Conceitualmente falando, a noção de verdade tal qual é utilizada no contexto da civilização ocidental decorre de um tripé originário: do grego aletheia, do latim veritas e do hebraico emunahn. Respectivamente, em síntese, verdadeiro é o que é visto, o fato em si; o que está registrado numa narrativa; o verdadeiro diz respeito à confiança, crença em que o anunciado será cumprido (emunah é uma palavra da mesma família de amém, isto é, 'assim seja'). Se, em sentido conceitual, a verdade é originária desse tripé, uma abordagem paradigmática sobre a mentiria, em conexão, claro, com a verdade e a moral, foi empreendida pelo alemão Friedrich Wilhelm Nietzsche. Bem ao seu estilo, de não deixar 'pedra sobre pedra', Nietzsche põe a descoberto questões sobre o comportamento humano que, convenhamos, são hoje de extrema atualidade, sobretudo numa época em que as novas tecnologias/mídias sociais superdimensionam o potencial para o exercício da desfaçatez. Terá dito Confúcio, certa feita, que uma das características da pessoa sábia é deixar que o tolo pense que ele a engana. A leitura, em profundidade, diga-se, de Sobre a Verdade e a Mentira no Sentido Extra-moral, de Nietzsche, talvez possa abrir caminhos - para 'as mentes versadas nos jogos do espírito' - que levem às razões que estão por trás da afirmativa de Confúcio, afinal, como ele próprio disse, 'quem não conhece o valor das palavras não saberá conhecer os seres humanos'. Abaixo, um extrato do mencionado trabalho de Nietzsche, retirado do volume da Coleção Os Pensadores a ele dedicado (São Paulo: Nova Cultural, 1999).
Sobre Verdade e
Mentira no Sentido Extra-Moral
O autoengano dos seres humanos: próximo e distante |
Friedrich
Wilhelm NIETZSCHE
Em algum remoto
rincão do universo cintilante que se derrama em um sem-número de sistemas
solares, havia uma vez um astro, em que animais inteligentes inventaram o
conhecimento. Foi o minuto mais soberbo e mais mentiroso da “história
universal”: mas também foi somente um minuto. Passados poucos fôlegos da
natureza congelou-se o astro, e os animais inteligentes tiveram de morrer. –
Assim poderia alguém inventar uma fábula e nem por isso teria ilustrado
suficientemente quão lamentável, quão fantasmagórico e fugaz, quão sem
finalidade e gratuito fica o intelecto humano dentro da natureza. Houve
eternidades, em que ele não estava; quando de novo ele tiver passado, nada terá
acontecido. Pois não há para aquele intelecto nenhuma missão mais vasta, que
conduzisse além da vida humana. Ao contrário, ele é humano, e somente seu
possuidor e genitor o toma tão pateticamente, como se os gonzos do mundo
girassem nele. Mas se pudéssemos entender-nos com a mosca, perceberíamos então
que também ela bóia no ar com esse páthos e sente em si o
centro voante deste mundo. Não há nada tão desprezível e mesquinho na natureza
que, com um pequeno sopro daquela força do conhecimento, não transbordasse logo
como um odre; e como todo transportador de carga quer ter seu admirador, mesmo
o mais orgulhoso dos homens, o filósofo, pensa ver por todos os lados os olhos
do universo telescopicamente em mira sobre seu agir e pensar.
É notável que o
intelecto seja capaz disso, justamente ele, que foi concedido apenas como meio
auxiliar aos mais infelizes, delicados e perecíveis dos seres, para firmá-los
um minuto na existência, da qual, sem essa concessão, eles teriam toda razão
para fugir tão rapidamente quanto o filho de Lessing. Aquela altivez associada ao
conhecer e sentir, nuvem de cegueira pousada sobre os olhos e sentidos dos
homens, engana-os pois sobre o valor da existência, ao trazer em si a mais
lisonjeira das estimativas de valor sobre os próprio conhecer. Seu efeito mais
geral é engano – mas mesmo os efeitos mais particulares trazem em si algo do
mesmo caráter.
O intelecto, como um
meio para a conservação do indivíduo, desdobra suas forças mestras no disfarce;
pois este é o meio pelo qual os indivíduos mais fracos, menos robustos, se
conservam, aqueles aos quais está vedado travar uma luta pela existência com
chifres ou presas aguçadas. No homem essa arte do disfarce chega a seu ápice;
aqui o engano, o lisonjear, mentir e ludibriar, o falar-por-trás-das-costas, o
representar, o viver em glória de empréstimo, o mascarar-se, a convenção
dissimulante, o jogo teatral diante de outros e diante de si mesmo, em suma, o
constante bater de asas em torno dessa única chama que é a
vaidade, é a tal ponto a regra e a lei que quase nada é mais inconcebível do que
como pôde aparecer entre os homens um honesto e puro impulso à verdade. Eles
estão profundamente imersos em ilusões e imagens de sonho, seu olho apenas
resvala às tontas pela superfície das coisas e vê “formas”, sua sensação não
conduz em parte alguma à verdade, mas contenta-se em receber estímulos e como
que dedilhar um teclado às costas das coisas. Por isso o homem, à noite,
através da vida, deixa que o sonho lhe minta, sem que seu sentimento moral
jamais tentasse impedi-lo; no entanto, deve haver homens que pela força de
vontade deixaram o hábito de roncar. O que sabe propriamente o homem sobre si
mesmo! Sim, seria ele sequer capaz de alguma vez perceber-se completamente,
como se estivesse em uma vitrina iluminada? Não lhe cala a natureza quase tudo,
mesmo sobre seu corpo, para mantê-lo à parte das circunvoluções dos intestinos,
do fluxo rápido das correntes sanguíneas, das intrincadas vibrações das fibras,
exilado e trancado em uma consciência orgulhosa, charlatã! Ela atirou fora a
chave: e ai da fatal curiosidade que através de uma fresta foi capaz de sair
uma vez do cubículo da consciência e olhar para baixo, e agora pressentiu que
sobre o implacável, o ávido, o insaciável, o assassino, repousa o homem, na
indiferença de seu não-saber, e como que pendente em sonhos sobre o dorso de um
tigre. De onde neste mundo viria, nessa constelação, o impulso à verdade!
Enquanto o indivíduo,
em contraposição a outros indivíduos, quer conservar-se, ele usa o intelecto,
em um estado natural das coisas, no mais das vezes somente para a
representação: mas, porque o homem, ao mesmo tempo por necessidade e tédio,
quer existir socialmente e em rebanho, ele precisa de um acordo de paz e se
esforça para que pelo menos a máxima bellum omnium contra omnes [1]desapareça
do seu mundo. Esse tratado de paz traz consigo algo que parece ser o primeiro
passo para alcançar aquele enigmático impulso à verdade. Agora, com efeito, é
fixado aquilo que doravante deve ser “verdade”, isto é, é descoberta uma
designação uniformemente válida e obrigatória das coisas, e a legislação da
linguagem dá também as primeiras leis da verdade: pois surge aqui pela primeira
vez o contraste entre verdade e mentira. O mentiroso usa as designações
válidas, as palavras, para fazer aparecer o não-efetivo como efetivo; ele diz,
por exemplo: “sou rico”, quando para seu estado seria precisamente “pobre” a
designação correta. Ele faz mau uso das firmes convenções por meio de trocas
arbitrárias ou mesmo inversões dos nomes. Se ele o faz de maneira egoísta e de
resto prejudicial, a sociedade não confiará mais nele e com isso o excluirá de
si. Os homens, nisso, não procuram tanto evitar serem enganados, quanto serem
prejudicados pelo engano: o que odeiam, mesmo nesse nível, no fundo não é a
ilusão, mas as conseqüências nocivas, hostis, de certas espécies de ilusões. É
também em um sentido restrito semelhante que o homem quer somente a verdade:
deseja as conseqüências da verdade que são agradáveis e conservam a vida:
diante do conhecimento puro sem conseqüências ele é indiferente, diante das
verdades talvez perniciosas e destrutivas ele tem disposição até mesmo hostil.
E além disso: o que se passa com aquelas convenções da linguagem? São talvez
frutos do conhecimento, do senso de verdade: as designações e as coisas se recobrem?
É a linguagem a expressão adequada de todas as realidades?
Somente por
esquecimento pode o homem alguma vez chegar a supor que possui uma “verdade” no
grau acima designado. Se ele não quiser contentar-se com a verdade na forma da
tautologia, isto é, com os estojos vazios, comprará eternamente ilusões por
verdades. O que é uma palavra? A figuração de um estímulo nervoso em sons. Mas
concluir do estímulo nervoso uma causa fora de nós já é resultado de uma
aplicação falsa e ilegítima do princípio da razão. Como poderíamos nós, se
somente a verdade fosse decisiva na gênese da linguagem, se somente o ponto de
vista da certeza fosse decisivo nas designações, como poderíamos no entanto
dizer: a pedra é dura: como se para nós esse “dura” fosse conhecido ainda de
outro modo, e não somente como estimulação inteiramente subjetiva! Dividimos as
coisas por gêneros, designamos a árvore como feminina, o vegetal como
masculino: que transposições arbitrárias! A que distância voamos além do cânone
da certeza! Falamos de uma Schlange (cobra): a designação não
se refere a nada mais do que o enrodilhar-se, e, portanto poderia também caber
ao verme. [2] Que delimitações arbitrárias, que preferências
unilaterais, ora por esta, ora por aquela propriedade de uma coisa! As diferentes
línguas, colocadas lado a lado, mostram que nas palavras nunca importa a
verdade, nunca uma expressão adequada: pois senão não haveria tantas línguas. A
“coisa em si” (tal seria justamente a verdade pura sem conseqüências) é, também
para o formador da linguagem, inteiramente incaptável e nem sequer algo que
vale a pena. Ele designa apenas as relações das coisas aos homens e toma em
auxílio para exprimi-las as mais audaciosas metáforas. Um estímulo nervoso,
primeiramente transposto em uma imagem! Primeira metáfora. A imagem, por sua
vez, modelada em um som! Segunda metáfora. E a cada vez completa mudança de
esfera, passagem para uma esfera inteiramente outra e nova. Pode-se pensar em
um homem, que seja totalmente surdo e nunca tenha tido uma sensação do som e da
música: do mesmo modo que este, porventura, vê com espanto as figuras sonoras
de Chladni [3] desenhadas na areia, encontra suas causas na
vibração das cordas e jurará agora que há de saber o que os homens denominam o
“som”, assim também acontece a todos nós com a linguagem. Acreditamos saber
algo das coisas mesmas, se falamos de árvores, cores, neve e flores, e no
entanto não possuímos nada mais do que metáforas das coisas, que de nenhum modo
correspondem às entidades de origem. Assim como o som convertido em figura na
areia, assim se comporta o enigmático X da coisa em si, uma vez como estímulo
nervoso, em seguida como imagem, enfim como som. Em todo caso, portanto, não é
logicamente que ocorre a gênese da linguagem, e o material inteiro, no qual e com
o mais tarde o homem de verdade, o pesquisador, o filósofo, trabalha e
constrói, provém, se não de Cucolândia das Nuvens, em todo caso não da essência
das coisas.
Pensemos ainda, em
particular, na formação dos conceitos. Toda palavra torna-se logo conceito
justamente quando não deve servir, como recordação, para a vivência primitiva,
completamente individualizada e única à qual deve seu surgimento, mas ao mesmo
tempo tem de convir a um sem-número de casos, mais ou menos semelhantes, isto
é, tomados rigorosamente, nunca iguais, portanto, a casos claramente desiguais.
Todo conceito nasce por igualação do não-igual. Assim como é certo que nunca
uma folha é formado por arbitrário abandono dessas diferenças individuais, por
um esquecer-se do que é distintivo, e desperta então a representação, como se
na natureza além das folhas houvesse algo, que fosse “folha”, uma espécie de
folha primordial, segundo a qual todas as folhas fossem tecidas, desenhadas,
recortadas, coloridas, frisadas, pintadas, mas por mão inábeis, de tal modo que
nenhum exemplar tivesse saído correto e fidedigno como cópia fiel da forma
primordial. Denominamos um homem “honesto”; por que ele agiu hoje tão
honestamente? – perguntamos. Nossa resposta costuma ser: por causa de sua
honestidade. A honestidade! Isto quer dizer, mais uma vez: a folha é a causa
das folhas. O certo é que não sabemos nada da qualidade essencial, que se
chamasse “a honestidade”, mas sabemos, isso sim, de numerosas ações
individualizadas, portanto desiguais, que igualamos pelo abandono do desigual e
designamos, agora, ações honestas; por fim, formulamos a partir delas umaqualitas
occulta com o nome: “a honestidade”. A desconsideração do individual e
efetivo nos dá o conceito, assim como nos dá também a forma, enquanto a natureza
não conhece formas nem conceitos, portanto também não conhece espécies, mas
somente um X, para nós inacessível e indefinível. Pois mesmo nossa oposição
entre indivíduo e espécie é antropomórfica e não provém da essência das coisas,
mesmo se não ousamos dizer que não lhe corresponde: isto seria, com efeito, uma
afirmação dogmática e com tal tão indemonstrável quanto seu contrário.
O que é a verdade,
portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim,
uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente,
transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas,
canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o
são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam
sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas.
Continuamos ainda sem
saber de onde provém o impulso à verdade: pois até agora só ouvimos falar da
obrigação que a sociedade, para existir, estabelece: de dizer a verdade, isto
é, de usar as metáforas usuais, portanto, expresso moralmente: da obrigação de
mentir segundo uma convenção sólida, mentir em rebanho, em um estilo
obrigatório para todos. Ora, o homem esquece sem dúvida que é assim que se passa
com ele: mente, pois, da maneira designada, inconscientemente e segundo hábitos
seculares – e justamente por essa inconsciência, justamente por
esse esquecimento, chega ao sentimento da verdade. No sentimento de estar
obrigado a designar uma coisa como “vermelha”, outra como “fria”, uma terceira
como “muda”, desperta uma emoção que se refere moralmente à verdade: a partir
da oposição ao mentiroso, em quem ninguém confia, que todos excluem, o homem
demonstra a si mesmo o que há de honrado, digno de confiança e útil na verdade.
Coloca agora seu agir como ser “racional” sob a regência das abstrações; não
suporta mais ser arrastado pelas impressões súbitas, pelas intuições,
universaliza antes todas essas impressões em conceitos mais descoloridos, mais
frios, para atrelar a eles o carro de seu viver e agir. Tudo o que destaca o
homem do animal depende dessa aptidão de liquefazer a metáfora intuitiva em um
esquema, portanto de dissolver uma imagem em um conceito. Ou seja, no reino
daqueles esquemas, é possível algo que nunca poderia ter êxito sob o efeito das
primeiras impressões intuitivas: edificar uma ordenação piramidal por castas e
graus, criar um novo mundo de leis, privilégios, subordinações, demarcações de
limites, que ora se defronta ao outro mundo intuitivo das primeiras impressões
como o mais sólido, o mais universal, o mais conhecido, o mais humano e, por
isso, como o regulador e imperativo. Enquanto cada metáfora intuitiva é
individual e sem igual e, por isso, sabe escapar a toda rubricacão, o grande edifício
dos conceitos ostenta a regularidade rígida de um columbário romano e respira
na lógica aquele rigor e frieza, que são da própria matemática. Quem é bafejado
por essa frieza dificilmente acreditará que até mesmo o conceito, ósseo e
octogonal como um dado e tão fácil de deslocar quanto este, é somente o resíduo
de uma metáfora, e que a ilusão da transposição artificial de um estímulo
nervoso em imagens, se não é a mãe, é pelo menos a avó de todo e qualquer
conceito. No interior desse jogo de dados do conceito, porém, chama-se
“verdade” usar cada dado assim como ele é designado, contar exatamente seus
pontos, formar rubricas corretas e nunca pecar contra a ordenação de castas e a
seqüência das classes hierárquicas. Assim como os romanos e etruscos retalhavam
o céu com rígidas linhas matemáticas e em um espaço assim delimitado confinavam
um deus, como em um templo, assim cada povo tem sobre si um tal céu conceitual
matematicamente repartido e entende agora por exigência de verdade que cada
deus conceitual seja procurado somente em sua esfera. Pode-se
muito bem, aqui, admirar o homem como um poderoso gênio construtivo, que
consegue erigir sobre fundamentos móveis e como que sobre a água corrente um
domo conceitual infinitamente complicado: – sem dúvida, para encontrar apoio
sobre tais fundamentos, tem de ser uma construção como que de fios de aranha,
tênue a ponto de ser carregada pelas ondas, firme a ponto de não ser espedaçada
pelo sopro de cada vento. Como gênio construtivo o homem se eleva, nessa medida,
muito acima da abelha: esta constrói com cera, que recolhe da natureza, ele com
a matéria muito mais tênue dos conceitos, que antes tem de fabricar a partir de
si mesmo. Ele é, aqui, muito admirável – mas só que não por seu impulso à
verdade, ao conhecimento puro das coisas. Quando alguém esconde uma coisa atrás
de um arbusto, vai procurá-la ali mesmo e a encontra, não há muito que gabar
nesse procurar e encontrar: e é assim que se passa com o procurar e encontrar
da “verdade” no interior do distrito da razão. Se forjo a definição de animal
mamífero e em seguida declaro, depois de inspecionar um camelo: “Vejam, um
animal mamífero”, com isso decerto uma verdade é trazida à luz, mas ela é de
valor limitado, quero dizer, é cabalmente antropomórfica e não contém um único
ponto que seja “verdadeiro em si”, efetivo e universalmente válido, sem levar
em conta o homem. O pesquisador dessas verdades procura, no fundo, apenas a
metamorfose do mundo em homem, luta por um entendimento do mundo como uma coisa
à semelhança do homem e conquista, no melhor dos casos, o sentimento de uma
assimilação. Semelhante ao astrólogo que observava as estrelas a serviço do
homem e em função de sua sorte e sofrimento, assim um tal pesquisador observa o
mundo inteiro como ligado ao homem, como a repercussão infinitamente refratada
de um som primordial, do homem, como a imagem multiplicada de uma imagem
primordial, do homem. Seu procedimento consiste em tomar o homem por medida de
todas as coisas: no que, porém, parte do erro de acreditar que tem essas coisas
imediatamente como objetos puros diante de si. Esquece, pois, as metáforas
intuitivas de origem, como metáforas, e as toma pelas coisas mesmas.
(...)
§ 2
Esse impulso à
formação de metáforas, esse impulso fundamental do homem, que não se pode
deixar de levar em conta nem por um instante, porque com isso o homem mesmo não
seria levado em conta, quando se constrói para ele, a partir de suas criaturas
liquefeitas, os conceitos, um novo mundo regular e rígido como uma praça forte,
nem por isso, na verdade, ele é subjugado e mal é refreado. Ele procura um novo
território para sua atuação e um outro leito de rio, e o encontra no mito e,
em geral, na arte. Constantemente ele embaralha as rubricas e
compartimentos dos conceitos propondo novas transposições, metáforas,
metonímias, constantemente ele mostra o desejo de dar ao mundo de que dispõe o
homem acordado uma forma tão cromaticamente irregular, inconseqüentemente
incoerente, estimulante e eternamente nova como a do mundo do sonho. É verdade
que somente pela teia rígida e regular do conceito o homem acordado tem certeza
clara de estar acordado, e justamente por isso chega às vezes à crença de que
sonha, se alguma vez aquela teia conceitual é rasgada pela arte. Pascal tem
razão quando afirma que, se todas as noites nos viesse o mesmo sonho,
ficaríamos tão ocupados com ele como as coisas que vemos cada dia: “Se um
trabalhador manual tivesse certeza de sonhar cada noite, doze horas a fio, que
é rei, acredito”, diz Pascal, “que seria tão feliz quanto um rei que todas as
noites durante doze horas sonhasse que é um trabalhador manual”. O dia de
vigília de um povo de emoções míticas, por exemplo os gregos antigos, é de
fato, pelo milagre constantemente atuante, que o mito aceita, mais semelhantemente
ao sonho do que o dia do pensador que chegou à sobriedade da ciência. Se uma
vez cada árvore pode falar como ninfa ou sob o invólucro de um touro um deus
pode seqüestrar donzelas, se mesmo a deusa Atena pode subitamente ser vista
quando, com sua bela parelha, no séquito de Pisístrato, passa pelas praças de
Atenas – e nisso acredita o ateniense honrado –, então a cada instante, como no
sonho, tudo é possível, e a natureza inteira esvoaça em torno do homem como se
fosse apenas uma mascarada dos deuses, para os quais seria apenas uma diversão
enganar os homens em todas as formas.
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[1] Guerra de todos contra todos. (N. do E.)
[2] A palavra Schlange é
diretamente derivada, por afonia, do verbo schlingen (torcer,
enroscar), no sentido específico da forma proposicionalsich schlingen,
que equivale ao de sich winden (enrodilhar-se). Em português a
ligação entre a palavra cobra e o verbo colear é
bem mais remota: mais próxima, talvez, seria a relação entre serpente e serpear.
Preferimos, em todo caso, manter o exemplo original do texto. (N. do T.)
[3] Chladni, Ernst Friedrich –
físico alemão (1756-1826); celebrizou-se por suas engenhosas experiências sobre
a teoria do som. (N. do T.)
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