Em tempos de férias pelas paragens pernambucanas, é quase impossível não regressar às figuras da cena literária local. Ronildo Maia Leite e Potiguar Matos, desde logo, estão na primeira fila. O primeiro fez história com as suas crônicas publicadas no Jornal do Comércio e Diário de Pernambuco, sob o título de Bom Dia, Recife. Criador de diversos personagens, como A Guerrilheira Perfumada, O Bom Grisalho, O Gênio de Suspensórios, dentre outros, certa feita, Maia Leite foi instado a pronunciar-se sobre a ficção. Saiu-se como essa: 'a ficção não existe, tudo o que se escreve é, está sendo, já foi ou
está para acontecer. A ficção é a parte encabulada de uma história'. Disse mais: 'A
crônica é irmã gêmea do conto, os dois aparentados com o romance'. Maia Leite partiu em 2009, deixando muitas saudades, sobretudo para quem o conheceu e com ele conviveu, mesmo que pouco. A crônica da saudade, diria ele, essa 'eu só escreveu amanhã, camaradas', emendando em seguida com um 'de algum modo, a felicidade requer a curtição das agonias'. Reproduzo, abaixo, um seu bom dia.
Maia Leite: ficção, agonias e felicidade |
Bom-dia, Recife
Ronildo Maia Leite
Certa vez, perguntei a
Arthur da Távola o que seria escrever uma crônica. Teria o conto algo a ver com
a crônica? “A crônica é a canção da literatura”, ele me disse.
E disse mais:
“A crônica é, ao mesmo tempo, a poesia, o ensaio, a crítica, o
registro histórico, o fatual, o apontamento, a filosofia, o flagrante, o
miniconto, o retrato, o testemunho, a opinião, o depoimento, a análise, a
interpretação, a rapsódia, o humor. Polivalente. Poli/valete. De ouros.
Estava o cronista cronicando a cidade. Morreria o que estava
escrevendo ao meio-dia?
“A crônica é (e será) a leitura do futuro: compacta, rápida,
direta, aguda, penetrante, instantânea (dissolve-se com o uso diário),
biodegradável, sumindo sem poluir, sem degradar ou denegrir, oxalá deixando
algum perfume, saudade e brilho de vida no sorriso ou lágrima do leitor”, foi o
que dele escutei.
E escutei mais:
“A crônica é um hiato, interrupção da notícia, suspiro da frase,
desabafo do parágrafo, relax do estilo direto e seco da escrita de jornal ou
revista.”
Pensava o cronista em publicar um livro. Entregou-lhe recortes.
Valeria a pena, camarada Arthur? Aí ele escreveu:
“As crônicas de Ronildo Maia Leite são tudo isso: tácteis, diárias,
televisuais, políticas, poléticas, polêmicas, poéticas, de pólen, éticas,
hipotéticas, concretas, lindas a não mais poder, ora descrevem, de repente
opinam, são súbitas, vivas, vivaldas, agudas, elétricas. Ah, haver numa cidade
um rapsodo de sua lavra! Impressiona o amor do homem por sua cidade,
consciência de topofilia, integração profunda com seu ambiente. Tipos, sóis,
luas, cães, lendas, ruas, trabalhadores, vegetação. São ânsias de harmonia
várias, a começar pela social e acabar no sensual.”
“Raras vezes vi o Recife tão vivo, vário e multímodo. Só o grande
cronista o consegue. Nele se agitam o antropólogo, o sociólogo, o geógrafo, o
ativista, o escritor. Não é obra de uma especialidade, mas a santa e bendita
mistura da própria realidade. A realidade, costumo dizer, é multidisciplinar,
ai de quem a encasula na especialidade de seu domínio. Obra de um tímido
enamorado de seu meio, um poeta apaixonado pelos muros de sua cidade, um
alucinado imaginando salvar a sociedade com suas honradas denúncias, um
literógrafo capaz de retratar em palavras a alma e a voz do seu Recife, em suma
um escritor dos raros neste País que conseguem jungir rapidez, graças a
agilidade do texto jornalístico ao estilo, cuidado e seriedade de quem não
escreve apenas para se comunicar (e isso já seria tanto!), mas como forma de
arte: a insuperável arte das palavras.”
Eu estou republicando essas opiniões de Arthur da Távola por causa
de que ontem certa moça me perguntou onde se vai buscar tanta leseira pra
juntar e fazer graça. Eu lhe disse:
A felicidade é a curtição das agonias, por isso o jornal é um
inferno diário., onde os pobres de espírito não têm vez, porque deles é o reino
dos céus. Precisa estar aqui para ver e sentir, camaradas: a emoção do
jornalismo é muito rápida, mas não tem nada de efêmera - alimentam-se de
infernos diários.
Mais ainda sobre jornais:
Elementar, camaradas. Jornalismo é atualidade. Conquista o mercado
o veículo que botar na cabeça ser tão surrado princípio uma simplória
obrigação. Não se entende um jornal de hoje com notícias mortas desde ontem.
Quando se trata da informação de serviço a caducidade anuncia o suicídio das
folhas. Obreiros da popular mídia impressa, se a gente não se cuida, a
televisão e a internete amortalham o nosso esforço.
É muito provável, camaradas: no futuro, as novas ferramentas de
comunicação, sobretudo a tv, a Internet, deverão influir na tiragem dos
jornais, mas isso anda longe de ocorrer. Hoje, em vez de atrapalhar, a
televisão excita a leitura do jornal impresso. Porque o lobisomem da eletrônica
e o mal-assombrado da tecnologia ainda não chegaram ao nosso quarto. Urge
forrar direito a cama pra dormir sossegado.
Homem do meu tempo, durmo sossegado porque escrevo crônicas. E a
crônica é aquilo que me disse Arthur da Távola, o texto é quase, quase, a
canção da literatura. Literatura tem algo com o jornalismo?
Ora se...
Falarei sobre isso na crônica de domingo.
-------------------------
Fonte: http://www.old.pernambuco.com/diario/2001/12/02/opiniao.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário