segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

O que tem importância: a dignidade da morte e a distinção do sentido da vida

Penso que determinadas atitudes verificadas no Brasil, nos últimos dias, reforçam uma hipótese sobre o 'tema da origem social dos comportamentos'  e nos remetem a duas perspectivas histórico-filosóficas. Sobre o tema da origem social dos comportamentos, a hipótese reforçada é que o fato de alguém pertencer a segmentos 'bem situados' do ponto de vista econômico (tendo acesso a 'bens educativos e cultuais' negados a significativas parcelas da população) não é garantia de bom caráter e de postura digna nos espaços de sociabilidade.  As duas perspectivas histórico-filosóficas são: 
Primeira, a posição das religiões frente a morte, bem como o constante da cultura grega antiga a  esse respeito. Praticamente todas as religiões (acredite-se nelas ou não) ensinam que é um postulado básico se deter perante a morte. Mais ainda, como lembra o Aldo Fornaizieri, mesmo nas mais cruente guerras existem códigos nesse sentido. Nas mitologia grega encontramos a mesma coisa. Por exemplo, Creonte, que não quis permitir que Polinices, filho do rei Édipo, fosse enterrado dignamente foi duramente punido pela tragédia por não se conter diante da morte. Quis que o corpo Polinices fosse  jogado a esmo para ser devorado pelas aves de rapina e pelos cães. Antígona, irmã do morto, deixou claro que lutaria para dar um destino digno ao corpo do irmão, mesmo que fosse preciso violar as leis humanas, pois, afirmava, as "leis divinas são superiores" à aquelas. Estava disposta a pagar com a própria vida por esta última demanda de dignidade humana. Frente a isso, o que dizer de médicos e de  representantes da justiça no Brasil que desejam e comemoram a morte de outrem? E olhe que faz apenas pouco mais de um mês que se viveu o período de fim de ano, com suas festividades e "votos de paz, amor e fraternidade"! A hipocrisia reina nesse período.
A segunda perspectiva, da minha parte, faz lembrar o pensamento de Bertrand Russell sobre temas como morte, religião e sentido da vida - designadamente um trabalho seu intitulado A Free Man’s Worship. Tendo-o como referência, segue um texto aí abaixo. 



Por Keith Augustine 
 (Master Degree in Philosophy - University of Maryland, College Park)

A morte torna a vida sem sentido? Apesar de muitas pessoas acharem que sim, um momento de reflexão irá mostrar que a morte é irrelevante para a questão do sentido da vida: se os seres humanos fossem naturalmente imortais — isto é, se não houvesse nada parecido com a morte — ainda assim a questão sobre o sentido da vida persistiria. A afirmação de que a vida é sem sentido porque termina em morte relaciona-se com a afirmação de que tudo o que tem sentido precisa durar para sempre. O fato de muitas das coisas às quais damos valor (como o relacionamento com outras pessoas) e atividades que achamos valiosas (como educar gerações) não durarem para sempre mostra que a vida não precisa ser eterna para ter sentido. Podemos mostrar também que a vida não precisa durar para sempre para ter algum sentido através de exemplos de vidas que duram para sempre e são inúteis. Na mitologia grega Sísifo é punido pelos deuses por ter dado conhecimento divino aos humanos. Sua punição é ser forçado a rolar uma enorme pedra até o topo de uma montanha. Assim que a pedra chega ao topo, ela é rolada novamente até a base da montanha. Sísifo está condenado a repetir esta tarefa inútil por toda a eternidade. A duração de nossas vidas nada tem a ver com elas terem ou não sentido. É irônico que tantas pessoas não tenham atentado para este ponto já que a punição eterna contida em O Mito de Sísifo de Albert Camus é o arquétipo da existência inútil.
A morte aparenta significar a falta de sentido da vida para muitas pessoas porque elas sentem que não há motivo em desenvolver o caráter ou aumentar o próprio conhecimento se nossos progressos serão em última instância tomados pela morte. Entretanto, há um motivo para desenvolver o caráter e desenvolver o conhecimento antes da morte nos alcançar: dar paz e satisfação intelectual às nossas vidas e às vidas daqueles com quem nós nos importamos, porque perseguir estes objetivos enriquece nossas vidas. Partir do fato de que a morte é inevitável não implica dizermos que tudo o que fazemos não faz diferença. Pelo contrário, nossas vidas têm grande importância para nós. Se elas não tivessem, não acharíamos a ideia de nossa morte tão desesperadora — não faria diferença se nossas vidas iriam acabar ou não. O fato de irmos todos morrer algum dia não tem correlação com a questão de nossas atividades valerem ou não a pena aqui e agora: para um paciente doente num hospital, os esforços de um médico em aliviar sua dor certamente importam, independentemente do fato de que tanto o paciente quanto o médico (e em última análise todo o universo) acabarão morrendo algum dia.
Mas o que faz com que tantas pessoas sintam que suas vidas, em última análise, são inúteis? O fato de que todos nós um dia iremos morrer é uma razão para este sentimento, mas não é a única. A outra razão para que tantas pessoas sintam que a vida não tem sentido é que, até onde a ciência pode mostrar, não há nenhum propósito maior para nossas vidas. Uma visão científica do mundo retrata a origem dos seres humanos como “o resultado da colocação acidental de átomos. Tanto individual quanto coletivamente, seres humanos vieram a existir devido a probabilidades. Como indivíduos, nossa existência foi possível devido ao sucesso reprodutivo de nossos ancestrais; como espécie, nossa existência foi determinada pelas mutações que acabaram por conferir uma vantagem adaptativa a nossos ancestrais evolutivos no ambiente em que se encontravam. Devido ao fato de não podermos discernir qualquer indicação de que fomos postos neste planeta para servir a um propósito dado a nós por um ser inteligente, nossa existência não parece fazer parte de nenhum plano maior. Se a ausência de um propósito maior é o que faz a vida ser em última instância sem sentido, nossas vidas seriam igualmente inúteis se fossem eternas. Da mesma forma, se fazer parte de um propósito maior desse às nossas vidas um sentido, então nossas vidas teriam sentido mesmo se a morte acabasse com elas para sempre.
Será realmente o caso, entretanto, que a ausência de um plano maior para nossas vidas tornaria a vida sem sentido? Aqui, também, um momento de reflexão mostrará que a falta de um propósito maior na vida é irrelevante para o seu sentido. Como um propósito maior para nossas vidas lhes daria um sentido? Suponha, por exemplo, que venhamos a descobrir que milhões de anos atrás extraterrestres manipularam geneticamente os hominídeos para produzir uma espécie mais inteligente, adequada para suas necessidades de trabalho escravo e estes extraterrestres ainda não voltaram à Terra para nos escravizar. Neste caso, nossa existência seria parte de um plano maior e daria um sentido às nossas vidas para os extraterrestres, mas isto não daria sentido a elas para nós.
Sermos parte de um plano superior pode apenas dar sentido a nossas vidas se aceitarmos nosso papel no tal plano como importante para nós. Além disso, enquanto formos ignorantes a respeito de um suposto plano maior para nossas vidas — e certamente somos ignorantes a esse respeito —, não temos como saber qual é o nosso papel neste plano e, portanto, ele não é capaz de fazer nossa vida ter sentido. Nossas atividades são válidas por elas mesmas, e não porque atendem a algum propósito transcendental desconhecido.
Estas considerações mostram que nós devemos criar nosso próprio sentido para nossas vidas, independentemente de essas vidas servirem ou não a um propósito maior. Se nossas vidas têm ou não sentido para nós depende de como as julgamos. A ausência ou presença de algum propósito superior é tão irrelevante quanto a finalidade da morte. A alegação de que nossas vidas são, “em última análise”, inúteis não faz sentido porque elas teriam ou não sentido independentemente do que fizéssemos. Questões sobre o sentido da vida são questões sobre valores. Nós atribuímos valores para coisas na vida em vez de descobri-los. Não pode haver sentido na vida senão aquele que criamos para nós mesmos, pois o universo não é um ser consciente que pode atribuir valores para as coisas.
O que faz nossas vidas terem sentido é acharmos que as atividades que fazemos valem a pena. Nossa determinação para levar adiante projetos que criamos para nós mesmos dá sentido às nossas vidas. Sentimos que a vida é inútil quando a maior parte dos desejos que julgamos importantes é frustrada. Achar nossa vida importante ou não depende de quais objetivos importantes são frustrados. O julgamento que fazemos de nossas vidas nestes pontos é igualmente independente de a vida ser ou não eterna ou de ela fazer ou não parte de um propósito maior. Talvez o segredo de uma vida com sentido seja dar importância a aqueles objetivos que podemos atingir e minimizar aqueles que não podemos — desde que saibamos a diferença entre eles.

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Título original:  Death and the Meaning of Life. Fonte: https://infidels.org/kiosk/article/death-and-the-meaning-of-life-55.html.