Como é irônico o destino! À véspera do 25 de Abril Português, marco da Revolução dos Cravos Lusitana, faleceu um homem que simbolizou os ideais do 25 de Abril de 1974. Miguel Portas partiu. Tive três ou quatro vezes com ele, e me impressionava a sua capacidade de transitar, com propriedade, pelas mais diversas áreas. Tomando de empréstimo uma frase da peça shakespereana Ricardo III, dizia o literato norte-americano John Steinbeck que, quando uma luz se apaga, fica mais escuro do se jamais ela tivesse brilhado. Miguel Portas fará imensa falta. A morte, à Hegel, por um lado, é o resultado final do processo de um indivíduo singular, que vive e age numa sociedade universal, e, por outro lado, é a negatividade natural do indivíduo que ocorre no tempo, mas que cancela o tempo absoluto do indivíduo que morre. Se a sensação vazia do desaparecimento que sentimos, diante do túmulo, nos provoca o luto e nos aprisiona à passividade, é na indagação sobre o significado e a validade das vidas individuais onde podemos encontrar o caminho que nos conduz a superar as reflexões sentimentais, para devolvermo-nos, a nós mesmos, ao mundo ativo da história. Somente com o nosso retorno ao mundo activo da história dos seres humanos vivos, podemos nos reconciliar com a universalidade da vida. Quer dizer, é na reconciliação com a vida, que nos nega consolo, que temos o lugar onde poderemos encontrar a valorização do desaparecido. Abaixo, um breve texto de Francisco Lousã sobre o percurso do inquieto Miguel Portas. Shanti, shanti, shanti, Miguel
Faleceu Miguel
Portas
Miguel Portas, cosmopolita inquieto
Por Francsco Lousã
Conheci o Miguel, sardento, louro, espigado,
irrequieto e tinha 13 anos. Foi numa assembleia de estudantes do ensino
secundário, que se realizou na cantina de Económicas, o ISEG de hoje.
Discussões acaloradas, heroísmo à flor da pele, a ditadura e a guerra pela
frente – nessa altura, o futuro era magnífico. E foi. O 25 de Abril e os
melhores anos da nossa vida, como dizia o José Afonso.
Economista por empréstimo, foi sempre
jornalista e político por vocação. Com a vertigem dos anos finais da ditadura,
entrou na UEC e foi escolhido para a sua comissão central em 1974. Do PCP
sairia em 1989, quinze anos depois e sem mágoas, sempre respeitador dessa vida
militante. Entretanto, foi animador cultural na Câmara de Ourique e na serra
algarvia. Aprendeu o trabalho local, a importância da cultura e da comunicação
popular. Tornou-se jornalista, lançou a revista "Contraste" em 1986 e
fez dela um ícone da cultura à esquerda. Foi depois jornalista do
"Expresso", a partir de 1988, e editor internacional da sua revista
até 1994. Fez a cobertura da campanha eleitoral do PSR em 1991, e lembro-me de
como se divertia com a minha ingenuidade sobre o que seria ser deputado. Tinha
razão.
A partir de 1995, fez aquilo de que
mais gostava, criou um jornal em que podia agir com as suas próprias escolhas.
O "Já" foi essa aventura, depois a "Vida Mundial". Fez a
cobertura da queda do regime da Roménia, onde sentiu o cheiro do 25 de Abril e
os riscos do que aí vinha. Com jornalistas, amigos, gente de talento e
de vontade, inventou jornalismo, fez actualidade, lutou
pelas ideias, convidou opiniões. Que falta que faz um jornal como esses.
Escreveu três livros:
“E o Resto é Paisagem” (2002), “No Labirinto”, sobre o Líbano (2006) e
“Périplo”, sobre as histórias do Mediterrâneo, com Cláudio Torres (2006). Como
sempre lembra o Inimigo Público, o suplemento satírico do Público, a sua
profunda ligação ao Médio Oriente levava-o a interessar-se pela sua
gastronomia, pelo cinema, pelas lendas, pelas histórias, pelos partidos, pelas
guerras e pela paz. Tomou posição. Arriscou-se. Falou com todos. Atravessou o
Líbano debaixo de bombardeamento israelitas. Defendeu energicamente o povo
palestino. Juntou-se às vozes dos movimentos de paz em Israel.
Viveu
a vida intensamente e com gosto. Foi dirigente do Bloco e eurodeputado até ao
último momento. Incentivou-nos da cama do hospital. Combinou a sua viagem que
faltava, à Birmânia, e que nunca fará. Despediu-se dos filhos.
Viveu
connosco e nós vivemos com ele. Perdemo-lo e não o esquecemos. Um abraço,
Miguel.
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