quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Questão de segurança: crime, 'garras da lei' e bom senso

Há já algum tempo, a análise social tem feito incursões no 'mundo do crime', com interpretações bastante originais. No Brasil, por exemplo, o meu amigo Edmilson Lopes Júnior (UFRN),  lançando mão da sua aguda verve sociológica, tem desenvolvido marcantes abordagens a respeito, sendo uma referência nesse sentido o seu trabalho sobre as redes sociais do crime organizado, publicado pela Revista Brasileira de Ciências Sociais (disponível aqui: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-69092009000100004&script=sci_abstract&tlng=pt). A hipótese aí operacionalizada é sugestiva, qual seja: a melhor apreensão do crime é aquela que o tome como um processo situado em um continuum que vai da atividade legal até o evento delituoso. Para bom entendedor, 'meia palavra basta'. Ora bem, nos últimos tempos, tenho feito investigações similares, tendo em conta designadamente a questão das drogas (ilícitas), para então tratar da problemática no contexto educacional. Por esses dias, sistematizando dados empíricos e informações bibliográficas, fechei um paper a ser publicado na próxima edição da Revista Espaço Acadêmico/Paraná. Pode muito bem situar-se numa compreensão que apreende a questão da segurança localizando o delito entre as 'garras da lei' e o bom senso. Pelo trabalho produzido, deixo registrado o meu agradecimento às bolsistas, na UFPB, que atuaram no desenvolvimento da pesquisa; a colegas da UFPE (onde, quando nela trabalhava, inclinei-me à referida temática); e aos amigáveis contactos no setor de segurança pública/polícia civil de Pernambuco, pela solicitude para com as minhas demandas. 

Sociologia do crime, de Philippe Robert: relações sociais e delito 






Indivíduo: caráter e personalidade

Com um certo plus, em relação ao 'enfoque meramente psi', é possível encontrar na teoria social ferramentas conceituais de significativo alcance analítico no trato de questões como caráter, personalidade e identidade. Esta última, por exemplo, tem sido referida como 'a parte socializada da individualidade', num processo que deita raízes na primeira infância, na socialização primária e estende-se, de forma permanente, pela socialização secundária. Com tal prosa, quero colocar em realce Nobert Elias, que, nos últimos tempos, como desdobramento de algumas de suas obras, tem inspirado estudos sobre o caráter. Chama a atenção, em Elias, o fato de ele operar com três estruturas fundamentais: a social, a histórica e a psíquica. Trata-se de um empreendimento epistemológico de grande monta, relativamente ao qual os "enfoques psi" de banca de revista, de sítios de autoajuda e similares não têm condições de acompanhar. E o realce em Elias é para dizer que está disponível na rede, para download, o seu The Society of Individuals, obra central na referida discussão. Disponível em língua inglesa, supre, de qualquer forma, uma necessidade daqueles que, como eu, não se satisfazem com a tradução que foi feita para o português brasileiro. Como arremate, deixo-vos, abaixo, com uma recensão da livro Nobert Elias, do Prof. Robert van Krieken.  

Nobert Elias: determinações psíquicas e comportamento humano em foco

By Thomas Kemple, University of British Columbia 

The recent resurgence of interest in the work of Norbert Elias is part of the rediscovery of a relatively neglected period of social theory, from approximately the 1920s through the 1950s. Though some figures tend increasingly to be forgotten, such as Parsons and Lukacs, Marcuse and the first generation of the Frankfurt School, others, such as Bakhtin and Mauss, Bataille and the Collège de Sociologie, are being revived. Robert van Krieken's brief introduction to Elias' work does not explicitly consider this broader theoretical context, but it shows very nicely how Elias' enormous body of writings spanning almost sixty years challenges us to redraw the conceptual and historical boundaries between "classical" and "contemporary" theory, and between "canonical" and "noncanonical" writers, if not to rethink the misleading labels we use to designate complex theoretical "paradigms" (including "process sociology" itself, which van Krieken employs despite Elias' misgivings).
The case of Elias is especially interesting in this regard, particularly in view of how the historical vicissitudes of publication and translation have delayed and distorted his reception: his masterpiece, The Civilizing Process, only reached wide circulation some 30 years after it was first published in 1939, and its reception in English was hampered by being first published in two volumes separated by four years. As van Krieken demonstrates, a clear picture of Elias has yet to be fully recognized in part because Elias developed a unique and challenging synthesis of his predecessors (especially Weber and Freud), while at the same time marking out his own path by broadly criticizing or remaining aloof from his contemporaries (interestingly, he was a colleague of Mannheim in Frankfurt in the same building that housed the Institute for Social Research). Likewise, his impact on successors has only belatedly or hardly been noticed: on Giddens, who studied with him at the University of Leicester, on Goffman, who cited him briefly though approvingly, on Foucault, who produced an early (though unpublished) translation of The Lonely and the Dying, and on Bourdieu, whose recent work has increasingly taken on Elias' conceptual framework and vocabulary.
To be sure, van Krieken's book is no substitute for Stephen Mennel's more extensive and in depth introduction to Elias. (On the back cover, Mennel himself endorses the book as "an indispensable concise guide," while George Ritzer characterizes it as "an excellent entrée," as if to advance his own McDonaldization of theory). Rather, the merit of his overview is to identify a few key principles of research that to varying degrees guided the whole of Elias' magnificent corpus, but which were most explicitly formulated in the collections What is Sociology? (1978), The Society of Individuals (1991), and The Symbol Theory (1991): namely, the interdependent, (un)intentional, relational, processual, and positional dimensions of social life. This more theoretical argument could only have been worked out through elaborately detailed empirical investigations into the emergence of informal and formal techniques of discipline and (de)civilization at the levels of psychical and institutional organization: in The Court Society (first drafted in 1933), The Civilizing Process (first published in 1939), and The Germans (a 1989 collection spanning almost the whole of his career), as well as in fascinating shorter studies of sport, music, science, death, and time. A weakness of van Krieken's approach -- induced in part by the "Key Sociologists" series in which it appears, and even by Elias' own disciplinary self-definition -- is that Elias' core concept of "figurations" which embraces these principles is given a rather narrow "sociological" cast at the expense of its more multidimensional inspiration from and implication for a wide variety other scientific and aesthetic fields.
Van Krieken's book succeeds in providing an avowedly sympathetic though conscientiously critical assessment of Elias through what he calls "a principle of generosity" which does not presume upon the unity or consistency of the work but which tests it against Elias' own standards of "object-adequacy" and theory formation. In part this is achieved against a tendency in much of the growing critical literature on Elias which treats his general hypotheses (such as "the civilizing process" itself) as timeless conceptual formulations rather than within specific historical and cultural contexts. In part, this critical dimension is also opened up by presenting the biography of the work as an indispensable point of access into the writer's sociological imagination. What emerges from this is a paradoxical portrait of Elias: if not as a "homo clausus" who cultivated the isolationist and lonely posture he relentlessly criticized as our prevailing social habitus, then at least as a detached outsider in his own field, who hardly applied the "principle of generosity" when reading his contemporaries as he expected others to do when reading him. But this irony too must be considered within the complex figuration that constitues the very life of theory.



terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Deputado Sérgio Leite: missão impossível?

Dizia Otto von Bismarck que 'a arte da política não se faz com discursos, festas e canções; ela faz-se com sangue frio'. Analisando bem o quadro político brasileiro, em função das eleições presidenciais de 2014, percebe-se que essa divisa do antigo diplomata e estadista prussiano vem sendo seguida, com régua e compasso, em Pernambuco. Em movimentos silenciosos, feitos com precisão e de forma estratégica, entabulados pelo Governador Eduardo Campo e seu staff, o quadro político no estado se alterou profundamente. Primeiro, levou-se o PT a um processo de autofagia na escolha do seu candidato para Prefeitura do Recife, o que resultou numa derrota acachapante do partido e a perda do governo municipal. Depois, por vias não muito convencionais, praticamente apontou-se a porta de saída ao partido para desembarcar do governo estadual: saída dos petistas, entrada do PSDB. Foi esse o contexto que fez com que, há poucos dias, o Deputado Estadual Sérgio Leite (PT) se tornasse líder da oposição na Assembleia Legislativa pernambucana, oposição a um governo do qual, até à véspera, o seu partido era fiel aliado. Por suas credenciais, o deputado foi escolhido por unanimidade entre os seus pares. Membro dos quadros da polícia civil, Sérgio Leite é oriundo de uma estirpe de reconhecida linhagem política; diferente do padrão originário, situou-se na cena política à esquerda (seja lá o que isso signifique). Reconhecido por suas incursões nos 'complexos meandros' da questão da segurança pública, é ponderado, mas apto a ação quando necessário. Faz lembrar o lema confuciano a respeito do sábio e do tolo, cuja lição a extrair é: 'quem age com cautela raramente erra'. Pois bem, Leite não terá tarefa fácil na condição de líder da oposição ao Governo Eduardo Campos. A sua missão é impossível? O tempo há de dizer. De toda forma, ter presente a divisa de Bismarck pode ser de alguma utilidade. Sobretudo, quando o projeto presidencial do Governador Eduardo Campos faz valer a arte da política e alarga-se de forma imprevisível, como afirma o analista Ricardo Melo no texto abaixo. 

Deputado Sérgio Leite: indicado por unanimidade ao combate

O PS[D]B de Campos e Marina

Por Ricardo Melo

Aconteceu em 3 de janeiro, no Recife, o enterro de mais uma suposta tentativa de criar algo novo na política brasileira. Com pompa e circunstância adequadas, a data marcou o embarque dos tucanos do PSDB no governo de Eduardo Campos, do PSB. O discurso do anfitrião mais parecia um obituário envergonhado.
"Aprendi com meu avô, o ex-governador Miguel Arraes, o valor das alianças políticas. Mas não alianças feitas para interesse de políticos ou de partidos. Temos sempre de saber fazer alianças colocando os interesses do povo no centro do que está sendo feito. Esta é a distinção entre a velha e a nova política", comemorou o governador, no melhor estilo me engana que eu gosto.

Eduardo Campos, Aécio e Marina: movendo as peças do xadrez político
 
Todos sabemos a que "povo" interessa a cerimônia realizada no Centro de Convenções, sede provisória do governo estadual. Pergunte a algum cidadão comum pernambucano que grande diferença fará a entrada de um tucano na secretaria estadual do Trabalho e na presidência do Detran local ""cargos assumidos pelo PSDB.
A resposta é óbvia. Ou alguém sinceramente acha que o emprego no Estado vai disparar ou ao menos a carteira de habilitação local sairá mais rápido com tais mudanças? A própria (pouca) importância dos postos aceitos pelo PSDB escancara o sentido da barganha. O fato é que a cerimônia serviu para mostrar que, entre a velha e a nova política, o governador cravou sua opção: escolheu a velha, levando junto a ex-ministra Marina Silva.
Que fique claro: ninguém pode contestar o direito de Campos aliar-se com quem quiser. Se há alguma coisa em que o Brasil é insuperável é na, vamos dizer, elasticidade das composições partidárias. Do governo federal às administrações locais, é possível encontrar misturas que desafiam tanto a coerência de programas quanto os limites da análise combinatória. Alianças sempre, evidentemente, "em nome do interesse do povo".
O que se discute mais uma vez é a propaganda enganosa. Pouco tempo atrás, Campos e Marina firmaram um acordo para o ingresso da ex-ministra no PSB. No evento, anunciado como a aurora de um novo modo de fazer política, as duas figuras discorreram sobre a importância daquele momento. Lideranças da Rede usaram e abusaram do repertório sonhático para dourar o enlace.
Mas na prática a teoria é sempre outra. Como se viu, nem foi preciso muito tempo para sentir o cheiro de mofo na própria casa do anfitrião. Em mais um rasgo de sinceridade, a deputada Luiza Erundina, do PSB de Campos e Marina, foi direto ao ponto. "A lógica eleitoral se superpõe a tudo. Somos vítimas desta lógica", disse em entrevista publicada na Folha de ontem.
E a lógica eleitoral do momento, para Campos e cia., é impedir a reeleição de Dilma e ponto final. Nada de errado nisso: faz parte do jogo e é seu direito. Pede-se apenas ao pessoal que chame as coisas pelo nome, sem tentar vender como novidade as práticas mais gastas e requentadas da política brasileira.
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Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/146522-o-psdb-de-campos-e-marina.shtml

Ecologia, educação e saúde: desafios

Escrevi o breve texto abaixo em coautoria com o meu amigo Muniyandi Elumalai, pesquisador indiano com aguda percepção do processo de investigação e - sobretudo por sua pertença cultural - da própria vida. Foi publicado como artigo de opinião/divulgação científica pelo Jornal da Ciência, órgão da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). 

Guatarri (d), em companhia de Deleuze: a questão das três ecologias 

Por Ivonaldo Leite e Muniyandi Elumalai 

Com as suas três ecologias, Félix Guattari bem expressou a dimensão da problemática que envolve o assunto e, ao mesmo tempo, aportou subsídios para se questionar os lugares-comuns no debate sobre meio ambiente.
Isto é, trata-se de entender que, não obstante a importância do tema, as discussões sobre a questão ecológica, por vezes, se têm limitado, de um lado, a reproduzir chavões e, de outro, têm levado a efeito abordagens que enviesam a compreensão do que está em pauta.
Neste último caso, o fato é uma decorrência de se adotar enfoques disciplinares (apenas de uma área do conhecimento) para um tema que, de per si, é marcado pela pluralidade epistêmica, demandando, por exemplo, a necessária interconexão entre as ciências físico-naturais e as ciências sociais/humanas.
Ao realçar os escopos de uma ecologia do meio ambiente, das relações sociais e da subjetividade humana, Guattari apreende a questão como totalidade e nomeia como ecosofia a relação entre estas três ecologias. As conseqüências dessa formulação, para o agir concreto, são óbvias, como logo perceberão os que têm treino no assunto. De tão evidentes, não convém repisá-las em pormenor, até porque, para as mentes versadas nos jogos do espírito, fica sempre subentendido que as teses são propostas cum grano salis. Contudo, permitimo-nos pôr em relevo duas decorrências interligadas.
A primeira concerne ao papel da educação. Sabendo-se que esta, dizendo respeito à dimensão escolar e não-escolar, consubstancia relações de sociabilidade que, ao fim e ao cabo, estruturam padrões societais (afinal, a repetição da ação configura a estrutura), é imprescindível que ela seja mobilizada como dispositivo de persuasão social (o que não significa normatividade curricular formal) na consecução da agenda de consciência ecológica.
A segunda refere-se às iniciativas do campo da saúde. Além das variáveis que o relacionam ao meio ambiente em si, é de se reter - quando temos em conta que a ecosofia pressupõe relações sociais e subjetividade humana que os serviços de saúde têm uma imprescindível função a desempenhar nas atividades de cidadania ecológica, nomeadamente no que toca ao aspecto preventivo. O que requer interação, diálogo, portanto trabalho educativo junto à população.
Ainda no que toca ao campo da saúde, também não se pode colocar de parte que determinados estados fisiológicos não são dados completamente objetivos, como mostram vários trabalhos psicossociológicos, mas, sim, exigem interpretação relacionada aos contextos sociais nos quais são produzidos.
O que significa dizer que devem ser focados a partir do âmbito cultural, ou seja, impõe-se que a educação seja acionada. A propósito, não é de se esquecer a célebre pesquisa de Howard Becker mostrando que a satisfação invocada pelos usuários de maconha não é imediata. É produto da aprendizagem resultante da pertença a um grupo de fumantes.
Tal é a démarche que se impõe para a superação dos lugares-comuns e dos entendimentos enviesados em torno da problemática ecológica. São abordagens que, apesar de vislumbrarem os perigos mais evidentes que ameaçam o meio ambiente natural das sociedades, geralmente se limitam a focar os danos industriais e, mesmo assim, numa perspectiva tecnocrática. É necessário ir além disso.
O problema fundamental está colocado em outro patamar, expresso, por exemplo, num desafiante paradoxo: por um lado, tem-se o desenvolvimento contínuo de novos meios técnico-científicos capazes de atender às demandas ecológicas e determinar o (re)equilíbrio das atividades socialmente úteis para o planeta; por outro lado, porém, verifica-se a indisposição sistêmica no sentido de os utilizar nesse sentido.
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Fonte: http://www.jornaldaciencia.org.br/imprimir.jsp?id=60159


Syria: Intractable Dilemmas for Everyone

Abaixo, um pertinente artigo de Immanuel Wallerstein sobre a situação síria e o Oriente Médio em geral. Wallerstein, Senior Research at Yale University, seja por seu trabalho a respeito do que ele denominou Teoria do Sistema-Mundo, seja por sua abordagem acerca do declínio estadunidense, é um cientista social de marcante relevância nos dias atuais. 

 Por Immanuel Wallerstein 

There was a time when all, or almost all, actors in the Middle East had clear positions. Other actors were able to anticipate, with a high degree of success, how this or that actor would react to any new important development. That time is gone. If we look at the civil war in Syria today, we will rapidly see that not only are there a wide range of objectives that different actors set themselves, but also that each of the actors is beset by ferocious internal debates about what position it should be taking.


Inside Syria itself, the present situation is one of a triad of basic options. There are those who, for varying reasons, essentially support keeping the present regime in power. There are those who support a so-called Salafist outcome, in which some form of Sunni shar'ia law prevails. And there are those who want neither of these outcomes, working for an outcome in which the Baath regime is ousted but a Salafist regime is not installed in its place.



This is of course too simple a picture, even as a description of the positions of the internal actors. Each of these three basic positions is held by a number of different actors (shall we call them sub-actors?) who debate with themselves about the tactics their side should pursue. Of course, the debate about tactics in the struggle is also, or really, a debate about the exact preferred outcome. However, this triangle of actors, each with multiple sub-actors, creates a situation in which there is a constant revising of very local alliances that is often hard to explain and surely difficult to anticipate.



The dilemmas are no less for the non-Syrian actors. Take the United States, once the giant in the arena, now widely recognized to be in serious decline and thereupon to have no good options. But merely to admit this is itself very controversial in the United States, and President Obama finds himself under severe political pressure by some sub-actors to do "more" and by others to do "less." This debate goes on within his own inner circle, not to mention in Congress and in the media.



Iran faces the dilemma of how to improve its relations with the United States (and indeed Turkey and even Saudi Arabia) without diminishing its support for the Syrian regime and Hezbollah. The internal debate about the tactics to pursue seems just as loud and just as intense as that inside the United States.



Saudi Arabia faces the dilemma of supporting Muslim groups in Syria that are friendly without strengthening the hand of groups like al-Qaeda that are pursuing the downfall of the Saudi regime. The Saudi government fears that, if it makes a mistake, it will advance the cause of those who want the internal turmoil to spread to Saudi Arabia. So, it puts pressure on the U.S. government to support Saudi objectives while simultaneously (and as quietly as possible) talking with the Iranians—not an easy game to play.



The Turkish regime, which now has its own internal problems, was originally a supporter of the Syrian regime, then a fierce opponent, and today seems to be neither the one nor the other. It is seeking to recuperate its erstwhile stance as a post-Ottoman Turkey that is a powerful friend to everyone.



The Kurds, seeking maximum autonomy (if not a full-fledged independent Kurdish state), find themselves in difficult negotiations with all four states in which there are significant Kurdish populations—Turkey, Syria, Iraq, and Iran. 



Israel can't really decide whose side it's on. It's against Iran and against Hezbollah, but up to two years ago, it had quite stable relations with the Baath regime in Syria. If Israel supports the opponents of the Syrian regime, it risks getting a far worse regime in Syria from its point of view. But if it wishes to weaken Iran and Hezbollah, it cannot be indifferent to the role the Syrian regime plays in permitting the close links of Iran and Hezbollah. So Israel waffles, or stays mute.



Internal debates beset all the non-Arab states who have some interests in the region: Russia, China, Pakistan, Afghanistan, France, Great Britain, Germany, and Italy, for a start.



This is geopolitical chaos, and it takes very astute maneuvering for any of the actors not to make grievous errors in terms of its own interests. In this whirlpool of continuously shifting alliances, globally and very locally, there are many groups and sub-groups who consider it tactically useful to increase the scale of the violence.



The Syrian civil war is at the moment the locus of the greatest amount of violence in the Middle East, and there is little reason to expect that it will cease. It has begun to spread to Lebanon and Iraq in particular. Most of the actors are worried that the spreading of the violence, in addition to being appalling, may in fact hurt their interests rather than help them. So many actors try, in multiple ways, to restrain the spread. But can they?



When the People's Liberation Army marched into Shanghai in 1949 and established a Communist government in power, a big and futile debate erupted in the United States. It was conducted under the theme, "Who lost China?" It was as if China was something others could lose. It is likely that very soon, there will be debates in many countries about "Who lost Syria?" Indeed these debates seem to have started already. The fact is that, in a state of geopolitical chaos, most actors have very limited ability to affect the outcome. The Middle East is careening out of control, and we shall be lucky to escape the crash.



quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

O grau da nossa emancipação

A seguir, com grafo do português luso, um  breve texto de Emil Cioran, a assinalar a ideia de que 'só se liberta quem se aplica à sua vacuidade'.

Cioran: 'não passamos de acólitos do tempo'
Por Emil Cioran

A esfera da consciência reduz-se na acção; por isso ninguém que aja pode aspirar ao universal, porque agir é agarrar-se às propriedades do ser em detrimento do ser, a uma forma de realidade em prejuízo da realidade. O grau da nossa emancipação mede-se pela quantidade das iniciativas de que nos libertámos, bem como pela nossa capacidade de converter em não-objecto todo o objecto. Mas nada significa falar de emancipação a propósito de uma humanidade apressada que se esqueceu de que não é possível reconquistar a vida nem gozá-la sem primeiro a ter abolido.
Respiramos demasiado depressa para sermos capazes de captar as coisas em si próprias ou de denunciar a sua fragilidade. O nosso ofegar postula-as e deforma-as, cria-as e desfigura-as, e amarra-nos a elas. Agito-me e portanto emito um mundo tão suspeito como a minha especulação, que o justifica, adopto o movimento que me transforma em gerador de ser, em artesão de ficções, ao mesmo tempo que a minha veia cosmogónica me faz esquecer que, arrastado pelo turbilhão dos actos, não passo de um acólito do tempo, de um agente de universos caducos.
Empanturrados de sensações e do seu corolário, o devir, somos seres não libertos, por inclinação e por princípio, condenados de eleição, presas da febre do visível, pesquisadores desses enigmas de superfície que estão à altura do nosso desânimo e da nossa trepidação.
Se queremos recuperar a nossa liberdade, devemos pousar o fardo da sensação, deixar de reagir ao mundo através dos sentidos, romper os nossos laços. Ora, toda sensação é um laço, tanto o prazer como a dor, tanto a alegria como a tristeza. Só se liberta o espírito que, puro de toda a convivência com seres ou com objectos, se aplica à sua vacuidade.
Resistir à sua felicidade é coisa que a maioria consegue; a infelicidade, no entanto, é muito mais insidiosa. Já a provásteis? Jamais vos sentires saciados, procurá-la-eis com avidez e de preferência nos lugares onde ela não se encontra, mas projectá-la-eis neles, porque, sem ela, tudo vos pareceria inútil e baço. Onde quer que a infelicidade se encontre, expulsa o mistério e torna-o luminoso. Sabor e chave das coisas, acidente e obsessão, capricho e necessidade, far-vos-á amar a aparência no que ela tem de mais poderoso, de mais duradouro e de mais verdadeiro, e amarrar-vos-á para sempre porque, «intensa» por natureza, é, como toda a «intensidade», servidão, sujeição. A alma indiferente e nula, a alma desentravada - como chegar a ela? E como conquistar a ausência, a liberdade da ausência? Tal liberdade jamais figurará entre os nossos costumes, tal como neles não figurará o «sonho do espírito infinito». 

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Fonte: http://www.citador.pt/textos/o-grau-da-nossa-emancipacao-emil-michel-cioran

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Zizek: desejo, ou a traição da felicidade

Como sabemos, há já um bom tempo o esloveno Slavoj Zizek, teórico social de reconhecida estatura nos dias atuais, tem procurado explicar a abordagem lacaniana do desejo pela análise da cultura moderna. Na entrevista abaixo, ele oferece um panorama dessa perspectiva. 

Zizek: 'A traição do desejo tem um nome - a felicidade'


Como você se situa em relação à idéia de que nós vivemos numa sociedade em que a maioria de nossos desejos seriam alienados? 

Slavoj Zizek - É preciso ser prudente. Toda a temática dos anos 1960, em torno da crítica da "sociedade de consumo", tem sido que nos oferecem pequenas satisfações, pequenos momentos de felicidade, prazeres bobos para nos privar dos "verdadeiros" desejos. Eu creio que esta é uma fórmula demasiado ingênua. Em La Marionette et le Nain, eu falo a respeito dos ovos Kinder Surprise. A maioria das crianças compra ovos Kinder pela surpresa. Eles nem sempre se dão o tempo de comer o chocolate. Trata-se de uma lógica do desejo, e não do consumo. Os ovos Kinder são o modelo de todos esses produtos que nos prometem alguma coisa "a mais" do que aquilo que poderíamos consumir, como essas embalagens em que está escrito: "Numerosos prêmios a ganhar no interior". É preciso, pois, resguardar-se ante uma mitologia que oporia nossos "verdadeiros" desejos e uma sociedade de consumo toda ocupada em aliená-los. Tome uma certa vulgata "deleuziana" de nossos dias: ela desenvolve um modelo que repousa sobre a oposição entre a organização hierárquica, sistemática, o Estado, o "Império", e os fluxos nômades, a "multidão" dos desejos. Mas, o capitalismo atual é precisamente nômade. Por que e como se vai combatê-lo, quando se começou a esquecê-lo? É como esses feministas americanos que atacam a sociedade contemporânea, como se ela ainda repousasse sobre um modelo de autoridade patriarcal. A estrutura subjetiva do capitalismo contemporâneo é precisamente a do sujeito nômade, sem identidade fixa. Então nem se pode dizer que é preciso combatê-lo, porque ele "reterritorializa" os fluxos, os desejos, pois a "reterritorialização" é a própria máquina que desencadeia o dinamismo. Os marxistas já tinham este sonho: manter a estrutura, mas sem o lucro, a mais-valia. Eles queriam desembaraçar-se do obstáculo, mantendo o dinamismo puro, mas eles não viram que eles perdiam o dinamismo junto com o obstáculo. Então, não estou totalmente de acordo com esse tipo de crítica da "sociedade de consumo". O que permanece em mim, é a idéia de que a felicidade não pode ser uma categoria ética. Eu discutia recentemente com amigos espanhóis. Eles me diziam que tinham gostado muito da descrição, que eu faço em Bienvenue dans le désert du réel [Bem-vindos ao deserto do real, livro traduzido para o português], da "felicidade" na Tchecoslováquia comunista dos anos 1970-1980. Todo o mundo era "feliz" naquela época: as necessidades materiais estavam satisfeitas, embora não completamente, se bem que se podia estar satisfeito com o que se possuía; tudo o que estava mal era imputado ao Outro, ao Partido; e havia também um Outro com o qual sonhar de maneira realista, pois ele não estava muito afastado, o Ocidente consumista. Segundo meus amigos, ocorria exatamente a mesma coisa na Espanha durante os dez últimos anos sob Franco. Existe mesmo uma piada espanhola para responder à questão: "Como era a vida sob Franco? - A vida sob Franco era muito agradável". Não se deveria legitimar uma mudança, dizendo que se vai trazer mais felicidade. A verdadeira mudança política consiste sempre em modificar os próprios parâmetros daquilo que se entende por felicidade. 

Isso significa que se deve deixar de ser crítico com relação a esse tipo de sociedade? 

Slavoj Zizek - O que seria preciso criticar, é a própria idéia de "consumo". Será que estamos realmente numa sociedade "de consumo"? O modelo da mercadoria é hoje o café sem cafeína, a cerveja sem álcool, o creme fresco sem gordura. A meu ver, isso significa primeiro que se tem mais medo de consumir verdadeiramente. A gente quer comer, mas sem pagar o preço. Caso se queira criticar a sociedade moderna, não é preciso se agarrar a essa idéia de "consumo". Uma chave mais interessante seria a noção de "vítima". É preciso compreender como isso determina nossa noção de tolerância e nossa relação ao desejo do outro. O que quer dizer atualmente "tolerância"? É simplesmente o inverso da noção de "assédio". E, o que quer dizer "assédio"? Isso quer dizer que o Outro, como sujeito de desejos, não deve se aproximar demasiadamente de mim. Em outros termos, a tolerância é hoje exatamente a intolerância. A figura da subjetividade torna-se completamente narcisista; ela se constitui no temor da proximidade dos outros. Isso me lembra de quando Kierkegaard pergunta: "Quem é o próximo que se deve amar?", e ele responde: "Aquele que está morto". 

Este problema do Outro está conexo com o do interdito e de seu papel no funcionamento do desejo? 

Sim, mas também aqui é preciso avançar, com prudência. De um lado, há hoje um problema com o fracasso das ordens simbólicas - do "Grande Outro", como diz Lacan. Isso conduz a um regime de interiorização das regras, e então, segundo Freud, a uma hipertrofia do superego. Ora, como Lacan o havia visto bem, o superego funciona como imperativo de gozo e também como interdito. A conseqüência paradoxal e trágica é uma corrida desenfreada ao gozo que acaba, evidentemente, na impossibilidade de gozar, pois o superego exige cada vez mais. Meus amigos psicanalistas me contam que hoje em dia o sentido de culpabilidade de seus pacientes não é mais fundado sobre o interdito, mas sobre esta injunção de gozar, "de aproveitar". Agora, as pessoas não se sentem mais culpadas, quando têm prazeres ilícitos, como antes, mas quando não são capazes de aproveitá-los, quando não chegam a gozar. Mas, de outro lado, não se deve concluir, com certos semi-lacanianos como Pierre Legendre, que seja preciso restabelecer a Lei e a Ordem simbólica como espaço de transgressão. Lacan era grande inimigo do pensamento de Bataille, e isso não somente por razões puramente pessoais: o problema, a seus olhos, é que o desejo se encontra justamente, em Bataille, totalmente edificado sobre a transgressão. A psicanálise tem aqui um papel essencial a desempenhar. Todos os outros discursos adquirem a forma de injunção para gozar, para buscar a felicidade. Mesmo o Dalai-Lama aderiu! A psicanálise é um discurso que não impede de gozar, mas que permite justamente não gozar. Você pode gozar, mas não sob a forma de uma regra, de uma interiorização "superegoica". Por isso, o pensamento freudiano é mais atual do que nunca. Diz-se hoje por toda a parte, mesmo entre pessoas favoráveis à psicanálise, que Freud está ultrapassado, que ele é filho de uma sociedade burguesa, vitoriana, fundada sobre interditos fortes, que já não têm mais sentido hoje em dia. Mas, seu problema jamais esteve na repressão ou no interdito: ele estava antes no paradoxo de uma permissão que bloqueia o gozo. Não é na atualidade que podemos desembaraçar-nos desta imagem simplista de um Freud que combate a opressão sexual. Todos os freudo-marxistas inteligentes o compreenderam. Por isso, Adorno sempre criticou Reich e sua idéia de uma explosão orgástica. 

Em Bienvenue dans le désert du réel [Bem-vindo ao deserto do real], você tem esta fórmula, da qual você diz que ela é característica do que nos ensina a psicanálise: "a traição de desejo tem um nome: a felicidade". 

A concepção de Lacan - seu lado hegeliano e mesmo sartreano -, é que o desejo é transcendência, falta, abertura, enquanto o prazer, ou a felicidade, é equilíbrio, homeostase. Deleuze defendeu esta idéia de modo ainda mais radical, quando ele disse que o masoquismo ou o amor cortês eram a manifestação do desejo em estado puro, o desejo que não necessita de satisfação, porque ele já é, por si mesmo, sua própria satisfação. Eu desenvolvi esta idéia em Subversion du sujet (Presses universitaires de Rennes, 1999). O desejo parece, primeiramente, "patológico", ou seja, suscitado e orientado pelos objetos que nos afetam. Ele não tem a dignidade de um a priori transcendental. A idéia que havia defendido Bernard Baas, em seu belíssimo livro Le Désir pur [O desejo puro], é que Lacan "transcendentalizou" precisamente o desejo. É o projeto de seu célebre texto Kant avec Sade: mostrar que existe uma capacidade do desejo puro que não necessita de uma referência ao objeto" - o que Lacan chama de "o pequeno objeto a"(le petit objet a)  torna-se, então, precisamente uma posição estrutural, uma espécie de objeto a priori. Ele serve paradoxalmente para subtrair o desejo de sua vinculação ao objeto, à sua realidade patológica. A ética do desejo é de permanecer fiel a este a priori. Como o diz Lacan: o desejo último é, pois, aquele da não-satisfação do desejo, o desejo de permanecer aberto.

Você não deu solução ao dilema. De um lado, tem-se, pois, o apelo a um restabelecimento da ordem simbólica, da Lei: do outro, a crítica pós-moderna, relativizando as normas e chegando a uma interiorização que finalmente bloqueia o gozo, erigindo a ele próprio em norma suprema. Mas, o que mais se poderia ter? 

Slavoj Zizek - Eu creio que o próprio Lacan não encontrou a fórmula. Em Freud, há uma concepção da civilização como produto do crime original. A sociedade se transforma em comunidade no crime, no assassinato do Pai. É o modelo que se encontra em Totem e Tabu. A questão é: existe um outro modo de socialização, além da relação a uma ordem simbólica? Este é também o problema da ética psicanalítica. Há um Lacan de quem não gosto. É aquele que diz que o fim da experiência analítica é a "travessia do fantasma", vivida como experiência intensiva, excepcional. Depois, só se poderá retornar ao espaço social e simplesmente "jogar o jogo", com mais ironia. O problema, para mim, é que esta postura é precisamente aquela à qual induz o capitalismo contemporâneo. A psicanálise precisa dar-se conta que a posição antiga, na qual a sociedade carrega os interditos e o inconsciente as pulsões desregradas, está hoje invertido: é a sociedade que é hedonista, desregrada, e o inconsciente que regula. Vê-se muito bem com o estatuto das crenças, que me interessam particularmente em La Marionette et le Nain: hoje se quer bem crer, mas por meio dos outros, de maneira distanciada. Conta-se esta história a propósito de Niels Bohr: um amigo que o visitava, viu presa à porta uma ferradura de cavalo. Ele lhe comunicou seu espanto em face de tal marca de superstição. E Bohr teve esta resposta: "Sem dúvida não creio nisso, mas me disseram que isso funciona mesmo que não se creia nisso". Para mim, este é o arquétipo da crença moderna. Todos os meus amigos judeus dizem: "Não se come carne de porco, mas, certamente não se crê nisso". Trata-se de uma crença objetivada, o que se chama hoje em dia de uma "cultura". 

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Fonte: http://zizek.weebly.com/texto-011.html



terça-feira, 21 de janeiro de 2014

"Economia dos riscos" e imóveis

Lembrando Florestan Fernandes, costumo dizer que a ciência social é 'como uma caixa de ferramentas'. Para determinado fenômeno da realidade, utiliza-se o "utensílio teórico" que calhe melhor à sua inteligibilidade. Daí serem despropositadas as profissões de fé, numa espécie de fidelidade cega, em torno de paradigmas analíticos - o que, infelizmente, é algo cada vez mais comum, sob o impulso de modas acadêmicas. Contudo, o que importa à análise social, dentre outras perspectivas, é construir quadros de inteligibilidade a respeito da realidade, para, se for o caso, orientar as ações em função das questões que ela coloca como desafio. Realço este preâmbulo para repisar o tema da "economia dos imóveis", como exemplo do que uma análise social criteriosa pode nos fazer enxergar. A "economia dos imóveis" está, de forma ascendente, a se configurar numa espécie de "economia dos riscos". Os alertas sobre a formação de uma bolha multiplicam-se, mas a marcha da insensatez segue o seu curso. O momento não é dos mais recomendáveis para aquisição de imóveis. Por mais que tenha ocorrido aumento na renda, esse aumento não tem sintonia com os preços que estão a ser praticados. É assim que as bolhas são infladas. E, ao que parece, nesse sentido, de algum modo, determinadas formas de gestão do Programa Minha Casa Minha Vida têm contribuído para a geração desse quadro anômalo - formas de gestão, que fique claro, não a matriz originária do Programa. Isto porque a má execução desse Programa gera uma situação inflacionária em decorrência de um conjunto de variáveis, que envolve empreiteiras e o setor bancário, com este exorbitando o valor dos financiamentos com juros extorsivos, fato responsável pelo completo divórcio entre a renda e o preço real das coisas. A matéria abaixo, tendo em conta o Recife, e fazendo um comparativo com os EUA, bem evidencia os aspectos anômalos que estão a transformar a economia dos imóveis em "economia dos riscos".

O surreal preço dos imóveis no Recife


O preço dos imóveis no Recife disparou. Nos últimos 12 meses, aumento foi superior a 12%, segundo o índice FipeZap

Por Pierre Lucena 
Que está elevado o preço dos imóveis no Recife, não é novidade para ninguém. Nos últimos anos, o valor dos imóveis no Brasil disparou, e o Recife não ficou de fora.
Para termos uma ideia, na última pesquisa que fiz, ainda em junho, patrocinada pelo IPMN e publicada no Acerto de Contas, o preço do metro quadrado na capital pernambucana estava em mais de R$ 5 mil. De acordo com o índice FipeZap, que mede os preços praticados em 16 cidades brasileiras, o valor médio do metro quadrado subiu mais de 12% nos últimos 12 meses, tendo como referência o mês de outubro.
Mas o que impressiona é quando comparamos com imóveis em outras regiões do mundo. O site Estamos Ricos fez comparação semelhante, chamando a atenção de todos.
Vamos pegar o caso mais flagrante:
Casa na Flórida, EUA

Imagine morar nesta casa, no Estado da Flórida, nos Estados Unidos. Fica em Fort Piece, entre Miami e Orlando, em uma cidade muito agradável. Como diz o anúncio:
“A casa tem quatro quartos, três banheiros, garagem fechada para um carro, e é moderna com tudo o que poderia imaginar – ar condicionado central, máquina de lavar louça, lavador e secador de roupas e janelas grandes que deixam a luz natural entrar na casa.”
Pois bem….esta casa está custando US$ 110 mil. Em reais, fica pouco menos de R$ 250 mil. Isso ainda pode ser financiado a uma taxa de juros em percentual próximo à metade do Brasil.
E o que compramos com este mesmo dinheiro em Recife?
Fui procurar em sites de vendas e encontrei algumas comparações interessantes. Encontrei uma casa de R$ 250 mil, no bairro do Ipsep. Não é nem o mais caro, nem o mais barato da cidade.
A comparação é chocante.
Para começar, estamos falando de uma diferença estrutural de bairro que nem merece comparação. Além disso, é o mesmo que comparar os estádios de futebol antigos com uma arena europeia.
Se você achar que está muito longe, pode comprar uma casa similar em Miami Beach, o lugar mais caro da Florida. Está saindo por menos de US$ 250 mil. Algo próximo a R$ 560 mil. Com este valor você nem pensa em comprar uma casa pequena em Boa Viagem. Sairá o dobro disso.
Na verdade, o preço dos imóveis no Brasil chegou a um patamar surreal. Esta precificação fora da realidade é função basicamente de dois fatores: aumento de renda da população e diminuição da restrição creditícia (financiamento abundante). Some-se a isso uma enorme demanda reprimida da classe média por imóveis, temos esta equação onde a renda real das pessoas é incapaz de explicar o patrimônio adquirido de imóveis.
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Fonte: http://blogs.diariodepernambuco.com.br/licoesdebolso/o-surreal-preco-dos-imoveis-no-recife/

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

'Responsabilizar a pessoa certa'

Aí abaixo você tem um artigo de Alexandre Rands Barros, Professor da Universidade Federal de Pernambuco, e um pesquisador em acensão no quadro de renovação do pensamento social brasileiro. No texto, ele traz à baila uma expressão carregada de "significação comportamental", em língua inglesa, e que tem muito a dizer à realidade brasileira: accountabilitty. Compromisso, prestação de contas. Vale a pena conferir. 


Os indivíduos e a necessidade de prestação de cotas dos seus atos 


Por Alexandre Rands Barros

"Accountability" é uma palavra inglesa sem tradução literal para o português. Define a obrigação de indivíduos de prestar conta de seus atos a outros indivíduos.
Responsabilização talvez seja um termo similar. Ausente em nosso idioma, "accountability" é um atributo que falta também ao setor público brasileiro, o que se constitui em uma das principais fragilidades microeconômicas do país, da qual decorrem várias outras.
Dois problemas reduzem a competitividade do Brasil: a lerdeza do setor público e a seleção adversa que ele promove entre empresas. O primeiro problema diz respeito à lentidão com que toma decisões e o fato de impor seu ritmo aos processos, mesmo quando agentes privados estão envolvidos.
O segundo é menos óbvio. Suponha que haja duas empresas: uma com maior eficiência relativa em introduzir tecnologias e administrar processos produtivos e outra com maior eficiência relativa em ter bom relacionamento com o setor público e capacidade de encontrar os caminhos facilitadores da corrupção.
Infelizmente, no nosso país, é maior a probabilidade de a segunda empresa sobreviver, mesmo sendo menor sua potencial contribuição à sociedade.
Para reduzir o efeito perverso desses dois problemas, precisamos de mais "accountability" do setor público. Eis uma sugestão de como isso poderia funcionar.
Todos os processos que envolvem ações do setor público seguiriam um cronograma. Se, por exemplo, uma prefeitura quisesse aprovar planos para construção de prédios, ela teria um prazo para concluir os procedimentos. Se o prazo não fosse cumprido, as demandas do setor privado seriam automaticamente aprovadas e o responsável pela atividade do lado do setor público seria responsabilizado pela aprovação.
Além disso, criar-se-ia um tribunal bipartite para assegurar que os funcionários públicos respondessem por seus atos. Os juízes teriam seleção semelhante aos classistas do passado, com escolha dos sindicatos patronais e de empregados.
Qualquer indivíduo que se considerasse prejudicado por uma ação de servidor público poderia recorrer a esse tribunal. Se ganhasse a causa, o réu teria duas opções: pagar o prejuízo ou perder seu vínculo empregatício com o setor público.
Isso evitaria, por exemplo, que membros dos tribunais de contas embargassem obras sem motivos relevantes e bem embasados, pois teriam que estar dispostos a responder pelos prejuízos.
Funcionários públicos, fossem eles fiscais ou gestores de serviços ofertados ao setor público, poderiam ser responsabilizados por multas e autuações aplicadas ou custos processuais, caso esse tribunal, tendo sido acionado, julgasse sua ação improcedente.
Tais medidas trariam maior equilíbrio nas relações entre os setores privado e público, pois os funcionários públicos teriam mais responsabilidade com o primeiro por conta da possibilidade de enfrentar os tribunais. Além disso, as medidas reduziriam a seleção adversa entre empresas, que muitas vezes acaba por beneficiar as menos eficientes.
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Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2013/12/1382475-alexandre-rands-barros-responsabilizar-a-pessoa-certa.shtml

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

'O intelecto desdobra suas forças mestras no disfarce': verdade, mentira e moral

Conceitualmente falando, a noção de verdade tal qual é utilizada no contexto da civilização ocidental decorre de um tripé originário: do grego aletheia, do latim veritas e do hebraico emunahn. Respectivamente, em síntese, verdadeiro é o que é visto, o fato em si; o que está registrado numa narrativa; o verdadeiro diz respeito à confiança, crença em que o anunciado será cumprido (emunah é uma palavra da mesma família de amém, isto é, 'assim seja'). Se, em sentido conceitual, a verdade é originária desse tripé, uma abordagem paradigmática sobre a mentiria, em conexão, claro, com a verdade e a moral, foi empreendida pelo alemão Friedrich Wilhelm Nietzsche. Bem ao seu estilo, de não deixar 'pedra sobre pedra', Nietzsche põe a descoberto questões sobre o comportamento humano que, convenhamos, são hoje de extrema atualidade, sobretudo numa época em que as novas tecnologias/mídias sociais superdimensionam o potencial para o exercício da desfaçatez.  Terá dito Confúcio, certa feita, que uma das características da pessoa sábia é deixar que o tolo pense que ele a engana. A leitura, em profundidade, diga-se, de Sobre a Verdade e a Mentira no Sentido Extra-moral, de Nietzsche, talvez possa abrir caminhos - para 'as mentes versadas nos jogos do espírito' - que levem às razões que estão por trás da afirmativa de Confúcio, afinal, como ele próprio disse, 'quem não conhece o valor das palavras não saberá conhecer os seres humanos'. Abaixo, um extrato do mencionado trabalho de Nietzsche, retirado do volume da Coleção Os Pensadores a ele dedicado (São Paulo: Nova Cultural, 1999). 


Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral

O autoengano dos seres humanos: próximo e distante 

Friedrich Wilhelm NIETZSCHE

Em algum remoto rincão do universo cintilante que se derrama em um sem-número de sistemas solares, havia uma vez um astro, em que animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais soberbo e mais mentiroso da “história universal”: mas também foi somente um minuto. Passados poucos fôlegos da natureza congelou-se o astro, e os animais inteligentes tiveram de morrer. – Assim poderia alguém inventar uma fábula e nem por isso teria ilustrado suficientemente quão lamentável, quão fantasmagórico e fugaz, quão sem finalidade e gratuito fica o intelecto humano dentro da natureza. Houve eternidades, em que ele não estava; quando de novo ele tiver passado, nada terá acontecido. Pois não há para aquele intelecto nenhuma missão mais vasta, que conduzisse além da vida humana. Ao contrário, ele é humano, e somente seu possuidor e genitor o toma tão pateticamente, como se os gonzos do mundo girassem nele. Mas se pudéssemos entender-nos com a mosca, perceberíamos então que também ela bóia no ar com esse páthos e sente em si o centro voante deste mundo. Não há nada tão desprezível e mesquinho na natureza que, com um pequeno sopro daquela força do conhecimento, não transbordasse logo como um odre; e como todo transportador de carga quer ter seu admirador, mesmo o mais orgulhoso dos homens, o filósofo, pensa ver por todos os lados os olhos do universo telescopicamente em mira sobre seu agir e pensar.
É notável que o intelecto seja capaz disso, justamente ele, que foi concedido apenas como meio auxiliar aos mais infelizes, delicados e perecíveis dos seres, para firmá-los um minuto na existência, da qual, sem essa concessão, eles teriam toda razão para fugir tão rapidamente quanto o filho de Lessing. Aquela altivez associada ao conhecer e sentir, nuvem de cegueira pousada sobre os olhos e sentidos dos homens, engana-os pois sobre o valor da existência, ao trazer em si a mais lisonjeira das estimativas de valor sobre os próprio conhecer. Seu efeito mais geral é engano – mas mesmo os efeitos mais particulares trazem em si algo do mesmo caráter.
O intelecto, como um meio para a conservação do indivíduo, desdobra suas forças mestras no disfarce; pois este é o meio pelo qual os indivíduos mais fracos, menos robustos, se conservam, aqueles aos quais está vedado travar uma luta pela existência com chifres ou presas aguçadas. No homem essa arte do disfarce chega a seu ápice; aqui o engano, o lisonjear, mentir e ludibriar, o falar-por-trás-das-costas, o representar, o viver em glória de empréstimo, o mascarar-se, a convenção dissimulante, o jogo teatral diante de outros e diante de si mesmo, em suma, o constante bater de asas em torno dessa única chama que é a vaidade, é a tal ponto a regra e a lei que quase nada é mais inconcebível do que como pôde aparecer entre os homens um honesto e puro impulso à verdade. Eles estão profundamente imersos em ilusões e imagens de sonho, seu olho apenas resvala às tontas pela superfície das coisas e vê “formas”, sua sensação não conduz em parte alguma à verdade, mas contenta-se em receber estímulos e como que dedilhar um teclado às costas das coisas. Por isso o homem, à noite, através da vida, deixa que o sonho lhe minta, sem que seu sentimento moral jamais tentasse impedi-lo; no entanto, deve haver homens que pela força de vontade deixaram o hábito de roncar. O que sabe propriamente o homem sobre si mesmo! Sim, seria ele sequer capaz de alguma vez perceber-se completamente, como se estivesse em uma vitrina iluminada? Não lhe cala a natureza quase tudo, mesmo sobre seu corpo, para mantê-lo à parte das circunvoluções dos intestinos, do fluxo rápido das correntes sanguíneas, das intrincadas vibrações das fibras, exilado e trancado em uma consciência orgulhosa, charlatã! Ela atirou fora a chave: e ai da fatal curiosidade que através de uma fresta foi capaz de sair uma vez do cubículo da consciência e olhar para baixo, e agora pressentiu que sobre o implacável, o ávido, o insaciável, o assassino, repousa o homem, na indiferença de seu não-saber, e como que pendente em sonhos sobre o dorso de um tigre. De onde neste mundo viria, nessa constelação, o impulso à verdade!
Enquanto o indivíduo, em contraposição a outros indivíduos, quer conservar-se, ele usa o intelecto, em um estado natural das coisas, no mais das vezes somente para a representação: mas, porque o homem, ao mesmo tempo por necessidade e tédio, quer existir socialmente e em rebanho, ele precisa de um acordo de paz e se esforça para que pelo menos a máxima bellum omnium contra omnes [1]desapareça do seu mundo. Esse tratado de paz traz consigo algo que parece ser o primeiro passo para alcançar aquele enigmático impulso à verdade. Agora, com efeito, é fixado aquilo que doravante deve ser “verdade”, isto é, é descoberta uma designação uniformemente válida e obrigatória das coisas, e a legislação da linguagem dá também as primeiras leis da verdade: pois surge aqui pela primeira vez o contraste entre verdade e mentira. O mentiroso usa as designações válidas, as palavras, para fazer aparecer o não-efetivo como efetivo; ele diz, por exemplo: “sou rico”, quando para seu estado seria precisamente “pobre” a designação correta. Ele faz mau uso das firmes convenções por meio de trocas arbitrárias ou mesmo inversões dos nomes. Se ele o faz de maneira egoísta e de resto prejudicial, a sociedade não confiará mais nele e com isso o excluirá de si. Os homens, nisso, não procuram tanto evitar serem enganados, quanto serem prejudicados pelo engano: o que odeiam, mesmo nesse nível, no fundo não é a ilusão, mas as conseqüências nocivas, hostis, de certas espécies de ilusões. É também em um sentido restrito semelhante que o homem quer somente a verdade: deseja as conseqüências da verdade que são agradáveis e conservam a vida: diante do conhecimento puro sem conseqüências ele é indiferente, diante das verdades talvez perniciosas e destrutivas ele tem disposição até mesmo hostil. E além disso: o que se passa com aquelas convenções da linguagem? São talvez frutos do conhecimento, do senso de verdade: as designações e as coisas se recobrem? É a linguagem a expressão adequada de todas as realidades?
Somente por esquecimento pode o homem alguma vez chegar a supor que possui uma “verdade” no grau acima designado. Se ele não quiser contentar-se com a verdade na forma da tautologia, isto é, com os estojos vazios, comprará eternamente ilusões por verdades. O que é uma palavra? A figuração de um estímulo nervoso em sons. Mas concluir do estímulo nervoso uma causa fora de nós já é resultado de uma aplicação falsa e ilegítima do princípio da razão. Como poderíamos nós, se somente a verdade fosse decisiva na gênese da linguagem, se somente o ponto de vista da certeza fosse decisivo nas designações, como poderíamos no entanto dizer: a pedra é dura: como se para nós esse “dura” fosse conhecido ainda de outro modo, e não somente como estimulação inteiramente subjetiva! Dividimos as coisas por gêneros, designamos a árvore como feminina, o vegetal como masculino: que transposições arbitrárias! A que distância voamos além do cânone da certeza! Falamos de uma Schlange (cobra): a designação não se refere a nada mais do que o enrodilhar-se, e, portanto poderia também caber ao verme. [2] Que delimitações arbitrárias, que preferências unilaterais, ora por esta, ora por aquela propriedade de uma coisa! As diferentes línguas, colocadas lado a lado, mostram que nas palavras nunca importa a verdade, nunca uma expressão adequada: pois senão não haveria tantas línguas. A “coisa em si” (tal seria justamente a verdade pura sem conseqüências) é, também para o formador da linguagem, inteiramente incaptável e nem sequer algo que vale a pena. Ele designa apenas as relações das coisas aos homens e toma em auxílio para exprimi-las as mais audaciosas metáforas. Um estímulo nervoso, primeiramente transposto em uma imagem! Primeira metáfora. A imagem, por sua vez, modelada em um som! Segunda metáfora. E a cada vez completa mudança de esfera, passagem para uma esfera inteiramente outra e nova. Pode-se pensar em um homem, que seja totalmente surdo e nunca tenha tido uma sensação do som e da música: do mesmo modo que este, porventura, vê com espanto as figuras sonoras de Chladni [3] desenhadas na areia, encontra suas causas na vibração das cordas e jurará agora que há de saber o que os homens denominam o “som”, assim também acontece a todos nós com a linguagem. Acreditamos saber algo das coisas mesmas, se falamos de árvores, cores, neve e flores, e no entanto não possuímos nada mais do que metáforas das coisas, que de nenhum modo correspondem às entidades de origem. Assim como o som convertido em figura na areia, assim se comporta o enigmático X da coisa em si, uma vez como estímulo nervoso, em seguida como imagem, enfim como som. Em todo caso, portanto, não é logicamente que ocorre a gênese da linguagem, e o material inteiro, no qual e com o mais tarde o homem de verdade, o pesquisador, o filósofo, trabalha e constrói, provém, se não de Cucolândia das Nuvens, em todo caso não da essência das coisas.
Pensemos ainda, em particular, na formação dos conceitos. Toda palavra torna-se logo conceito justamente quando não deve servir, como recordação, para a vivência primitiva, completamente individualizada e única à qual deve seu surgimento, mas ao mesmo tempo tem de convir a um sem-número de casos, mais ou menos semelhantes, isto é, tomados rigorosamente, nunca iguais, portanto, a casos claramente desiguais. Todo conceito nasce por igualação do não-igual. Assim como é certo que nunca uma folha é formado por arbitrário abandono dessas diferenças individuais, por um esquecer-se do que é distintivo, e desperta então a representação, como se na natureza além das folhas houvesse algo, que fosse “folha”, uma espécie de folha primordial, segundo a qual todas as folhas fossem tecidas, desenhadas, recortadas, coloridas, frisadas, pintadas, mas por mão inábeis, de tal modo que nenhum exemplar tivesse saído correto e fidedigno como cópia fiel da forma primordial. Denominamos um homem “honesto”; por que ele agiu hoje tão honestamente? – perguntamos. Nossa resposta costuma ser: por causa de sua honestidade. A honestidade! Isto quer dizer, mais uma vez: a folha é a causa das folhas. O certo é que não sabemos nada da qualidade essencial, que se chamasse “a honestidade”, mas sabemos, isso sim, de numerosas ações individualizadas, portanto desiguais, que igualamos pelo abandono do desigual e designamos, agora, ações honestas; por fim, formulamos a partir delas umaqualitas occulta com o nome: “a honestidade”. A desconsideração do individual e efetivo nos dá o conceito, assim como nos dá também a forma, enquanto a natureza não conhece formas nem conceitos, portanto também não conhece espécies, mas somente um X, para nós inacessível e indefinível. Pois mesmo nossa oposição entre indivíduo e espécie é antropomórfica e não provém da essência das coisas, mesmo se não ousamos dizer que não lhe corresponde: isto seria, com efeito, uma afirmação dogmática e com tal tão indemonstrável quanto seu contrário.
O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas.
Continuamos ainda sem saber de onde provém o impulso à verdade: pois até agora só ouvimos falar da obrigação que a sociedade, para existir, estabelece: de dizer a verdade, isto é, de usar as metáforas usuais, portanto, expresso moralmente: da obrigação de mentir segundo uma convenção sólida, mentir em rebanho, em um estilo obrigatório para todos. Ora, o homem esquece sem dúvida que é assim que se passa com ele: mente, pois, da maneira designada, inconscientemente e segundo hábitos seculares – e justamente por essa inconsciência, justamente por esse esquecimento, chega ao sentimento da verdade. No sentimento de estar obrigado a designar uma coisa como “vermelha”, outra como “fria”, uma terceira como “muda”, desperta uma emoção que se refere moralmente à verdade: a partir da oposição ao mentiroso, em quem ninguém confia, que todos excluem, o homem demonstra a si mesmo o que há de honrado, digno de confiança e útil na verdade. Coloca agora seu agir como ser “racional” sob a regência das abstrações; não suporta mais ser arrastado pelas impressões súbitas, pelas intuições, universaliza antes todas essas impressões em conceitos mais descoloridos, mais frios, para atrelar a eles o carro de seu viver e agir. Tudo o que destaca o homem do animal depende dessa aptidão de liquefazer a metáfora intuitiva em um esquema, portanto de dissolver uma imagem em um conceito. Ou seja, no reino daqueles esquemas, é possível algo que nunca poderia ter êxito sob o efeito das primeiras impressões intuitivas: edificar uma ordenação piramidal por castas e graus, criar um novo mundo de leis, privilégios, subordinações, demarcações de limites, que ora se defronta ao outro mundo intuitivo das primeiras impressões como o mais sólido, o mais universal, o mais conhecido, o mais humano e, por isso, como o regulador e imperativo. Enquanto cada metáfora intuitiva é individual e sem igual e, por isso, sabe escapar a toda rubricacão, o grande edifício dos conceitos ostenta a regularidade rígida de um columbário romano e respira na lógica aquele rigor e frieza, que são da própria matemática. Quem é bafejado por essa frieza dificilmente acreditará que até mesmo o conceito, ósseo e octogonal como um dado e tão fácil de deslocar quanto este, é somente o resíduo de uma metáfora, e que a ilusão da transposição artificial de um estímulo nervoso em imagens, se não é a mãe, é pelo menos a avó de todo e qualquer conceito. No interior desse jogo de dados do conceito, porém, chama-se “verdade” usar cada dado assim como ele é designado, contar exatamente seus pontos, formar rubricas corretas e nunca pecar contra a ordenação de castas e a seqüência das classes hierárquicas. Assim como os romanos e etruscos retalhavam o céu com rígidas linhas matemáticas e em um espaço assim delimitado confinavam um deus, como em um templo, assim cada povo tem sobre si um tal céu conceitual matematicamente repartido e entende agora por exigência de verdade que cada deus conceitual seja procurado somente em sua esfera. Pode-se muito bem, aqui, admirar o homem como um poderoso gênio construtivo, que consegue erigir sobre fundamentos móveis e como que sobre a água corrente um domo conceitual infinitamente complicado: – sem dúvida, para encontrar apoio sobre tais fundamentos, tem de ser uma construção como que de fios de aranha, tênue a ponto de ser carregada pelas ondas, firme a ponto de não ser espedaçada pelo sopro de cada vento. Como gênio construtivo o homem se eleva, nessa medida, muito acima da abelha: esta constrói com cera, que recolhe da natureza, ele com a matéria muito mais tênue dos conceitos, que antes tem de fabricar a partir de si mesmo. Ele é, aqui, muito admirável – mas só que não por seu impulso à verdade, ao conhecimento puro das coisas. Quando alguém esconde uma coisa atrás de um arbusto, vai procurá-la ali mesmo e a encontra, não há muito que gabar nesse procurar e encontrar: e é assim que se passa com o procurar e encontrar da “verdade” no interior do distrito da razão. Se forjo a definição de animal mamífero e em seguida declaro, depois de inspecionar um camelo: “Vejam, um animal mamífero”, com isso decerto uma verdade é trazida à luz, mas ela é de valor limitado, quero dizer, é cabalmente antropomórfica e não contém um único ponto que seja “verdadeiro em si”, efetivo e universalmente válido, sem levar em conta o homem. O pesquisador dessas verdades procura, no fundo, apenas a metamorfose do mundo em homem, luta por um entendimento do mundo como uma coisa à semelhança do homem e conquista, no melhor dos casos, o sentimento de uma assimilação. Semelhante ao astrólogo que observava as estrelas a serviço do homem e em função de sua sorte e sofrimento, assim um tal pesquisador observa o mundo inteiro como ligado ao homem, como a repercussão infinitamente refratada de um som primordial, do homem, como a imagem multiplicada de uma imagem primordial, do homem. Seu procedimento consiste em tomar o homem por medida de todas as coisas: no que, porém, parte do erro de acreditar que tem essas coisas imediatamente como objetos puros diante de si. Esquece, pois, as metáforas intuitivas de origem, como metáforas, e as toma pelas coisas mesmas.
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§ 2

Esse impulso à formação de metáforas, esse impulso fundamental do homem, que não se pode deixar de levar em conta nem por um instante, porque com isso o homem mesmo não seria levado em conta, quando se constrói para ele, a partir de suas criaturas liquefeitas, os conceitos, um novo mundo regular e rígido como uma praça forte, nem por isso, na verdade, ele é subjugado e mal é refreado. Ele procura um novo território para sua atuação e um outro leito de rio, e o encontra no mito e, em geral, na arte. Constantemente ele embaralha as rubricas e compartimentos dos conceitos propondo novas transposições, metáforas, metonímias, constantemente ele mostra o desejo de dar ao mundo de que dispõe o homem acordado uma forma tão cromaticamente irregular, inconseqüentemente incoerente, estimulante e eternamente nova como a do mundo do sonho. É verdade que somente pela teia rígida e regular do conceito o homem acordado tem certeza clara de estar acordado, e justamente por isso chega às vezes à crença de que sonha, se alguma vez aquela teia conceitual é rasgada pela arte. Pascal tem razão quando afirma que, se todas as noites nos viesse o mesmo sonho, ficaríamos tão ocupados com ele como as coisas que vemos cada dia: “Se um trabalhador manual tivesse certeza de sonhar cada noite, doze horas a fio, que é rei, acredito”, diz Pascal, “que seria tão feliz quanto um rei que todas as noites durante doze horas sonhasse que é um trabalhador manual”. O dia de vigília de um povo de emoções míticas, por exemplo os gregos antigos, é de fato, pelo milagre constantemente atuante, que o mito aceita, mais semelhantemente ao sonho do que o dia do pensador que chegou à sobriedade da ciência. Se uma vez cada árvore pode falar como ninfa ou sob o invólucro de um touro um deus pode seqüestrar donzelas, se mesmo a deusa Atena pode subitamente ser vista quando, com sua bela parelha, no séquito de Pisístrato, passa pelas praças de Atenas – e nisso acredita o ateniense honrado –, então a cada instante, como no sonho, tudo é possível, e a natureza inteira esvoaça em torno do homem como se fosse apenas uma mascarada dos deuses, para os quais seria apenas uma diversão enganar os homens em todas as formas.

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[1] Guerra de todos contra todos. (N. do E.)
[2] A palavra Schlange é diretamente derivada, por afonia, do verbo schlingen (torcer, enroscar), no sentido específico da forma proposicionalsich schlingen, que equivale ao de sich winden (enrodilhar-se). Em português a ligação entre a palavra cobra e o verbo colear é bem mais remota: mais próxima, talvez, seria a relação entre serpente e serpear. Preferimos, em todo caso, manter o exemplo original do texto. (N. do T.)
[3] Chladni, Ernst Friedrich – físico alemão (1756-1826); celebrizou-se por suas engenhosas experiências sobre a teoria do som. (N. do T.)