publicação é da Editorial Presença, com tradução de Maria Luísa Ringsta. 
Abaixo, reproduzo uma resenha do livro (a partir da edição brasileira), escrita por Heloísa Correia Moura (USP), e publicada no nº 13 da Revista de Estudos Femininos. 

  
A tragédia de Flora Emília
  
Heloísa Corrêa Moura

O autor desse livro, Jostein Gaarder, assegura ter encontrado em um sebo de San Telmo, Buenos Aires, cópia de manuscritos redigidos por Flória Emília, concubina de Aurélio Agostinho, ou seja, um dos pilares da Igreja católica e do pensamento cristão, o bispo de Hipona, predicador, orador, catequizador, doutor e santo – Santo Agostinho.
O livro Vita brevis: a carta de Flória Emília para Aurélio Agostinho condensa, em dez capítulos, 70 ou 80 folhas de pergaminho, escritas sem paginação, o que tornou a tradução um verdadeiro quebra-cabeça. Foram escritas em um latim dos tempos vividos pela suposta autora.
Flória Emília, ao ler as famosas Confissões do bispo, carregadas de "notas sombrias", em que em apenas duas frases se referem a ela, sem, todavia, mencionar seu nome, teve o cuidado de instruir-se, para sustentar seus argumentos contra os relatos do ex-amante convertido. Torna-se conhecedora dos Evangelhos, dos filósofos, dos clássicos e dos grandes poetas, chegando, com isso, ao posto de professora de Retórica.
Mais de dez anos são passados entre a separação dos amantes e o envio da carta extensiva "a toda a Igreja cristã." Flória Emília tinha sido abandonada e expulsa para a África pelo pai de seu único filho que lhe foi tirado para nunca mais vê-la. Ela fora trocada por um rival que não era uma mulher, mas sim um princípio filosófico. Segundo suas palavras, um princípio que afetava todas as mulheres, ou seja, o Obitus veneris, isto é, "a aniquilação do amor".
Aurélio Agostinho, amante dos prazeres sensuais, inicia-se, ainda jovem, inexperiente e desajeitado, nos braços de Flória Emília, até revelar-se um homem de sensualidade irrefreável, segundo ela, "da língua ao dedo médio." Mas, após 12 anos de convivência, ele renuncia a esse amor tempestuoso, abandona Flória Emília e leva com ele o filho Adeodato, passando a dedicar-se a uma busca alucinada da salvação de sua alma, a que Flória Emília chama de "agonia espiritual". Em nome desse louco amor ela jurou-lhe fidelidade até o final da vida, e até o final da vida recusou-se a ser batizada, alegando não ter tido nunca "visões" nem ouvido "vozes", nem mantido jamais contato com o sobrenatural. Segundo ela, se houver céu acima de tudo, merecerá, por certo, o perdão de Deus, por prender-se ao "físico", recusando-se a crer num Deus que exige sacrifícios humanos.
E o "físico" passa a atormentar o bispo transtornado, subitamente tão sério. Torturam-no tanto a memória dos "vários e tenebrosos amores" como os sonhos eróticos, que enlouquecem sua alma estimulada por baixas imaginações, desenfreando seus instintos carnais. Aflito, pergunta a Deus, nesses momentos: "Senhor meu Deus, será que eu já não sou eu?" Flora Emília, serena, diz que não e que talvez ele seja apenas a sombra dele mesmo. Diz que melhor lhe conviria ser um escravo sobre a terra do que um alto sacerdote nesse labirinto de sombras. Ele deseja a morte quotidiana em si mesmo, para tirar-lhe os sentidos, negando a própria vida, ao constatar que "os bens terrenos também são agradáveis e também têm uma doçura que não é pequena". Ao pensar na felicidade, teme procurá-la; foge dela, quando a vislumbra no "abraço de uma mulher".
Aurélio Agostinho, afundando-se no labirinto sombrio dos teólogos, gaba-se, diante de Deus, de desprezar o mundo dos sentidos, crendo que tudo o que existe, fora Dele, é obra do diabo. Flória Emília contesta, interrogando-o, se não se trata exatamente do contrário; se somos seres criados por Deus, não nos cabe viver e usufruir da obra criada por Ele? E o bispo insiste. Chama de "perigo de prazer" o comer e o beber; ao humor, de "concupiscência"; roga a Deus que a voluptuosidade dos olhos não acorrente sua alma com a variedade, brilho e luminosidade das cores; vê "pecado" no colorido, no perfume e na beleza das flores, na melodia dos Salmos de Davi, no ato de cheirar uma flor – tudo inserido na sua lista perpétua de pecados e culpas. Afirma que Deus quer o homem em absoluta continência; que não há ninguém diante d'Ele imune ao pecado, nem mesmo o recém-nascido, com apenas um dia de vida; chama o próprio filho de "fruto do pecado", o que a mãe rebate argumentando que "a criança é concebida no amor" e que Deus ordenou o mundo de maneira bela e sábia, não permitindo "que isso acontecesse por germinação". Flória Emília, entrando no labiríntico raciocínio do bispo, pergunta o que restará afinal desse homem e de sua vida aqui na terra; o que é "pecado", o que é "vício"; o que são "coisas vãs", constantes em suas Confissões. Não seria tudo isso, simplesmente, o que os separa de Deus? Ela teme pelo que os homens da Igreja possam fazer às mulheres que não existem senão para tentá-los. Seguindo o percurso turbulento de seus raciocínios, Deus ama os eunucos e os castrados, acima daqueles que amam as mulheres. Contradizendo a lógica do bispo, ela indaga se não será estragar a obra de Deus um homem não poder abraçar uma mulher; se o Deus que criou o céu e a terra e todas as criaturas, "inclusive mulheres e crianças", não foi o mesmo que criou Vênus. Indaga também se por acaso os teólogos, como os filósofos, teriam permissão para dizer absurdos de toda ordem.
Confusa e insegura quanto à existência de Deus e do eterno, Flória Emília ama a vida, o mundo, o ar, o canto dos pássaros, a abóbada celeste; crê nos ouvidos e nos olhos criados tão divinamente quanto o sexo; reconhece o ser humano, com direito a usufruir de toda a obra da criação, parecendo arrogância rejeitá-la, à semelhança dos heróis gregos, e lembra ao bispo que, sem pecar, pode comer e beber quando tem fome e sede, é livre o bastante para cheirar uma flor e não precisa ter vergonha de ser homem.
Aurélio Agostinho vai para Milão, com o objetivo de entrar para o círculo de Ambrósio, agora bispo, mas influente no Estado, onde ocupara alto cargo. Ao conhecê-lo, o futuro santo, minucioso no cuidado da salvação de sua alma e no desprezo por todas as coisas do mundo, julga-o afortunado, por ser um homem "homenageado pelos poderosos".
Seu amante Aurel não lhe deixou clara a expressão "a vida é breve" que muitas vezes lhe repetiu, mas Flória Emília tem opiniões próprias sobre sua brevidade e importância. A vida é breve, diz ela, e sabemos muito pouco. Nada nos aponta uma eternidade certa para nossas almas frágeis. No entanto, somos livres para ter esperança de uma vida após esta e não há tempo para julgar o amor. Certamente se referia ao tom condenatório dos teólogos, os quais ela verdadeiramente temia, acima do Filho de Deus que, quando passou pela terra, foi justo para com as mulheres.
Aurélio Agostinho odiava-se por não ser suficientemente miserável, achando que isso é que agrada a Deus. Cita suas emoções violentas após a conversão. Certa vez, quando severas reflexões expuseram toda a sua miséria, desencadeou-se-lhe uma torrente de lágrimas, que jorravam de seus olhos aos borbotões, e refugiou-se, apressado, debaixo de uma figueira, para ali oferecê-las a Deus como um "sacrifício agradável".
Quando o bispo tece elogios sobre a bela amizade entre homens com sinais "que brotavam de corações que amam e se sentem amados e que se manifestam no procedimento, nas palavras, no olhar e em mil gestos de agradecimento, como centelhas que inflamam muitos corações e deles fazem um só", Flória Emília se sente "comida e regurgitada" ao mesmo tempo. Pergunta, lendo esse trecho das Confissões, se não era também amizade verdadeira o que ela lhe oferecera durante aqueles tantos anos de convivência, no procedimento, nas doces palavras, tantas vezes trocadas, nos olhares e nas melhores coisas que viveram em conjunto. Teria sido esse o tempo em que ele mais longe estava de Deus? Incrédula, completa que, se existe um Deus, Ele registrou, certamente, toda a generosidade que se deram e, se não existe, ninguém, em todo o universo, conhecerá o outro melhor que ambos. E Aurélio Agostinho, agora, tudo aniquila com sua frieza advinda dos maniqueus e dos platônicos, tudo resume em "pecado de concupiscência".
Ainda em companhia de Flória Emília, quando nem padre era, Aurel ficou doente e teve medo de morrer. Medo porque, explicou-se depois, nas Confissões, vivendo em tal comportamento, ou seja, em concubinato – mesmo sendo costume da época os homens terem concubinas antes do casamento –, iria para o fogo e para as penas estabelecidas pela lei de Deus. Flória Emília espanta-se com a leitura das crenças do ex-companheiro, amedrontado por esse Deus da Ira, que pune, atormenta e leva as pessoas para o inferno, por toda a eternidade. Tomam, igualmente, esse destino os que também não consentem ser batizados.
Flória Emília acusa gravemente Mônica, mãe de Aurel, de tê-los separado, para substituí-la por uma outra mulher mais apropriada. Mas essa mulher tinha apenas 11 anos e era preciso esperar mais dois, segundo a lei, para a idade matrimonial. Flória Emília, no entanto, se pergunta se o futuro da família estava sendo realmente preservado com esse casamento de alta posição social, ou se Mônica tinha ciúmes do filho. Houve uma primavera, ela se recorda, em que essa mãe fora correndo para Milão, quando os amantes lá se encontravam, para se pôr entre eles e, com o tempo, acabou vencendo o duelo. Essa mãe parece ter roubado ao filho a vontade de amar uma mulher. Flória Emília chega a falar sobre a ligação de ambos "por laços que não são naturais entre mãe e filho."
Depois da morte de Mônica, o vazio que Aurélio Agostinho sentiu foi tão grande que, com a alma despedaçada e sangrando, escreveu uma carta para Flória Emília, em um vai-e-vem mítico-filosófico: "Como sinto tua falta, Flória! Gostaria que estivesses conosco agora. Quero te ver, quero e, ao mesmo tempo, não quero te ver. Quero, mas não posso, e não posso, mas te veria". Flória Emília interpretou essas palavras como querendo vê-la e viajou para Roma, onde puderam abraçar-se novamente durante algumas semanas. Mas Mônica, que ocupava o lugar de Deus na vida do filho, deixou Deus no lugar dela. O bispo estava em desespero, tal qual Édipo e seu destino absurdo. Flória Emília sugere-lhe a castração, em vez de arrancar os olhos como a personagem de Sófocles.
Porém, foi em uma tarde fatídica que tudo terminou. Depois de terem compartilhado momentos de muita ternura, Aurélio Agostinho, tomado de uma raiva súbita, açoita violentamente sua parceira, em uma perversidade mórbida, como se estivesse despedaçando Eva, nome que, eventualmente, lhe dava, para, em seguida, de joelhos, chorando, de mãos postas, implorar perdão, ora para ela, ora para Deus, amarrando, ele mesmo, com panos, seus ferimentos, confortando-a.
Logo em seguida manda-a de volta para Cartago, para nunca mais se verem, nem mesmo pela ocasião da morte do filho Adeodato.
Aurélio Agostinho silencia em suas Confissões sobre esse gravíssimo episódio que Flória Emília nomeia de "último ato da tragédia". No esforço tão grande que fez para escrevê-las, o bispo suplica que Deus aceite as inumeráveis coisas que deixa em silêncio e de outras mais de que não se recorda. Em silêncio, pois parece impossível ter se esquecido, deixa igualmente o amor sensual pela concubina, porque, segundo a redatora dessa carta, ele põe um limite nas suas Confissões, pois delas não constam suas faltas mais graves.
Foi assim que Flória Emília separou-se de seu Aurel, homem que vivia constantemente "exposto ao pecado", em luta permanente contra as "tentações da carne", escravizado por uma guerra quotidiana de "jejuns" e "mortificações", e também o homem que teve vergonha de chorar a morte da mãe, por ser a dor um sentimento terreno; que deixou de amar, de apreciar a comida, de cheirar as flores, de escutar o canto dos Salmos, para se afundar em um fanático e histérico encontro com Deus.
Ela conclui que, se Deus realmente existe, poderá, em algum lugar, condená-lo por ter dado as costas a todas as alegrias da vida (...)


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