sábado, 22 de dezembro de 2012

A cor do tempo quando passa


Pois então, o passar dos dias, o contar dos anos: a cor do tempo quando passa... 

Cavalaria Vermelha, de Malevich



Paisagens de passagem: a existência na cor do tempo quando passa


Por Ivonaldo Leite


Na cor do tempo quando passa, um registro: o do ser humano que convive com a sua morte, que age no seu sofrimento, o ser humano que é desejo, que perdeu o seu objetivo e que é linguagem através da qual se articula silenciosamente. Daí que Neruda bem tenha se deixado dizer pelo internalizado do vivido: “As minhas memórias ou lembranças são intermitentes e, por momentos, me escapam porque a vida é exatamente assim. A intermitência do sonho nos permite suportar os dias de trabalho. Muitas de minhas lembranças se toldaram ao evocá-las, viraram pó como um cristal irremediavelmente ferido. Talvez não vivi em mim mesmo, talvez vivi a vida dos outros. Minha vida é uma vida feita de todas as vidas: as vidas do poeta”.

Não é sem razão, portanto, a possibilidade de a aguda existência tornar-se familiar dos mais profundos abismos da vida espiritual. De a intensa consciência de si ser tomada fulminantemente por vislumbres vertiginosos e, à dada altura, inevitáveis do último e definitivo estágio da condição humana. O perecer. Hemorragia de todos os sentidos. O nada. Oh, sim, é o sorriso cru e irônico do destino: “não me escapas”.

Compreensível então o que nos dá a conhecer o Camilo Castelo Branco, emCousas Leves e Pesadas. Em solo luso, na cidade do Porto, a oitocentista ponte pênsil,logo a jusante da atual Ponte D. Luís I, foi consagrada pelo salto de um jovem advogado e poeta, inebrio com a vida e com as coisas do mundo. Não sem antes, em estilo tardio-romântico e contemplativo, declarar “isto será a sua inauguração”. A perseguição absoluta da idéia de liberdade. Ao quebrar o espelho da razão com o seu grito solitário, Nietzsche atirou estilhaços para todos os lados.

Diante disto, bem como perante as palpitações da idéia absoluta de liberdade, temperadas pela convicção existencialista de que a existência precede a essência, um certo brado conservador – no mais das vezes tingido pelo fervor religioso -  recorre à moralidade e refugia-se em Kant: “o céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim”. Se até certo ponto a máxima da ética kantiana faz sentido, por outro lado, não há como negar que a definição de um procedimento moral não constitui ciência.

Vamos a ver como são as coisas. A vida tem momentos de exaltação, de desânimo, de cólera, de enternecimento e de melancolia. Na companhia de António Patrício, podemos dizer que o valor fundamental não é obedecer à regra; o valor fundamental, numa sociedade laicizada e liberta de toda a metafísica finalista, é a própria vida como irrupção desordenada e rebelde, criadora do seu próprio sentido. A vida que, finalmente, se vive apenas uma vez em face da morte como uma onda que encrespou, arqueou num grande esforço, foi um côncavo glauco cheio de asas e explodiu a rir toda espumante. Sim, sim, a decisão de viver é algo mais do que o simples apego físico à carcaça. Para lá disso, há que se prescrutar os mais íntimos e particulares sinais dos tempos que são dados a viver.

 A ser assim, pode acontecer de se cair de tristeza e melancolia, mas também comover-se até às últimas lágrimas de alegria e gratidão, tal qual sucedeu a Nietzsche, quando ele foi tomado pela ideia de eterno retorno, no caminho de Engadine. O choro de Jung ao lado de Sabina Spielrein. Paisagens de passagem: a cor do tempo quando passa. O galope da existência, enfim, guarda qualquer semelhança com o quadro A Cavalaria Vermelha, de Malevich. Cenário enigmático. Uma luz misteriosa, que mostra e oculta. O passo numa direção infinita.

                                                                              

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