POR QUE LER ALOYSIUS BERTRAND HOJE
Adelto Gonçalves
GASPARD DE LA NUIT, de Aloysius Bertrand, tradução de José Jeronymo Rivera. Brasília, Thesaurus Editora, 215 págs., 2003.
José Jeronymo Rivera, que já nos deu traduções primorosas, como Rimas, de Gustavo Adolfo Bécquer (2001), e ainda Cidades tentaculares, de Émile Verhaeren (1999), e Poesia francesa: pequena antologia bilingüe (1998), além de atuar em sentido inverso, colaborando na tradução para o castelhano de Poetas portugueses y brasileños de los simbolistas a los modernistas (BuenosAires/Brasília, 2002), oferece, agora, ao leitor a tradução de Gaspard de la Nuit: fantasias à maneira de Rembrandt e de Callot, de Aloysius Bertrand, aliás, Louis-Jacques-Napoléon Bertrand (1807-1841).
Filho de um militar francês e uma italiana, casal que se fixou em Dijon, na França, depois da queda do império napoleônico, Bertrand nasceu em Ceva, no Piemonte. Boêmio, morreu jovem, aos 34 anos, sem tempo de ver impresso seu único livro, trabalho de toda uma vida, mas pronto em 1836 e, desde então, nas mãos de um livreiro-impressor que não o publicou. A obra só saiu à luz em 1842 pelas mãos de outro editor e precedida por uma Notice assinada por ninguém menos que Sainte-Beuve.
Como se lê no erudito e bem escrito prefácio que Xavier Placer fez para a tradução de Rivera, o livro de Bertrand foi, desde o começo, uma obra rara, acessível apenas a poucos literatos, como Baudelaire que admitiu tê-lo lido pelo menos vinte vezes numa confissão que fez em Le spleen de Paris, conhecido geralmente por Petits poèmes en prose. Mas, depois da “descoberta” de Baudelaire, foi grande a fortuna crítica do livro de Bertrand, reeditado e analisado na França, lido e traduzido em outras partes.
Segundo Placer, no “Gaspard” e nas “Peças soltas”, secções que compõem o livro, a par da novidade da forma fíxa (o poema em prosa), técnica e estilo apontam para o clássico na forma, o realístico no tema. São 65 unidades poéticas, com ilustrações de Rembrandt e Callot, acompanhadas de uma cronologia breve da vida de Bertrand.
São histórias que ressumem a Idade Média, embora tenham sido escritas no começo do Oitocentos – algo assim como Miguel de Cervantes (1547-1616) fez em Dom Quixote colocando personagens a falar não como se falava ao seu tempo, mas como se falava duzentos ou trezentos anos antes, à época das novelas de cavalaria, que ele queria ridicularizar – e, afinal, ridicularizou – porque já eram anacrônicas.
Claro que, hoje, à distância de tantos séculos, só se tivéssemos um profundo conhecimento do francês antigo para ler Bertrand no original e entender todas as nuanças de sua linguagem que, apesar do talento e do esforço do tradutor, perdem-se na passagem para o português de hoje. Mas é assim mesmo: as obras-de-arte só alcançam essa transcendência porque são entendidas em todas a línguas. Talvez o que entendamos seja outra coisa, não exatamente o que o autor queria dizer ao seu tempo.
Mas a verdade é que o lemos e o entendemos ao nosso modo. Assim como não precisamos ter conhecido ou vivido em São Petersburgo na segunda metade do século XIX para ler (e entender) os livros de Dostoiévski.
Por que Bertrand, se há outros tantos poetas renomados à espera de tradução? É o que questiona (para, logo, responder) Anderson Braga Horta, outro fino poeta de Brasília, responsável pela apresentação do livro. Se mais não fosse, Horta lembra que, para os amantes da música, Bertrand deve soar familiar porque Maurice Ravel, com o nome Gaspard de la Nuit, compôs, em 1908, uma suíte para piano baseada em três poemas do livro.
Bertrand, em seus poemas em prosa, não esteve preocupado apenas com reis, rainhas, princesas e castelos, como era comum na época na qual situou os seus personagens, um tempo em que a lírica trovadoresca ainda não havia sido substituída de vez pelo classicismo. Por isso, nada há de anacrônico no fato de o seu livro retratar um certo medievalismo romântico que vem das figuras de extração menos nobre, quando não francamente popular, até porque ao tempo em que viveu Bertrand os costumes pré-Revolução Francesa e até mesmo os valores medievais ainda não se haviam dissipado de todo.
Sem contar que Bertrand também estende seus poemas em prosa e suas crônicas a Espanha e Itália, países em que a sucessão das estéticas literárias não seguiu necessariamente o mesmo ritmo registrado na França.
Bertrand é também o filósofo que sabe retratar a sua época de profunda devassidão nos costumes políticos e sociais, tempo que haveria de inspirar Honoré de Balzac (1799-1850) a escrever, entre 1835 e 1843, As Ilusões Perdidas (Illusions Perdues), seu mais vasto romance. Neste livro, Balzac conta a história de Luciano de Rubempré, o tipo universal do talento provinciano seduzido pelo brilho de Paris, que serviria, mais tarde, de inspiração a Eça de Queirós para escrever A Capital (1881).
Por meio das aventuras de Rubempré, Balzac antevê o imenso poder concentrado nas mãos dos jornalistas (ou dos donos dos jornais) e, com seu pessimismo inato, procura expor todos os abusos a que esse poder se presta, quando se deixa enlamear pela corrupção e passa a defender interesses escusos. É essa época que se pode antever também à página final de Gaspard de la Nuit, quando Bertrand diz: “(...) Não, a Glória, nobreza cujos brasões não se venderam jamais, não é o sabonete do vilão, que se compra por preço de tabela na botica de um jornalista!”
Linhas adiante, Bertrand questiona a fragilidade do homem diante do destino, ao compor uma frase que é também a síntese de sua visão de mundo: “Ah! O homem – diz-me, se o sabes – o homem, frágil joguete a cabriolar suspenso nos fios da paixão, não será ele apenas um boneco, com o qual brinca a vida e a quem a morte destrói?”
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Fonte: http://www.filologia.org.br/adelto_goncalves/html/POR%20QUE%20LER%20ALOYSIUS%20BERTRAND%20HO.htm
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