Como sabemos, há já um bom tempo o esloveno Slavoj Zizek, teórico social de reconhecida estatura nos dias atuais, tem procurado explicar a abordagem lacaniana do desejo pela análise da cultura moderna. Na entrevista abaixo, ele oferece um panorama dessa perspectiva.
Zizek: 'A traição do desejo tem um nome - a felicidade'
Como você
se situa em relação à idéia de que nós vivemos numa sociedade em que a maioria
de nossos desejos seriam alienados?
Slavoj Zizek - É preciso ser prudente. Toda a temática dos anos
1960, em torno da crítica da "sociedade de consumo", tem sido que nos
oferecem pequenas satisfações, pequenos momentos de felicidade, prazeres bobos
para nos privar dos "verdadeiros" desejos. Eu creio que esta é uma
fórmula demasiado ingênua. Em La Marionette et le Nain, eu falo a
respeito dos ovos Kinder Surprise. A maioria das crianças compra ovos Kinder
pela surpresa. Eles nem sempre se dão o tempo de comer o chocolate. Trata-se de
uma lógica do desejo, e não do consumo. Os ovos Kinder são o modelo de todos
esses produtos que nos prometem alguma coisa "a mais" do que aquilo
que poderíamos consumir, como essas embalagens em que está escrito: "Numerosos
prêmios a ganhar no interior". É preciso, pois, resguardar-se ante uma
mitologia que oporia nossos "verdadeiros" desejos e uma sociedade de
consumo toda ocupada em aliená-los. Tome uma certa vulgata
"deleuziana" de nossos dias: ela desenvolve um modelo que repousa
sobre a oposição entre a organização hierárquica, sistemática, o Estado, o
"Império", e os fluxos nômades, a "multidão" dos desejos.
Mas, o capitalismo atual é precisamente nômade. Por que e como se vai
combatê-lo, quando se começou a esquecê-lo? É como esses feministas americanos
que atacam a sociedade contemporânea, como se ela ainda repousasse sobre um
modelo de autoridade patriarcal. A estrutura subjetiva do capitalismo
contemporâneo é precisamente a do sujeito nômade, sem identidade fixa. Então nem
se pode dizer que é preciso combatê-lo, porque ele "reterritorializa"
os fluxos, os desejos, pois a "reterritorialização" é a própria
máquina que desencadeia o dinamismo. Os marxistas já tinham este sonho: manter
a estrutura, mas sem o lucro, a mais-valia. Eles queriam desembaraçar-se do
obstáculo, mantendo o dinamismo puro, mas eles não viram que eles perdiam o
dinamismo junto com o obstáculo. Então, não estou totalmente de acordo com esse tipo de crítica da
"sociedade de consumo". O que permanece em mim, é a idéia de que a
felicidade não pode ser uma categoria ética. Eu discutia recentemente com
amigos espanhóis. Eles me diziam que tinham gostado muito da descrição, que eu
faço em Bienvenue dans le désert du réel
[Bem-vindos ao deserto do real, livro traduzido para o português], da
"felicidade" na Tchecoslováquia comunista dos anos 1970-1980. Todo o
mundo era "feliz" naquela época: as necessidades materiais estavam
satisfeitas, embora não completamente, se bem que se podia estar satisfeito com
o que se possuía; tudo o que estava mal era imputado ao Outro, ao Partido; e
havia também um Outro com o qual sonhar de maneira realista, pois ele não
estava muito afastado, o Ocidente consumista. Segundo meus amigos, ocorria
exatamente a mesma coisa na Espanha durante os dez últimos anos sob Franco.
Existe mesmo uma piada espanhola para responder à questão: "Como era a
vida sob Franco? - A vida sob Franco era muito agradável". Não se deveria
legitimar uma mudança, dizendo que se vai trazer mais felicidade. A verdadeira
mudança política consiste sempre em modificar os próprios parâmetros daquilo
que se entende por felicidade.
Isso significa que se deve deixar de ser crítico com relação a esse tipo de
sociedade?
Slavoj Zizek - O que seria preciso criticar, é a própria idéia de
"consumo". Será que estamos realmente numa sociedade "de
consumo"? O modelo da mercadoria é hoje o café sem cafeína, a cerveja sem
álcool, o creme fresco sem gordura. A meu ver, isso significa primeiro que se
tem mais medo de consumir verdadeiramente. A gente quer comer, mas sem pagar o
preço. Caso se queira criticar a sociedade moderna, não é preciso se agarrar a
essa idéia de "consumo". Uma chave mais interessante seria a noção de
"vítima". É preciso compreender como isso determina nossa noção de
tolerância e nossa relação ao desejo do outro. O que quer dizer atualmente
"tolerância"? É simplesmente o inverso da noção de
"assédio". E, o que quer dizer "assédio"? Isso quer dizer
que o Outro, como sujeito de desejos, não deve se aproximar demasiadamente de
mim. Em outros termos, a tolerância é hoje exatamente a intolerância. A figura
da subjetividade torna-se completamente narcisista; ela se constitui no temor
da proximidade dos outros. Isso me lembra de quando Kierkegaard pergunta:
"Quem é o próximo que se deve amar?", e ele responde: "Aquele
que está morto".
Este problema do Outro está conexo com o do interdito e de seu papel no
funcionamento do desejo?
Sim, mas também aqui é preciso avançar, com prudência. De um lado, há hoje um
problema com o fracasso das ordens simbólicas - do "Grande Outro",
como diz Lacan. Isso conduz a um regime de interiorização das regras, e então,
segundo Freud, a uma hipertrofia do superego. Ora, como Lacan o havia visto
bem, o superego funciona como imperativo de gozo e também como interdito. A
conseqüência paradoxal e trágica é uma corrida desenfreada ao gozo que acaba,
evidentemente, na impossibilidade de gozar, pois o superego exige cada vez
mais. Meus amigos psicanalistas me contam que hoje em dia o sentido de culpabilidade
de seus pacientes não é mais fundado sobre o interdito, mas sobre esta injunção
de gozar, "de aproveitar". Agora, as pessoas não se sentem mais
culpadas, quando têm prazeres ilícitos, como antes, mas quando não são capazes
de aproveitá-los, quando não chegam a gozar. Mas, de outro lado, não se deve
concluir, com certos semi-lacanianos como Pierre Legendre, que seja preciso
restabelecer a Lei e a Ordem simbólica como espaço de transgressão. Lacan era
grande inimigo do pensamento de Bataille, e isso não somente por razões
puramente pessoais: o problema, a seus olhos, é que o desejo se encontra
justamente, em Bataille, totalmente edificado sobre a transgressão. A psicanálise tem aqui um papel essencial a desempenhar. Todos os outros
discursos adquirem a forma de injunção para gozar, para buscar a felicidade.
Mesmo o Dalai-Lama aderiu! A psicanálise é um discurso que não impede de gozar,
mas que permite justamente não gozar. Você pode gozar, mas não sob a
forma de uma regra, de uma interiorização "superegoica". Por isso, o
pensamento freudiano é mais atual do que nunca. Diz-se hoje por toda a parte,
mesmo entre pessoas favoráveis à psicanálise, que Freud está ultrapassado, que
ele é filho de uma sociedade burguesa, vitoriana, fundada sobre interditos fortes,
que já não têm mais sentido hoje em dia. Mas, seu problema jamais esteve na
repressão ou no interdito: ele estava antes no paradoxo de uma permissão que
bloqueia o gozo. Não é na atualidade que podemos desembaraçar-nos desta imagem
simplista de um Freud que combate a opressão sexual. Todos os freudo-marxistas
inteligentes o compreenderam. Por isso, Adorno sempre criticou Reich e sua
idéia de uma explosão orgástica.
Em Bienvenue dans le désert du réel [Bem-vindo ao deserto
do real], você tem esta fórmula, da qual você diz que ela é característica do
que nos ensina a psicanálise: "a traição de desejo tem um nome: a
felicidade".
A concepção de Lacan - seu lado hegeliano e mesmo sartreano -, é que o desejo é
transcendência, falta, abertura, enquanto o prazer, ou a felicidade, é
equilíbrio, homeostase. Deleuze defendeu esta idéia de modo ainda mais radical,
quando ele disse que o masoquismo ou o amor cortês eram a manifestação do
desejo em estado puro, o desejo que não necessita de satisfação, porque ele já
é, por si mesmo, sua própria satisfação. Eu desenvolvi esta idéia em Subversion
du sujet (Presses universitaires de Rennes, 1999). O desejo parece, primeiramente, "patológico", ou seja, suscitado e
orientado pelos objetos que nos afetam. Ele não tem a dignidade de um a
priori transcendental. A idéia que havia defendido Bernard Baas, em
seu belíssimo livro Le Désir pur [O desejo puro], é que Lacan
"transcendentalizou" precisamente o desejo. É o projeto de seu
célebre texto Kant avec Sade: mostrar que existe uma capacidade do
desejo puro que não necessita de uma referência ao objeto" - o que Lacan
chama de "o pequeno objeto a"(le
petit objet a) torna-se, então, precisamente uma posição
estrutural, uma espécie de objeto a priori. Ele serve
paradoxalmente para subtrair o desejo de sua vinculação ao objeto, à sua
realidade patológica. A ética do desejo é de permanecer fiel a este a
priori. Como o diz Lacan: o desejo último é, pois, aquele da não-satisfação
do desejo, o desejo de permanecer aberto.
Você não deu solução ao dilema. De um lado, tem-se, pois, o apelo a um
restabelecimento da ordem simbólica, da Lei: do outro, a crítica pós-moderna,
relativizando as normas e chegando a uma interiorização que finalmente bloqueia
o gozo, erigindo a ele próprio em norma suprema. Mas, o que mais se poderia ter?
Slavoj Zizek - Eu creio que o próprio Lacan não encontrou a
fórmula. Em Freud, há uma concepção da civilização como produto do crime
original. A sociedade se transforma em comunidade no crime, no assassinato do
Pai. É o modelo que se encontra em Totem e Tabu. A questão é:
existe um outro modo de socialização, além da relação a uma ordem simbólica?
Este é também o problema da ética psicanalítica. Há um Lacan de quem não gosto.
É aquele que diz que o fim da experiência analítica é a "travessia do
fantasma", vivida como experiência intensiva, excepcional. Depois, só se
poderá retornar ao espaço social e simplesmente "jogar o jogo", com
mais ironia. O problema, para mim, é que esta postura é precisamente aquela à
qual induz o capitalismo contemporâneo. A psicanálise precisa dar-se conta que
a posição antiga, na qual a sociedade carrega os interditos e o inconsciente as
pulsões desregradas, está hoje invertido: é a sociedade que é hedonista,
desregrada, e o inconsciente que regula. Vê-se muito bem com o estatuto das crenças, que me interessam particularmente
em La Marionette et le Nain: hoje se quer bem crer, mas por meio
dos outros, de maneira distanciada. Conta-se esta história a propósito de Niels
Bohr: um amigo que o visitava, viu presa à porta uma ferradura de cavalo. Ele
lhe comunicou seu espanto em face de tal marca de superstição. E Bohr teve esta
resposta: "Sem dúvida não creio nisso, mas me disseram que isso funciona mesmo
que não se creia nisso". Para mim, este é o arquétipo da crença
moderna. Todos os meus amigos judeus dizem: "Não se come carne de porco,
mas, certamente não se crê nisso". Trata-se de uma crença objetivada, o
que se chama hoje em dia de uma "cultura".
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Fonte: http://zizek.weebly.com/texto-011.html
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