Cioran: 'não passamos de acólitos do tempo' |
Por Emil Cioran
A esfera da consciência reduz-se na acção;
por isso ninguém que aja pode aspirar ao universal, porque agir é agarrar-se às
propriedades do ser em detrimento do ser, a uma forma de realidade em prejuízo
da realidade. O grau da nossa emancipação mede-se pela quantidade das
iniciativas de que nos libertámos, bem como pela nossa capacidade de converter
em não-objecto todo o objecto. Mas nada significa falar de emancipação a
propósito de uma humanidade apressada que se esqueceu de que não é possível
reconquistar a vida nem gozá-la sem primeiro a ter abolido.
Respiramos demasiado depressa para sermos capazes de captar as coisas em si próprias ou de denunciar a sua fragilidade. O nosso ofegar postula-as e deforma-as, cria-as e desfigura-as, e amarra-nos a elas. Agito-me e portanto emito um mundo tão suspeito como a minha especulação, que o justifica, adopto o movimento que me transforma em gerador de ser, em artesão de ficções, ao mesmo tempo que a minha veia cosmogónica me faz esquecer que, arrastado pelo turbilhão dos actos, não passo de um acólito do tempo, de um agente de universos caducos.
Respiramos demasiado depressa para sermos capazes de captar as coisas em si próprias ou de denunciar a sua fragilidade. O nosso ofegar postula-as e deforma-as, cria-as e desfigura-as, e amarra-nos a elas. Agito-me e portanto emito um mundo tão suspeito como a minha especulação, que o justifica, adopto o movimento que me transforma em gerador de ser, em artesão de ficções, ao mesmo tempo que a minha veia cosmogónica me faz esquecer que, arrastado pelo turbilhão dos actos, não passo de um acólito do tempo, de um agente de universos caducos.
Empanturrados de sensações e do seu
corolário, o devir, somos seres não libertos, por inclinação e por princípio,
condenados de eleição, presas da febre do visível, pesquisadores desses enigmas
de superfície que estão à altura do nosso desânimo e da nossa trepidação.
Se queremos recuperar a nossa liberdade, devemos pousar o fardo da sensação, deixar de reagir ao mundo através dos sentidos, romper os nossos laços. Ora, toda sensação é um laço, tanto o prazer como a dor, tanto a alegria como a tristeza. Só se liberta o espírito que, puro de toda a convivência com seres ou com objectos, se aplica à sua vacuidade.
Resistir à sua felicidade é coisa que a maioria consegue; a infelicidade, no entanto, é muito mais insidiosa. Já a provásteis? Jamais vos sentires saciados, procurá-la-eis com avidez e de preferência nos lugares onde ela não se encontra, mas projectá-la-eis neles, porque, sem ela, tudo vos pareceria inútil e baço. Onde quer que a infelicidade se encontre, expulsa o mistério e torna-o luminoso. Sabor e chave das coisas, acidente e obsessão, capricho e necessidade, far-vos-á amar a aparência no que ela tem de mais poderoso, de mais duradouro e de mais verdadeiro, e amarrar-vos-á para sempre porque, «intensa» por natureza, é, como toda a «intensidade», servidão, sujeição. A alma indiferente e nula, a alma desentravada - como chegar a ela? E como conquistar a ausência, a liberdade da ausência? Tal liberdade jamais figurará entre os nossos costumes, tal como neles não figurará o «sonho do espírito infinito».
Se queremos recuperar a nossa liberdade, devemos pousar o fardo da sensação, deixar de reagir ao mundo através dos sentidos, romper os nossos laços. Ora, toda sensação é um laço, tanto o prazer como a dor, tanto a alegria como a tristeza. Só se liberta o espírito que, puro de toda a convivência com seres ou com objectos, se aplica à sua vacuidade.
Resistir à sua felicidade é coisa que a maioria consegue; a infelicidade, no entanto, é muito mais insidiosa. Já a provásteis? Jamais vos sentires saciados, procurá-la-eis com avidez e de preferência nos lugares onde ela não se encontra, mas projectá-la-eis neles, porque, sem ela, tudo vos pareceria inútil e baço. Onde quer que a infelicidade se encontre, expulsa o mistério e torna-o luminoso. Sabor e chave das coisas, acidente e obsessão, capricho e necessidade, far-vos-á amar a aparência no que ela tem de mais poderoso, de mais duradouro e de mais verdadeiro, e amarrar-vos-á para sempre porque, «intensa» por natureza, é, como toda a «intensidade», servidão, sujeição. A alma indiferente e nula, a alma desentravada - como chegar a ela? E como conquistar a ausência, a liberdade da ausência? Tal liberdade jamais figurará entre os nossos costumes, tal como neles não figurará o «sonho do espírito infinito».
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Fonte: http://www.citador.pt/textos/o-grau-da-nossa-emancipacao-emil-michel-cioran
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