sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

O surrealismo cerebral de René Magritte


Chamado de pintor cerebral, a arte surrealista de René Magrite tem algo de enigmático. Não por acaso, afinal é dele a assertiva segundo a qual 'a arte evoca o mistério sem o qual o mundo não existiria'. Abaixo, do sítio lusitano Obvious (http://obviousmag.org), um breve texto do belga. 


El Sedutor, de Magrite 

René Magritte (1898-1967) tinha apenas 13 anos quando a sua mãe cometeu um acto terrível. Depois de várias tentativas de suicídio, ela atirou-se de uma ponte, afogando-se no Rio Sambre. Diz-se que este acontecimento viria a marcar para o resto da vida o pintor belga, levando-o a pintar quadros como Les Amants (1928), em que dois namorados se beijam encapuçados - da mesma forma que a sua mãe tinha sido encontrada, com o vestido cobrindo-lhe a cabeça. Apesar da tragédia, a verdade é que Magritte se tornou um dos pintores mais famosos do século XX e um marco incontornável da arte surrealista.
Os primeiros quadros de Magritte datam de 1915 e eram impressionistas. No entanto, de 1916 a 1918 o belga decidiu frequentar a Academia Real de Artes em Bruxelas de forma a aperfeiçoar a sua técnica, acabando por se aborrecer com o conservadorismo da escola e por abandoná-la. Tornou-se então um desenhador de papel de parede e artista comercial em Bruxelas, cidade onde passou a viver e se casou com Georgette Berger.
Os seus primeiros trabalhos, depois de sair da Academia, foram influenciados pelo Cubismo e Futurismo. Foi, contudo, quando se aproximou de Giorgio de Chirico e da sua pintura metafísica que Magritte mergulhou no surrealismo que viria a marcar toda a sua obra. Em 1926, deixou o emprego para se dedicar inteiramente à arte, sob o mecenato da Galerie le Centaure, que lhe permitiu pintar a tempo inteiro. Le Jockey Perdu, tela terminada no mesmo ano, foi a sua primeira obra surrealista. No entanto, a má recepção da crítica fez com que Magritte se refugiasse em Paris e aí vivesse durante três anos, estabelecendo contactos com Max Ernst, Dali, André Breton e Paul Éluard.
Voltando para Bruxelas, viu-se obrigado a criar uma agência de publicidade com o irmão, de forma a ganhar dinheiro para sustentar o seu estilo de vida. Viria mais tarde a confessar o desprezo que tinha por este tipo de trabalho: "Detesto o meu passado e o de todos. Detesto a resignação, a paciência, o heroismo profissional e os sentimentos bonitos obrigatórios. Também detesto as artes decorativas, o folclore, a publicidade, as vozes dos anúncios, o aerodinamismo, os escuteiros, o cheiros das bolas de naftalina, acontecimentos do momento e pessoas embriagadas".
Durante os anos 30 aprofundou a sua técnica, pintando imagens perturbantes e desconstruídas que logram desafiar as percepções do público. Em 1928, Magritte já nos tinha deixado uma pista para a leitura da sua obra com "A traição das imagens", pintado em Cadaqués (Catalunha) na companhia de Dali. Por baixo do cachimbo, podemos ler as palavras "Ceci n'est pas une pipe", uma aparente contradição. Contudo, se reflectirmos acerca do assunto, trata-se da imagem de um cachimbo que não satisfaz a necessidade do objecto real. O mote estava lançado: não importa o quão fiel possamos representar uma imagem, é sempre impossível capturar a sua essência.
A pintura de Magritte dá novos significados aos objectos comuns, mas de uma forma diferente. Ao contrário do automatismo surreal até então praticado, o seu trabalho surge da justaposição pensada, criando uma imagética poética e exortando à hipersensibilidade do público. O resultado são objectos híbridos, como em O Retrato (1935) ou La Durée poignardée (1938). Os motivos eram muitas vezes quotidianos: árvores, janelas, portas, cadeiras, pessoas, paisagens. Magritte não procurava o obscuro e recusava o significado dos sonhos e da psicanálise. Pelo contrário, ele procurava, através da terapia de choque e da surpresa, libertar da sua obscuridade as visões convencionais da realidade.
A simplicidade enganadora das suas telas tem um conteúdo filosófico e poético, satirizando o mundo instável e perturbado do século XX. Um mundo feroz (e veloz) no qual a razão se torna indispensável para dar sentido à vida. Mas Magritte expurga essa razão através de técnicas surrealistas, jogando com a lógica do espectador: há nos seus quadros uma necessidade de reagir ao fenómeno da vida quotidiana, criando algo inesperado. Um quadro de Magritte não é para ser admirado. É para ser objecto de reflexão e ponderado - o sentido está muitas vezes escondido e é alvo de segundas, terceiras e quartas interpretações. E as questões acerca das suas criações ainda pairam no ar, já que Magritte nunca deu respostas claras acerca do seu significado. La reproduction interdite ou Golconde são alguns dos exemplos desta aura de mistério.
Sendo versátil, Magritte foi ainda responsável por reproduzir sátiras de quadros famosos, que inspiraram o sentido de humor non-sense moderno. Apaixonado pela filosofia e literatura, muitos dos seus quadros reflectem também a sua aproximação a certos autores, como Baudelaire (em La Géante), Edgar Allan Poe (Le Domainde d'Arnheim) ou Hegel (Les Vacances de Hegel).
Durante os tempestivos anos 40, o pintor belga passou ainda por dois períodos - os únicos da sua vida - em que se afastou do surrealismo. Em 1943-44, influenciado por Renoir, adoptou um estilo colorido que deixou pouco depois, dado o desinteresse da crítica. Em 1947-48, na época "vache", foi influenciado pelos fauvistas, pintando imagens provocatórias e rudes. Desencorajado mais uma vez pelas críticas ao seu trabalho, acabou também por voltar ao seu "visual thinking" ou "pintura cerebral", termos rotulados pela crítica.
Apesar dos cerca de mil trabalhos que criou até à sua morte em Agosto de 1967, René Magritte começou apenas a ser verdadeiramente apreciado nos anos 60. O interesse generalizado fez com que muitas das suas telas se tornassem parte da cultura popular durante as décadas seguintes. Ainda hoje o seu trabalho é re-interpretado por artistas modernos. O músico Rufus Wainwright é um deles e no seu vídeo Across The Universe (2002) mostra Dakota Fanning rodeada de homens de chapéu de coco e gabardine estáticos no ar, numa semelhança inegável com "Golconde".




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