Pois então, o passar dos dias, o contar dos anos: a cor do tempo quando passa...
Cavalaria Vermelha, de Malevich
Paisagens de
passagem: a existência na cor do tempo quando passa
Por Ivonaldo
Leite
Na cor do tempo quando passa,
um registro: o do ser humano que convive com a sua morte, que age no seu
sofrimento, o ser humano que é desejo, que perdeu o seu objetivo e que é
linguagem através da qual se articula silenciosamente. Daí que Neruda bem tenha
se deixado dizer pelo internalizado do vivido: “As minhas memórias ou
lembranças são intermitentes e, por momentos, me escapam porque a vida é
exatamente assim. A intermitência do sonho nos permite suportar os dias de
trabalho. Muitas de minhas lembranças se toldaram ao evocá-las, viraram pó como
um cristal irremediavelmente ferido. Talvez não vivi em mim mesmo,
talvez vivi a vida dos outros. Minha vida é uma vida feita de todas as vidas:
as vidas do poeta”.
Não é sem razão,
portanto, a possibilidade de a aguda existência tornar-se
familiar dos mais profundos abismos da vida espiritual. De a intensa
consciência de si ser tomada fulminantemente por vislumbres vertiginosos e, à
dada altura, inevitáveis do último e definitivo estágio da condição humana. O
perecer. Hemorragia de todos os sentidos. O nada. Oh, sim, é o sorriso cru e
irônico do destino: “não me escapas”.
Compreensível
então o que nos dá a conhecer o Camilo Castelo Branco, emCousas Leves e
Pesadas. Em solo luso, na cidade do Porto, a oitocentista ponte
pênsil,logo a jusante da atual Ponte D. Luís I, foi consagrada pelo salto de um
jovem advogado e poeta, inebrio com a vida e com as coisas do mundo. Não sem
antes, em estilo tardio-romântico e contemplativo, declarar “isto será a sua
inauguração”. A perseguição absoluta da idéia de liberdade. Ao quebrar o
espelho da razão com o seu grito solitário, Nietzsche atirou estilhaços para
todos os lados.
Diante disto,
bem como perante as palpitações da idéia absoluta de liberdade, temperadas pela
convicção existencialista de que a existência precede a essência,
um certo brado conservador – no mais das vezes tingido pelo fervor religioso
- recorre à moralidade e refugia-se em Kant: “o céu estrelado sobre mim e
a lei moral dentro de mim”. Se até certo ponto a máxima da ética kantiana
faz sentido, por outro lado, não há como negar que a definição de um
procedimento moral não constitui ciência.
Vamos a ver como
são as coisas. A vida tem momentos de exaltação, de desânimo, de cólera, de
enternecimento e de melancolia. Na companhia de António Patrício, podemos dizer
que o valor fundamental não é obedecer à regra; o valor fundamental, numa
sociedade laicizada e liberta de toda a metafísica finalista, é a própria vida
como irrupção desordenada e rebelde, criadora do seu próprio sentido. A vida
que, finalmente, se vive apenas uma vez em face da morte como uma onda que
encrespou, arqueou num grande esforço, foi um côncavo glauco cheio de asas e
explodiu a rir toda espumante. Sim, sim, a decisão de viver é algo mais do que o
simples apego físico à carcaça. Para lá disso, há que se prescrutar os mais
íntimos e particulares sinais dos tempos que são dados a viver.
A ser
assim, pode acontecer de se cair de tristeza e melancolia, mas também
comover-se até às últimas lágrimas de alegria e gratidão, tal qual sucedeu a
Nietzsche, quando ele foi tomado pela ideia de eterno retorno, no
caminho de Engadine. O choro de Jung ao lado de Sabina Spielrein. Paisagens de
passagem: a cor do tempo quando passa. O galope da
existência, enfim, guarda qualquer semelhança com o quadro A Cavalaria
Vermelha, de Malevich. Cenário enigmático. Uma luz misteriosa, que mostra e
oculta. O passo numa direção infinita.
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