A inserção no universo da ciência é algo desafiante, sobretudo no universo das ciências humanas, onde, por vezes, mera retórica e ideologia terminam sendo apresentados como trabalhos acadêmicos/científicos. De resto, outro problema é a questão da originalidade. E, neste particular, um dos "imbróglios" é a questão das citações, do modo impróprio como autores são incorporados - de uma forma que, em determinados textos, se as citações forem retiradas, na verdade, não sobrará texto. A pergunta: qual contribuição o autor do texto apresentou, em que foi original? O que está em causa é como combinar a produção já existente com a formulação de algo novo, mas que tenha um background consistente. Abaixo, um texto do Prof. Marco Mello, do campo das ciências naturais, a propósito da originalidade de um trabalho científico.
Originalidade na ciência: em 04 de Dezembro de 1888, o inventor norte-americano George Eastman registra a câmera Kodak
Por Marco Mello
Chegou
a vez de tratar de outro tema estressante para a maioria dos alunos: a
originalidade de um trabalho científico. Muitos só começam a se preocupar com
isso no doutorado. Porém, trabalhos originais deveriam ser cobrados
desde a iniciação científica. Mas por quê? Aqui explico um pouco sobre os
diferentes conceitos de originalidade usados na ciência e seus vieses
culturais.
Como
comentado em outro artigo curto, a originalidade é a
principal diferença entre uma monografia de bacharelado (também conhecida como TCC), uma dissertação de mestrado e uma tese de doutorado. Enquanto nos dois
primeiros níveis não é necessário apresentar um trabalho original, no terceiro a
originalidade é uma condição obrigatória. No geral, isso significa dizer que,
em uma monografia ou dissertação, não é necessário gerar conhecimento novo;
basta o aluno resumir o conhecimento acumulado sobre um assunto de sua escolha,
muitas vezes sem nem ao menos incluir uma opinião própria. Já no doutorado o
aluno é obrigado a apresentar uma novidade, senão seu trabalho de conclusão não
pode ser chamado de tese. Mas o que garante a originalidade de um
trabalho? Como diferenciar entre novidades e “mais do mesmo”?
Essas
perguntas não são tão fáceis de responder quanto parecem. A definição da
originalidade de um trabalho científico depende basicamente do nível de rigor
do curso depós-graduação, da postura do orientador e da
ambição do próprio aluno. Na média, o rigor na
definição da originalidade varia muito entre culturas, atingindo seu nível
máximo nos países anglo-saxões.
Em
muitos cursos de pós-graduação de países latinos, como o Brasil e a Argentina,
para uma tese ser considerada original é preciso muito pouco. Por exemplo, o
doutorando pode simplesmente tomar como base um trabalho que ache interessante
e aí mudar o táxon modelo ou a área de estudo, repetindo todo o resto da
fórmula, e mesmo assim sua tese poderá ser aprovada. Obviamente, quem faz isso
não está incorrendo em plágio. Mas por outro lado
também não está sendo treinado corretamente no método científico e nem
aprendendo a fazer boa ciência. Está apenas aprendendo um trabalho técnico, uma
repetição de fórmulas.
Já
em países como EUA e Alemanha, um aluno de doutorado precisa ter uma nova idéia
e testá-la para que seu trabalho possa ser chamado de tese. Não basta brincar
de fazer um pouco diferente. É preciso pensar diferente, identificar os limites do
conhecimentodentro do assunto escolhido e, a partir daí, criar e
testar perguntas, hipóteses e previsões. Por exemplo, o aluno pode tomar como
base diferentes fatos, hipóteses e teorias relacionadas ao táxon ou fenômeno de
interesse, que já foram estudadas por colegas, e a partir delas fazer um
raciocínio dedutivo que o leve a criar uma nova hipótese a ser testada em sua
tese. É uma lógica do tipo: “presumindo que A e B são verdades, então C deve
acontecer”. Pode ser também que o aluno ou o orientador dêem a sorte de
descobrir um táxon, fenômeno ou ambiente completamente novos e aí dediquem uma
tese à sua descrição, ajudando também
o conhecimento a avançar.
É claro que essas
diferenças não são uma questão de preto-e-branco. Há muitos trabalhos originais
e relevantes que são desenvolvidos em outras culturas que não a anglo-saxã,
assim como trabalhos repetitivos e monótonos desenvolvidos no Primeiro Mundo.
Aliás, nos países desenvolvidos, às vezes vemos teses brilhantes que, na
verdade, não saíram da cabeça do aluno, mas sim da cabeça do orientador. O
orientador pensa de forma integrada em vários projetos, em diferentes níveis e
numa escala de tempo grande, e apenas contrata doutorandos que trabalham como
testadores das suas idéias. Nesses casos, qual é a relevância de uma tese
dessas para a formação do jovem cientista? Por outro lado, há orientadores em
países subdesenvolvidos que não ficam nada a dever aos seus colegas do Primeiro
Mundo em termos de criatividade e originalidade e, além disso, treinam seus
alunos corretamente.
Mas
não dá para ignorar que, nos países subdesenvolvidos, o problema mais comum é a
falta de treinamento no método hipotético-dedutivo. Isso
leva vários orientadores e alunos a seguirem pelo caminho confortável e maçante
do “comparar só por comparar” ou “descrever só por descrever”, produzindo
“teses” sobre a “flora da matinha lá da Fazenda do Nhô Lau, que ninguém nunca
havia estudado antes”. Como já comentei em outro artigo, descrições e
comparações são fundamentais em qualquer ciência, porém mesmo elas precisam de
um contexto bem bolado para se tornarem relevantes. No caso dos inventários de
espécies, um assunto sempre polêmico, o mínimo exigido para se considerar um
trabalho como original poderia ser, por exemplo, um planejamento que levasse em
conta as localidades do país com maior deficiência de estudos sobre o táxon
escolhido.
Além
disso, considerando que a formação de um jovem cientista deveria ser focada
principalmente no aprendizado do método hipotético-dedutivo (além das outras
habilidades básicas, como a comunicação escrita e
oral), chega-se à conclusão lógica de que mesmo uma monografia de bacharelado
deveria ser baseada em uma pergunta original. Senão, como o aluno vai aprender
a usar o conhecimento acumulado para gerar conhecimento novo? Faz sentido
obrigar o aluno a simplesmente mastigar e mastigar conhecimento na monografia e
na dissertação, só cobrando dele criatividade no doutorado? Eu acho que não.
Aliás, eu tenho certeza que não. Afinal de contas, em uma pós-graduação stricto
sensu, queremos formar
cientistas e não pesquisadores. A diferença entre os trabalhos de
conclusão exigidos nos diferentes níveis acadêmicos deveria ser o grau de
complexidade e aprofundamento, e não a originalidade. Desde a iniciação
científica, os alunos precisam aprender a encontrar e processar conhecimento
com o objetivo de produzir novidades.
Para
concluir, sugiro aos cientistas aspirantes que procurem orientadores que valorizem
a criatividade e a originalidade. Muitos alunos com bom potencial acabam
mudando de carreira simplesmente por terem uma péssima primeira impressão da
ciência no bacharelado, causada por professores que tratam seus laboratórios
acadêmicos como se fossem linhas de produção de montadoras de carros. Ei, você,
que anda desapontado com a Academia: tem muita ciência interessante sendo
desenvolvida por aí! Acorde! Não deixe
que uma experiência ruim defina o conceito que você tem da ciência como um
todo. Acreditem, elaborar um projeto original dá um
trabalhão, mas é infinitamente mais divertido e dá muito mais satisfação!
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Fonte: http://marcoarmello.wordpress.com/2012/05/03/o-que-faz-um-trabalho-cientifico-ser-original/#more-326
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