O artigo abaixo, do diplomata Celso Amorim, é curto, mas significativo. Trata da morte recente, em atentado terrorista - no Líbano - da pequena brasileira Malak Zahwe, e do sentido que deve ter a política externa do país nos dias de hoje. É também, nas entrelinhas, um recado ao "Tea Party" brasileiro.
Brasileira Malak, 17 anos, em momento de lazer: morta em atentado |
Nós
choramos por ti, Malak Zahwe
Celso Amorim
A futilidade
de atitudes isolacionistas, para além da insensibilidade, refletem uma visão
pouco realista do mundo de hoje
É
impossível para qualquer pessoa minimamente sensível, especialmente se for
brasileira, deixar de emocionar-se com as imagens estampadas na Folha em que aparecem, em uma foto maior, a
cena de destruição e horror causada pela explosão de um carro-bomba e, em um
encarte, o retrato de uma das vítimas, uma jovem --quase uma menina-- em uma
pose lúdica, como numa brincadeira de criança.
Malak
Zahwe nasceu em Foz do Iguaçu e se mudou com a família para o Líbano, onde
viveu a maior parte de sua curta existência.
A
reportagem é acompanhada das fotos de outros brasileiros mortos em ataques
terroristas ou, em um caso, vítima de assassinato depois de um sequestro com
objetivo de extorsão. Como ministro das Relações Exteriores do governo Lula,
acompanhei dois desses casos de perto, seja pelas implicações pessoais e
políticas (o atentado que roubou a vida a Sérgio Vieira de Mello), seja pelo
esforço, afinal sem êxito, de salvar o engenheiro brasileiro João Vasconcellos,
raptado por um dos grupos terroristas que proliferaram no Iraque após a invasão
norte-americana que derrubou Saddam Hussein.
A
esses poderia juntar outro episódio trágico que guardou relação presumida,
ainda que falsa, com o terrorismo: a morte de Jean Charles, abatido no metrô de
Londres por uma polícia que gaba ser civilizada segundo os métodos do Velho
Oeste: primeiro atira, depois pergunta.
Todas
essas situações, como a da morte absurda da menina Malak Zahwe, têm um ponto em
comum. Elas ilustram, no horror que delas emana, como os fatos da realidade internacional
se mesclam cada vez mais com relações afetivas e emoções pessoais concretas. Em
outras palavras, como o global e o particular se cruzam e se entrechocam no
mundo contemporâneo.
Para
o governo brasileiro e para o Itamaraty, elas significam que o trabalho,
tipicamente consular, de proteger os brasileiros no exterior está
inextricavelmente ligado a tarefas político-diplomáticas, como a da promoção da
paz. Também para a Defesa e as nossas Forças Armadas, frequentemente chamadas a
atuar em missões de paz, como no Haiti e no próprio Líbano, esse entrelaçamento
não é indiferente.
Essas
interconexões ficaram claras quando tivemos que atender aos compatriotas no
Líbano que se sentiram ameaçados pelos bombardeios de Israel, na guerra que,
teoricamente, seria contra o Hizbullah, mas que vitimou muitos civis.
Naquela
ocasião, organizamos uma verdadeira ponte aérea para resgatar os brasileiros
refugiados em Damasco ou em Adana, na Turquia. Nesta cidade, ouvi histórias
comoventes como a de uma mulher que sobreviveu por dias com quatro filhos
pequenos, praticamente sem poder alimentá-los, em um porão sob os escombros de
uma casa atingida. E outra de uma senhora que se abraçou a mim chorando, num
misto de alívio e gratidão, que dizia ser aquela a terceira vez em que fugia de
uma guerra, mas a primeira em que tinha tido apoio do governo brasileiro.
Na
sequência da segunda de minhas viagens a Adana, fui a Beirute, ainda envolta
pela fumaça dos bombardeios, no dia seguinte ao cessar-fogo. Levava, em um
Hercules da FAB, a solidariedade do governo e do povo brasileiro, expressa por
meio de donativos de alimentos, remédios e roupa. Visitei o sul da cidade --a
mesma área em que ocorreu a explosão que roubou a vida da pequena Malak. Pude
ver, em meio aos destroços, bandeiras e camisetas da seleção brasileira,
lembranças da Copa do Mundo recém-encerrada e testemunhas eloquentes da relação
profunda daquela terra com o Brasil.
Essas
imagens me voltam à mente com força quando vejo a foto da nossa jovem
compatriota. Elas me fazem refletir sobre a futilidade de atitudes
isolacionistas, que, para além de insensibilidade, refletem uma visão pouco
realista do mundo de hoje. Aos que defendem essas posições, caberia talvez
responder como Hemingway: não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram
por ti. Eles dobram por Malak.
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