Slavoj Zizek, creio eu, é um pensador social que, nesta condição, supera as fronteiras disciplinares (muito embora, nalgumas paragens, há quem o defina apenas como 'um professor de filosofia', pode?!). E, ao ler textos seus, como o que a seguir reproduzo, só reforço essa minha convicção. O sujeito interpassivo ou o outro lado de uma determinada interatividade. A conferir o texto.
Slavoj Zizek
É lugar-comum enfatizar como, com os
novos meios eletrônicos, o consumo passivo de um texto ou obra de arte está
ultrapassado: não mais apenas contemplo a tela, interajo com ela cada vez mais,
entrando numa relação dialógica com ela (escolhendo os programas, participando
de debates numa comunidade virtual, ou mesmo determinando diretamente o
desfecho da trama nas chamadas "narrativas interativas").
(...) O outro lado dessa
interatividade é a interpassividade. A contraparte da interação com o objeto
(em vez do acompanhamento passivo do espetáculo) é a situação em que o próprio
objeto tira de mim minha passividade, priva-me dela, de tal modo que é o objeto
que aprecia o espetáculo em vez de mim, poupando-me da obrigação de me
divertir. (...) Parece que, hoje, até a pornografia funciona cada vez mais de
um modo interpassivo: filmes pornográficos não são mais fundamentalmente o meio
para excitar o usuário para sua atividade masturbatória solitária - contemplar
a tela em que a "ação ocorre" é suficiente, basta-me observar como
os outros gozam em meu lugar. (...)
A interpassividade é o oposto da
noção de Hegel de List der Vernunft (astúcia da Razão), em que
sou ativo através do Outro: posso permanecer passivo, sentado confortavelmente
em segundo plano, enquanto o Outro age por mim. Em vez de bater no metal com um
martelo, a máquina pode fazer isso por mim; em vez de girar eu mesmo a roda do
moinho, a água pode fazer isso: atinjo meu objetivo interpondo entre mim e o
objeto sobre o qual trabalho um
outro objeto natural. O mesmo pode acontecer no nível interpessoal: em vez de
atacar diretamente o meu inimigo, instigo uma luta entre ele e outra pessoa, de
modo a poder observar confortavelmente os dois se destruindo.
No caso da interpassividade, ao
contrário, sou passivo através do Outro. Concedo ao Outro o
aspecto passivo (gozar) de minha experiência, enquanto posso continuar
ativamente empenhado (...posso tomar providências financeiras relativas à
fortuna do falecido enquanto as carpideiras pranteiam por mim). Isso nos leva à
noção de falsa atividade : as pessoas não agem somente para
mudar alguma coisa, elas podem também agir para impedir que alguma coisa
aconteça, de modo que nada venha a mudar.
(...) Mesmo em grande parte da
política progressista de hoje, o perigo não é a passividade, mas a
pseudoatividade, a ânsia de ser ativo e participar. As pessoas intervêm o tempo
todo, tentando "fazer alguma coisa", acadêmicos participam de debates
sem sentido; a coisa realmente difícil é dar um passo atrás e retirar-se
daquilo. Os que estão no poder muitas vezes preferem até uma participação
crítica em vez do silêncio - só para nos envolver num diálogo, para se
assegurar de que nossa passividade ameaçadora seja rompida. Contra esse modo
interpassivo, em que somos ativos o tempo todo para assegurar que nada mudará
realmente, o primeiro passo verdadeiramente decisivo é retirar-se para
a passividade e recusar-se a participar. Esse primeiro passo limpa o
terreno para uma atividade verdadeira, para um ato que mudará efetivamente as
coordenadas da cena.
(...)Quando eu acredito através de
outrem, ou tenho minhas crenças externalizadas no ritual que sigo
mecanicamente, quando rio por meio de risada enlatada, ou faço o trabalho de
luto através de carpideiras, estou realizando uma tarefa que diz respeito a
meus sentimentos e crenças íntimos sem realmente mobilizar esses estados íntimos.
(...) Ainda sim, seria errado qualificar meu ato de hipócrita, já que de outra
maneira eu sinto isso: (...) eu rio
"sinceramente" através da risada enlatada (a prova é o fato de
que me sinto efetivamente aliviado).
O que isso significa é que as emoções
que enceno através da máscara (a falsa persona) que adoto podem, de uma forma
estranha, ser mais autênticas e verdadeiras do que admito sentir em meu foro
íntimo. Quando construo uma falsa imagem de mim que me representa numa
comunidade virtual de que participo (em jogos sexuais, por exemplo, um homem
tímido muitas vezes adota na tela a persona de uma mulher promíscua e
atraente), as emoções que sinto e finjo como parte de meu personagem não são
simplesmente falsas: embora (o que considero como) meu verdadeiro eu não
as sinta, elas são contudo verdadeiras em certo sentido. Suponhamos que, no
fundo, eu seja um pervertidosádico que sonha em surrar outros homens e estuprar
mulheres; como em minha interação com outras pessoas na vida real não me é
permitido expressar esse verdadeiro eu, adoto uma persona mais humilde e
polida. Neste caso, não se segue que meu verdadeiro eu está muito mais próximo
do que adoto como um personagem fictício na tela e o eu de minhas interações na
vida real é uma máscara? Paradoxalmente, é o próprio fato de eu estar ciente de
que, no ciberespaço, eu me movo dentro de uma ficção que me permite expresar
ali o meu verdadeiro eu - é isso, entre outras coisas, que Lacan tem em mente
quando afirma que a "verdade tem a estrutura de ficção".
(...) O hiato entre minha identida
psicológica direta e minha identidade simbólica ( a máscara ou título simbólico
que uso, definindo o que sou para e dentro do grande Outro) é o que Lacan chama
de "castração simbólica", (...) a castração que ocorre pelo
próprio fato de eu ser apanhado na ordem simbólica, assumindo uma máscara ou
título simbólico. A castração é o hiato entre o que sou imediatamente e o
título simbólico que me confere certo status e autoridade. (...) a identidade
simbólica conferida a nós é o resultado do modo como a ideologia dominante nos
"interpela" - como ciddãos, democratas, cristãos. A histeria emerge
quando um sujeito começa a questionar ou sentir desconforto em sua identidade
simbólica: "Você me diz que sou amado - o que há em mim que me torna seu
amado? O que vê em mim que o leva a me desejar desse modo?".
A realidade virtual simplesmente
generaliza esse procedimentode oferecer um produto despojado de sua substância:
fornece a própria realidade despojada de sua substância, do núcleo duro
resistente do real - do mesmo modo como um café descafeinado tem cheiro e gosto
de café real sem ser a coisa verdadeira, a realidade virtual é experimentada
como realidade sem o ser. Tudo é permitido, você pode desfrutar tudo - com
a condição de que tudo seja privado da substância que o torna perigoso.
(...) "Precisamente quando pareço expresar meu desejo mais íntimo e autêntico, o que eu quero já me foi imposto pela ordem patriarcal que me diz o que desejar, de modo que a primeira condição de minha libertação é que eu rompa o cículo vicioso de meu desejo alienado e aprenda a formular meu desejo de maneira autônoma".
(...) "Precisamente quando pareço expresar meu desejo mais íntimo e autêntico, o que eu quero já me foi imposto pela ordem patriarcal que me diz o que desejar, de modo que a primeira condição de minha libertação é que eu rompa o cículo vicioso de meu desejo alienado e aprenda a formular meu desejo de maneira autônoma".
(...) Aceitar plenamente essa
incoerência de nosso desejo, aceitar plenamente que é o desejo que sabota, ele
mesmo, sua própria libertação é a lição amarga de Lacan (...) não há garantia
para nosso desejo no grande Outro.
(In: Como ler Lacan. Slavoj Zizek. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
p.33-52).
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