quinta-feira, 19 de abril de 2012

Angústia, Pecado e Liberdade: A propósito de Sören Kierkegaard

Em Pecado e Angústia, o filósofo dinamarquês Sören Kierkegaard procura na angústia a via de acesso para abordar a noção de pecado. De qualquer forma, em Kierkegaard, a angústia relaciona-se à liberdade, ao que se segue uma desmistificação da ideia de pecado. A propósito, o Prof. Pedro Castillo (UFMG) produziu um interessante trabalho focando a noção de transmissão na psicanálise a partir do legado de Kierkegaard, buscando uma aproximação com Lacan. Reproduzo o texto a seguir.  

Mas quero ter a liberdade de dizer coisas sem nexo como profunda forma de te atingir. Só o errado me atrai, e amo o pecado, a flor do pecado !


Sobre a transmissão na psicanálise: o legado de Kierkegaard



A child is sleeping
An old man gone
A father forsaken
Forgive your son!
James Joyce

Pedro Castillo 

O ponto de partida deste trabalho é a alusão de Lacan a Kierkegaard, em 1964, no seu Seminário 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, em que se lê:
Pai, não vês que estou queimando? Do que é que ele queima? - senão do que vemos desenhar-se em outros pontos designados pela topologia freudiana - do peso dos pecados do pai, que carrega o fantasma no mito de Hamlet com que Freud duplicou o mito de Édipo. O pai, o Nome-do-Pai, sustenta a estrutura do desejo com a lei - mas a herança do pai é aquilo que nos designa Kierkegaard, é seu pecado (Lacan, [1964] 1990: 43).
Buscaremos demonstrar o percurso de Sören Kierkegaard sobre a questão da transmissão do Pai a partir das noções de pecado e angústia. No livro do filósofo dinamarquês O conceito de angústia (2004), a relação entre o pecado e a angústia é interpretada, justamente, situando-se a questão no campo teológico. Esse caminho traçado pelo filósofo tem como referência capital os mitos bíblicos de Adão e Eva.
Para Kierkegaard, trata-se de pensar sobre o pecado a partir da ideia de que este seria um resto impossível de ser absorvido por não pertencer a nenhum campo do conhecimento. É justamente porque o pecado original não pertence a nenhum campo do saber que Kierkegaard procura a angústia como a única via de acesso para abordá-lo.
Pretendemos aproximar a noção de pecado, em Kierkegaard, com a citada passagem da obra de Lacan. Quando este faz referência a Kierkegaard, é para trabalhar os efeitos da transmissão do pai. Se, no Seminário 11, o complexo de Édipo deixa de ser um dos conceitos fundamentais da psicanálise, é porque Lacan constrói um outro lugar para o pai. É neste sentido que podemos compreender os desdobramentos deste pai, que traz o seu pecado como efeito da transmissão. Na lição sobre inconsciente e repetição, Lacan pergunta o que é um pai. A resposta, disse ele, é Kierkegaard quem nos dá. Ao filósofo caberia a incumbência de convocar a emergência da angústia, a partir do pecado do pai: "As relações estabelecidas por Kierkegaard são as questões que jamais foram confessadas, que vão de seu pai à falta" (Lacan, 1974-1975: lição de 18/2/1975).
É no contexto deste diálogo que, para demarcarmos a falibilidade do pai, vamo-nos apoiar na filosofia de Kierkegaard, segundo a qual há uma equivalência da angústia com o pecado. Lacan delimita o lugar do pai a partir da angústia, finalmente desenvolvendo uma metapsicologia, sob os auspícios de Kierkegaard, que teria reforçado a função limite entre o que Lacan denominou de real e a angústia. É para compreendermos este ponto que vamos recorrer a Kierkegaard, cuja filosofia permite que se coloque a questão: seria Lacan simplesmente hegeliano? Para esclarecer o pensamento hegeliano, Lacan surpreende a si mesmo, quando diz que a verdade é Kierkegaard quem nos dá: "A verdade da angústia é Kierkegaard quem a dá, não é a verdade de Hegel. Mas é a verdade da angústia que nos leva a nossas observações relativas ao desejo no sentido psicanalítico" (Lacan, [1962-1963] 2004: lição de 28/11/1962).
A questão que se coloca é saber por que Lacan evoca o filósofo Kierkegaard com uma força tal para trabalhar a transmissão do pai e parece estar procurando a reposta em sua filosofia. Estas considerações a partir da angústia original abrem uma nova dimensão para a compreensão do encontro da falta da falta do Outro subjetivado como angústia. A proposta de Lacan vem desvelar o fato de que o Outro não se constitui no encontro com o abismo que essa falta suscita. Entremos, pois, nos aspectos específicos da filosofia do dinamarquês, sem a qual não se poderiam desenvolver as considerações sobre a angústia e a verdade.
O caminho traçado pelo filósofo tem como referência capital o mito bíblico de Adão e Eva, juntamente com o de Abraão. No seu livro O conceito de angústia (2004), Kierkegaard parte da ideia de pecado, afirmando que sua concepção produz a separação entre o cristianismo e o paganismo. Certamente, com os gregos, não encontramos a ideia de pecado. Este termo funciona como divisor de águas entre os dois mundos. Não se pode aproximar a concepção de subjetividade grega da cristã, visto que o princípio de responsabilidade moral individual, tal como o podemos entender hoje, não existe na Grécia Antiga. O filósofo inicia sua pesquisa a partir da angústia, buscando, na sua origem, o pecado.
Kierkegaard vai contra Santo Agostinho e Hegel, que fazem do pecado original um conceito especulativo, acabando por recobrir o mito por outro mito. Para o filósofo dinamarquês, trata-se de pensar sobre o pecado a partir da ideia de que este seria um resto impossível de ser absorvido por não pertencer a nenhum campo do conhecimento.
É importante saber que a angústia traz uma hiância impossível de ser suturada, a qual marca um limite, recortando um objeto que não tem imagem e que se reverte em desespero, temor, terror, pecado e impossibilidade. Na própria filosofia, Kierkegaard foi o primeiro a apontar o conceito psicológico de angústia a partir de um contexto dogmático-teológico. Em seu ensaio sobre a angústia, o autor provoca Hegel, quando diz que a dialética hegeliana não pode dar conta desse afeto. Entramos, então, com Kierkegaard, no campo da angústia, a que se associa a rebeldia do particular, pois, para o filósofo dinamarquês, o pecado é singularizado.
Em Kierkegaard, com efeito, a angústia passa a ser relacionada à liberdade subjetiva, que é informada pela experiência do encontro com o pecado. Em O conceito de angústia (2004), a manifestação da diferença ontológica, ligada ao pecado original, pressupõe a angústia.
Para Kierkegaard, nenhuma ciência pode dar conta do conceito de pecado original. O pecado já foi lançado. A pesquisa filosófica é, assim, substituída por uma premissa teológica. Isso não quer dizer, entretanto, que seja o caso de pensar a angústia a partir de uma causalidade ou de uma origem. A angústia, em relação com o pecado, é o que leva o espírito ao encontro da anima e do corpo, em uma síntese que depende daquilo que a Bíblia colocou como objeto interditado. A partir dessa formatação é que os pressupostos científicos tornam-se ferramentas inadequadas para interpretar a angústia, cujos contornos diriam respeito, mais propriamente, às questões teológicas.
De acordo com o filósofo dinamarquês, as referências para se pensar a dimensão do pecado estão implicadas no pecado original de Adão. Segundo ele, não se trata de pensar a partir de uma causa. Isso seria uma maneira distorcida de pensar, uma vez que levaria a se conceber o pecado de Adão como o pecado do primeiro homem. Para o autor, deveríamos considerar que o pecado precede o próprio pecado. É por isso que podemos verificar na observação de Kierkegaard que a ideia de Adão como primeiro homem planteia uma incógnita; isto quer dizer: ser primeiro significa ser o número "1" na série dos números inteiros, ou seja, dentro das séries das gerações o uno que simboliza toda a humanidade e, no caso de Adão, ficaria fora do gênero dos indivíduos.
O pecado, pois, entra no mundo subitamente, quer dizer, mediante um salto. Agora bem, este salto põe ademais a qualidade, e no mesmo momento de ser posta a qualidade tem lugar o salto de qualidade, de maneira que a qualidade supõe o salto e o salto supõe a qualidade (Kierkegaard, 2004: 39).
Kierkegaard aproxima o pecado de Adão dos outros pecados. O enigma da origem, do pecado de Adão, neste caso, implica saber o que impõe o salto e a qualidade. Segundo a história bíblica, Adão foi criado por Deus. Em seguida, a criatura deu nomes aos animais, utilizando-se de uma linguagem que, segundo Kierkegaard, é "uma linguagem tão imperfeita como a da criança" (Kierkegaard, 2004: 55-56). O homem, depois de criado, precisava de uma companhia, então, foi subtraída Eva a partir das costelas de Adão. Esse momento mítico do pecado original é, para o filósofo, uma repetição numérica, tendo em vista que "o mito apenas exterioriza o que é interior". Isso quer dizer que o pecado acontece em outras partes, de maneira que, segundo o autor, daria no mesmo termos no mundo "apenas um Adão como mil Adãos" (Kierkegaard, 2004: 55).
Nesse movimento é que surge a queda, e a psicologia, segundo Kierkegaard, não poderia explicar a queda, porque se trata de um salto quantitativo. As consequências da queda, de acordo com o filósofo, foram duas: em primeiro lugar, quando o pecado vem ao mundo, fica estabelecida a sexualidade, em segundo, pecado e sexualidade não se podem mais separar.
Com a pecaminosidade, fica colocada a sexualidade, no instante mesmo em que se inicia a história da espécie humana. A consequência do pecado original é uma angústia que se manifesta no encontro com o pecado. A angústia, por sua vez, engendra o próprio pecado original. É por isso que, segundo Kierkegaard, a angústia seria o pecado original de cada um. Com o filósofo podemos, então, evocar uma pressuposição da angústia que traz o pecado.
Nesse sentido, o autor de O conceito de angústia (2004) aponta o pecado como parte da condição humana. Para Kierkegaard, é uma questão de pensar o pecado original como o pecado de cada homem: é o que acomete todos os homens e cada homem.
Para o dinamarquês, a pesquisa em psicologia é suspensa por uma premissa teológica, exatamente porque nenhuma ciência pode dar conta do que já está colocado, isto é, do próprio pecado. A angústia se apoia sobre uma ruptura histórica. É o pecado original, introduzido pelo cristianismo, que propõe a origem de alguma per-da, produzindo uma relação do homem com o mundo. A questão do pecado opera uma nova maneira de o homem encontrar seu caminho: não mais pela reminiscência, mas pela repetição. Essa ideia kierkegaardiana traz à tona a questão da origem, justaposta à questão do pecado. O texto sobre a angústia interroga a origem da queda de Adão, tendo em vista que todos os homens, a cada vez, são introduzidos, no mundo, a um singular pecado original. É necessário que cada homem seja reintroduzido no primeiro pecado. A repetição é, assim, determinante. Ela é uma retomada sobre o ponto original, a reapropriação do que foi vivido como pecado original.
Aqui, é importante ter em mente que o instante não é mais considerado um átomo de tempo, que se escoa e esvanece, mas o átomo de uma eternidade, iniciado desde que o primeiro pecado produz a série. O primeiro pecado funda um antes e um depois. Para Kierkegaard, com efeito, o pecado original não seria um fato isolado, que aconteceu no Livro do Gênese, mas sim um acontecimento que está presente em todos os homens. Sendo assim, do primeiro pecado extrai-se um conceito daquilo que acontece com todos os homens. Há, entretanto, uma diferenciação entre o primeiro pecado e o pecado de cada homem.
Em O conceito de angústia (2004), fica claro que Kierkegaard tem um projeto de trazer o pecado para os homens mortais. O filósofo desmitifica o pecado, levando-o para cada homem, sem, contudo, deixar de singularizar o pecado original:
O primeiro pecado é algo diferente de um pecado qualquer, quer dizer, de um pecado como muitos outros, e também se vê com toda facilidade que é algo distinto de um pecado. No sentido de relacionar um pecado com outro como o número 1 com o número 2 (Kierkegaard, 2004: 37).
É significativo que Kierkegaard, ao falar sobre o primeiro pecado e sobre o pecado original de Adão, seja levado a se referir ao número. Segundo as ideias tradicionais, a diferença entre o primeiro pecado de Adão e o primeiro pecado de todo homem é a seguinte: o pecado de Adão condiciona a culpa como consequência, o primeiro pecado de todo homem pressupõe a culpa como condição. Adão realmente estaria fora da espécie, que não começaria com ele, mas fora de si mesma, o que é contrário a qualquer conceito. Só conseguimos recuar o problema, que pede, naturalmente, a explicação, ao homem número "2", ou, antes, ao homem número "1", já que o número "1" se tornou o número "0", que é Adão.
À procura de um ponto de estrutura na história, o que se mostra, a partir de uma relação diacrônica, são os pontos de encontro entre Kierkegaard e Lacan. Trata-se, aqui, de se pensar em uma consistência implícita. Podemos pensar a origem a partir de uma função numérica, como em uma contagem. Surge, então, um princípio de ordem, de ordenação, no seio da qual um elemento, o pai, está na origem, como fiador, mas de um princípio conjuntivo, sincrônico, já que, para haver cálculo, contagem, são necessários, no mínimo, dois elementos que contam.
Se a pergunta que perpassa o conceito de angústia é o motivo que leva Adão a habitar no pecado sem saber, a proposta do filósofo é a de encontrar no primeiro pecado um conceito. Mas, se Kierkegaard, a partir de Adão, exclui o "1" interno da série, é porque já está pensando na originalidade desta série. É um giro vertiginoso o que está nas primeiras páginas de O conceito de angústia (2004), levando-nos a um real da origem. De uma vez, engendra-se o pecado nas séries das gerações. Até poderíamos invocar a elaboração de Kierkegaard sobre a repetição para dizer que o escândalo não engendra a transmissão do pecado, mas a sua repetição sim. Podemos dizer que com Adão, e em Adão, o pecado entrou no mundo não como um efeito de determinação quantitativa, nem como causa ideal eficiente produtora de efeitos históricos, mas como um salto introduz na quantidade, já que apenas com um salto podemos falar de quantidade.
Para Kierkegaard, o mito do gênero sustenta a única dialética possível, a partir da qual se diz: o pecado entrou no mundo a partir de um pecado (Kierkegaard, 2004: 39). Neste sentido, não há palavra que nomeie o ato da divisão primordial do Outro, não restando senão saber que o pecado se engendra a partir do pecado. Essa é a topologia freudiana à qual Lacan faz referência quando alude a Kierkegaard. É essa construção do filósofo que, a nosso ver, interessa a Lacan. Só existiria pecado porque existe um pecado anterior ao primeiro, capaz de produzir uma série.
Além disso, é interessante notar que a questão que circunscreve o texto de Kierkegaard é a de problematizar o caminho epistemológico da própria filosofia. Trata-se de admitir a existência de uma maneira de pensar em que o real não é racional, diferentemente do que imaginava Hegel, para quem o real é racional. Angústia, para o dinamarquês, seria aquilo que não se sintetiza. Lacan vem servir-se de Kierkegaard para consolidar o obstáculo posto pelo inconsciente a todo o pensamento ligado a uma síntese. Esse obstáculo seria aquilo que o espírito não pode abolir ou recuperar para incluir sob a égide do universal. Também neste ponto, a psicanálise se aproxima do filósofo, pois indicaria a angústia como o fenômeno fundamental e o problema principal da neurose. É aí que Kierkegaard propõe uma sistematização sobre a angústia.
Quando o filósofo se propõe a pensar a origem do pecado, é para trabalhar a origem buscando a singularidade de cada origem. A angústia, para Kierkegaard, é o que não se sintetiza. Diferentemente de Hegel, que pensa a dialética a partir de uma relação entre tese, antítese e síntese, para o filósofo dinamarquês existe algo que não se adéqua a este axioma. O espírito não pode estar no campo do universal. O pecado é de cada um, assim como o nome é Um.
A angústia está instalada no indivíduo como consequência do seu próprio pecado. Esta angústia pode ser muito bem comparada com a vertigem. Mas, pergunta Kierkegaard, onde está a causa de tal vertigem? A causa está tanto em seus olhos quanto no abismo. E no indivíduo posterior a Adão, segundo o filósofo, a angústia é mais presente. Desse presentismo resulta uma predisposição que, embora não signifique nada antes que o indivíduo se tenha feito culpável, constitui o pecado que se pressupõe a si mesmo (Kierkegaard, 2004: 74).
Kierkegaard obscurece os limites entre o antes e o depois míticos, entre a inocência e a culpabilidade, já que, segundo ele, no paraíso, Adão e Eva se angustiavam de nada, e é o nada, precisamente, que os leva a algo associado ao pecado. É a partir desse raciocínio que se pode dizer ser a angústia o que engendra o pecado, e não o oposto. Em determinado momento de sua reflexão, Kierkegaard se debruça sobre o desespero de Jó e o de Abraão, tendo em vista a construção de cada pecado. Daí é que se compreende que o pecado está associado ao gozo. Isso quer dizer que, para Kierkegaard, "não existe pecado sem outro pecado".
Se a filosofia do dinamarquês se propõe a desmistificar o pecado, neste momento ela se torna a referência para se pensar a noção de falta enquanto pecado. É exatamente pelo fato de existir o pecado que antecede o pecado que podemos dizer, a partir de Lacan, que o pecado é o encontro da falta com a falta do Outro. A referência de Lacan a Kierkegaard vem logo depois de seu comentário sobre o Pai que acorda com a voz do seu filho.
Só existe pecado/gozo porque o pecado já foi lançado. Se, com o Nome-do-Pai, Lacan ([1959-1960] 1990), no seu Seminário 7: a ética da psicanálise, concebe a impossibilidade de dissociação entre o pecado, como transgressão, e a Lei, o mesmo autor, em um segundo momento, demonstra que o pecado se articula com o pecado. Parece que trazemos um Lacan contra Lacan. Agora, podemos começar a pensar as referências do autor no que concerne ao pai, ou melhor, no que diz respeito ao pecado do pai como condição do filho, ou, melhor ainda, no que se pode pensar como a falta da falta do pai como condição do filho.
A via da angústia permite o acesso real, que é pecado e gozo. Em seu percurso na direção do para além do pai, Lacan ([1964] 1990) começa a dizer, no Seminário 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, que o Édipo foi um sonho de Freud e que, a partir daí, deixaria de ser um dos conceitos fundamentais da psicanálise.
Lacan examina um dos sonhos do livro "A interpretação dos sonhos", de Freud. No sonho em questão, um pai vela seu filho morto. Segundo Lacan, Freud diz que se tem, nesse sonho, sobretudo, um resto diurno. O pai está velando seu filho morto.
Para Freud, no dizer de Lacan ([1964] 1990), o pai teria escutado esta frase do filho durante uma febre alta: "Não vês que estou queimando?". Pergunta-se, então, qual é a origem do sonho. O pai estava velando o filho e, em certo momento, retira-se para descansar um pouco. Ele havia pedido a um velho para velar seu filho, e este, por descuido, não percebe que uma vela caiu sobre a mortalha, que começa a queimar. É o brilho produzido pelo fogo que faz despertar o pai. Freud pensa que há aqui um paradoxo, porque, ao despertar, o pai volta a ver o filho partir novamente. É significativo que o filho não apenas aparece com vida, mas dizendo algo de particular ao pai: "Pai, não vês?". Freud é tocado por essas palavras, dizendo: "Estas palavras procedem de outra ocasião que não conhecemos, mas que foi rica em afetos". Por que Freud diz isso? - pergunta Lacan ([1964] 1990). E o mesmo responde: porque ele quer salvar o pai. O filho aponta a falta do pai, mas Freud parece não ver isso.
É justamente este ponto - "Pai, não vês?" - que é retomado por Lacan ([1964] 1990) no Seminário 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, quando quer ir para além do pai. No capítulo chamado "O inconsciente e a repetição", Lacan diz: "Por que esse nome senão para evocar o mistério que é, nada menos, o do para além do mundo, e quem sabe que segredo é compartilhado entre o pai e essa criança que vem dizer-lhe: Pai, não vês que estou queimando?" (Lacan, [1964] 1990: 11).
Trata-se do segredo compartilhado sobre a falta do pai. O Nome-do-Pai sustenta a estrutura do desejo junto com a da lei. A herança do pai, entretanto, quem designa é Kierkegaard: o pai é seu pecado.
Lacan está indo, então, para além do amor ao pai. Não se trata da lei. Toda a questão gira em torno de um profundo questionamento a respeito de um pai demasiadamente ideal. Lacan introduz o questionamento do pai edípico, isto é, do pai idealizado. O que se tem, a partir daí, não é mais o amor ao Pai, mas sim o amor do Pai, o que leva a se pensar o pai a partir de sua causa. Na quinta aula do Seminário 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan ([1964] 1990) recupera o sonho relatado por Freud, o de um pai que sonha e busca algo que não encontra.
Freud comenta a culpa do pai por não ter salvado a vida do filho, o qual, antes de morrer, encontrava-se "queimando de febre", realizando um desejo do pai de vê-lo vivo. É importante perceber que, para Lacan, o filho não recebe a heresia do pai como doença fisiológica, o que o leva a descobrir na angústia quantitativa uma hiância que separa o filho da lei do pai. Não há mais a lei do pai sem o pecado. Freud, contudo, aproxima o sonho em questão da tese de que se trata de uma realização de desejos. Mas o despertar do pai não poderia ter sido causado por um evento externo, se o propósito do sonho fosse a realização de um desejo não-realizado na vida cotidiana do sujeito. Enfim, "o que é despertar? Não será, no sonho, uma outra realidade?". O que se sedimenta, na construção deste artigo, a partir deste arranjo, não é mais um pai que se limita no Nome-do-Pai, mas um pai que se coloca a partir de seu pecado.
Como nos ensina Lacan, neste momento do seminário, a sexualidade é a realidade inconsciente. Mas, também, é pecaminoso dizer que a heresia do pai é seu pecado. Conceber a constituição de um pai como transmissor do inconsciente como desejo é dizer que há a inexistência do Outro enquanto uma ex-sistência entre outras. O que está em jogo é, agora, o seu gozo, muito mais do que a Lei. Nesse ponto, o pai deixa de ser aquele universal que traz a Lei dos homens, passando a existir como um ser que ex-siste entre outros.
Ressalte-se, ainda, que, quando Freud relata o sonho do pai que vê o filho queimando, não se trata de um sonho, mas de um pesadelo, que é exatamente a falta da censura do recalque. Nesta perspectiva, o pesadelo seria uma angústia de morte, o que Freud chama de sonho de angústia, tendo em vista o momento em que o sujeito desperta. Os exemplos ditos são os sonhos traumáticos, que são uma experiência aguda pela falta de dor e pela morte que acomete os sonhos traumáticos. A partir daí, não podemos encontrar nas expressões oníricas apenas os substratos para a realização de desejo, mas, sim, formas de expressão da angústia.
Nos sonhos, saímos das organizações mais estruturadas (movimento progrediente) e fazemos um movimento regrediente do aparelho psíquico, que nos leva à produção dos pesadelos. Com relação ao pesadelo do sétimo capítulo do livro "A interpretação dos sonhos" de Freud, o fato é que não há mistério mais angustiante do que o que se concentra na união do pai com o cadáver do seu filho morto.
O que se pode ver a partir de Lacan, orientado por Kierkegaard, enfim, é que a culpa recai sobre o filho para demonstrar que a castração do Pai é o seu pecado. O sonho sobre o filho remete à própria castração do pai. Para Lacan, esse sonho não importa por revelar a culpa do pai por não ter salvado o filho, mas por colocar uma pergunta: o que é um pai? O barulho produzido pela queda da vela que provocou o fogo agiria como elemento da realidade que intervém na produção onírica do pai, além de poder tê-lo despertado. É esse despertar que, segundo Lacan, pode-se transmitir. O que se transmite é o pecado do pai.
O pecado do filho é o gozo. É para os efeitos da transmissão que Lacan chama a atenção em 29 de janeiro de 1964. Lacan recupera o livro de Kierkegaard para fazer uma análise concernente ao tema do nó entre o desejo e o gozo, aproveitando o relato indireto de um sonho de fonte desconhecida, um sonho de angústia, destinado a despertar o sonhador. Aí se manifesta a relação que implica o filho não poder mais salvar o pai a partir de seu nome.
Mas não se pode afirmar o contrário disto, não há garantia de que o filho recupere seu pai. Podemos compreender a pergunta de Lacan, de 1964, sobre o que seria um pai para um filho, a partir de outra pergunta: o que é um filho para um pai? O pai, para Lacan, não está mais à altura de uma função. A construção desse sonho não é a do pai para o filho, mas, sim, do filho em relação ao pai. O Édipo passa, então, a ser contado a partir do pecado do pai.

REFERÊNCIAS
Kierkegaard, S. (2002a). A repetição. São Paulo: Editora Relógio.
Kierkegaard, S. (2002b). O desespero humano. São Paulo: Martin Claret.
Kierkegaard, S. (2004). El concepto de la angustia. Buenos Aires: Libertador.
Lacan, J. (1959-1960/1990). O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Lacan, J. (1962-1963/2001). O seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Lacan, J. (1962-1963/2004). Le séminaire, livre X: l'angoisse. Paris: Éditions du Seuil.
Lacan, J. (1964/1990). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Lacan, J. (1974-1975). O seminário, livro 22: RSI. Inédito.
Vocabulário de teologia bíblica. Obra coletiva. Rio de Janeiro: Vozes.
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Fonte: Tempo psicanal. vol.42 no.2 Rio de Janeiro jun. 2010


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