quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Zizek: sobre o sujeito interpassivo

Slavoj Zizek, creio eu, é um pensador social que, nesta condição, supera as fronteiras disciplinares (muito embora, nalgumas paragens, há quem o defina apenas como 'um professor de filosofia', pode?!). E, ao ler textos seus, como o que a seguir reproduzo, só reforço essa minha convicção. O sujeito interpassivo ou o outro lado de uma determinada interatividade. A conferir o texto. 


Slavoj Zizek
É lugar-comum enfatizar como, com os novos meios eletrônicos, o consumo passivo de um texto ou obra de arte está ultrapassado: não mais apenas contemplo a tela, interajo com ela cada vez mais, entrando numa relação dialógica com ela (escolhendo os programas, participando de debates numa comunidade virtual, ou mesmo determinando diretamente o desfecho da trama nas chamadas "narrativas interativas").
(...) O outro lado dessa interatividade é a interpassividade. A contraparte da interação com o objeto (em vez do acompanhamento passivo do espetáculo) é a situação em que o próprio objeto tira de mim minha passividade, priva-me dela, de tal modo que é o objeto que aprecia o espetáculo em vez de mim, poupando-me da obrigação de me divertir. (...) Parece que, hoje, até a pornografia funciona cada vez mais de um modo interpassivo: filmes pornográficos não são mais fundamentalmente o meio para excitar o usuário para sua atividade masturbatória solitária - contemplar a tela em que a "ação ocorre" é suficiente, basta-me observar como os outros gozam em meu lugar. (...)
A interpassividade é o oposto da noção de Hegel de List der Vernunft (astúcia da Razão), em que sou ativo através do Outro: posso permanecer passivo, sentado confortavelmente em segundo plano, enquanto o Outro age por mim. Em vez de bater no metal com um martelo, a máquina pode fazer isso por mim; em vez de girar eu mesmo a roda do moinho, a água pode fazer isso: atinjo meu objetivo interpondo entre mim e o objeto sobre o qual trabalho um outro objeto natural. O mesmo pode acontecer no nível interpessoal: em vez de atacar diretamente o meu inimigo, instigo uma luta entre ele e outra pessoa, de modo a poder observar confortavelmente os dois se destruindo.
No caso da interpassividade, ao contrário, sou passivo através do Outro. Concedo ao Outro o aspecto passivo (gozar) de minha experiência, enquanto posso continuar ativamente empenhado (...posso tomar providências financeiras relativas à fortuna do falecido enquanto as carpideiras pranteiam por mim). Isso nos leva à noção de falsa atividade : as pessoas não agem somente para mudar alguma coisa, elas podem também agir para impedir que alguma coisa aconteça, de modo que nada venha a mudar.
(...) Mesmo em grande parte da política progressista de hoje, o perigo não é a passividade, mas a pseudoatividade, a ânsia de ser ativo e participar. As pessoas intervêm o tempo todo, tentando "fazer alguma coisa", acadêmicos participam de debates sem sentido; a coisa realmente difícil é dar um passo atrás e retirar-se daquilo. Os que estão no poder muitas vezes preferem até uma participação crítica em vez do silêncio - só para nos envolver num diálogo, para se assegurar de que nossa passividade ameaçadora seja rompida. Contra esse modo interpassivo, em que somos ativos o tempo todo para assegurar que nada mudará realmente, o primeiro passo verdadeiramente decisivo é retirar-se para a passividade e recusar-se a participar. Esse primeiro passo limpa o terreno para uma atividade verdadeira, para um ato que mudará efetivamente as coordenadas da cena.
(...)Quando eu acredito através de outrem, ou tenho minhas crenças externalizadas no ritual que sigo mecanicamente, quando rio por meio de risada enlatada, ou faço o trabalho de luto através de carpideiras, estou realizando uma tarefa que diz respeito a meus sentimentos e crenças íntimos sem realmente mobilizar esses estados íntimos. (...) Ainda sim, seria errado qualificar meu ato de hipócrita, já que de outra maneira eu sinto isso: (...) eu rio "sinceramente" através da risada enlatada (a prova é o fato de que me sinto efetivamente aliviado).
O que isso significa é que as emoções que enceno através da máscara (a falsa persona) que adoto podem, de uma forma estranha, ser mais autênticas e verdadeiras do que admito sentir em meu foro íntimo. Quando construo uma falsa imagem de mim que me representa numa comunidade virtual de que participo (em jogos sexuais, por exemplo, um homem tímido muitas vezes adota na tela a persona de uma mulher promíscua e atraente), as emoções que sinto e finjo como parte de meu personagem não são simplesmente falsas: embora (o que considero como) meu verdadeiro eu não as sinta, elas são contudo verdadeiras em certo sentido. Suponhamos que, no fundo, eu seja um pervertidosádico que sonha em surrar outros homens e estuprar mulheres; como em minha interação com outras pessoas na vida real não me é permitido expressar esse verdadeiro eu, adoto uma persona mais humilde e polida. Neste caso, não se segue que meu verdadeiro eu está muito mais próximo do que adoto como um personagem fictício na tela e o eu de minhas interações na vida real é uma máscara? Paradoxalmente, é o próprio fato de eu estar ciente de que, no ciberespaço, eu me movo dentro de uma ficção que me permite expresar ali o meu verdadeiro eu - é isso, entre outras coisas, que Lacan tem em mente quando afirma que a "verdade tem a estrutura de ficção".
(...) O hiato entre minha identida psicológica direta e minha identidade simbólica ( a máscara ou título simbólico que uso, definindo o que sou para e dentro do grande Outro) é o que Lacan chama de "castração simbólica", (...) a castração que ocorre pelo próprio fato de eu ser apanhado na ordem simbólica, assumindo uma máscara ou título simbólico. A castração é o hiato entre o que sou imediatamente e o título simbólico que me confere certo status e autoridade. (...) a identidade simbólica conferida a nós é o resultado do modo como a ideologia dominante nos "interpela" - como ciddãos, democratas, cristãos. A histeria emerge quando um sujeito começa a questionar ou sentir desconforto em sua identidade simbólica: "Você me diz que sou amado - o que há em mim que me torna seu amado? O que vê em mim que o leva a me desejar desse modo?".
A realidade virtual simplesmente generaliza esse procedimentode oferecer um produto despojado de sua substância: fornece a própria realidade despojada de sua substância, do núcleo duro resistente do real - do mesmo modo como um café descafeinado tem cheiro e gosto de café real sem ser a coisa verdadeira, a realidade virtual é experimentada como realidade sem o ser. Tudo é permitido, você pode desfrutar tudo - com a condição de que tudo seja privado da substância que o torna perigoso.
(...) "Precisamente quando pareço expresar meu desejo mais íntimo e autêntico, o que eu quero já me foi imposto pela ordem patriarcal que me diz o que desejar, de modo que a primeira condição de minha libertação é que eu rompa o cículo vicioso de meu desejo alienado e aprenda a formular meu desejo de maneira autônoma".
(...) Aceitar plenamente essa incoerência de nosso desejo, aceitar plenamente que é o desejo que sabota, ele mesmo, sua própria libertação é a lição amarga de Lacan (...) não há garantia para nosso desejo no grande Outro.
(In: Como ler Lacan. Slavoj Zizek. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. p.33-52).


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