segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Um Rosto de Natal

A todos que têm visitado este espaço, dando-me o privilégio da leitura, saúdo-vos uma vez mais, nesta quadra do ano, através da pena do Ruy Belo. 




(Ruy Belo - Todos os Poemas II. Lisboa: Assírio Alvim, 2004, págs. 176-177) .

Caiu sobre o País uma cortina de silêncio
A voz distingue o homem, mas há homens que
não querem que os demais se elevem sobre os animais
E o que aos outros falta, têm eles a mais
No dia de Natal, eu caminhava
E vi que em certo rosto havia a paz que não havia
Era na multidão o rosto da justiça
Um rosto que chegava até junto de mim de Nicarágua
Um rosto que me vinha de qualquer das indochinas
Num mundo onde o homem é um lobo para o homem
E o brilho dos olhos o embacia a água
Caminhava no dia de Natal
E entre muitos ombros, eu pensava em quanto homem morreu por um deus que nasceu
A minha oração fora a leitura do jornal
E por ele soubera que o deus que cria
consentia em seu dia o terremoto de Manágua
E que sobre os escombros ainda havia
as ornamentações da quadra de Natal
Olhava aquele rosto e nesse rosto via
a gente do dinheiro que fugia em aviões fretados
e os pés gretados de homens humilhados
De pé sobre os seus pés se ainda tinham pés
ao longo de desertos descampados
Morrera nesse rosto toda uma cidade
Talvez para que as mulheres de ministros e banqueiros
se permitam exercitar melhor a caridade
A aparente paz que nesse rosto havia
como que prometia a paz da Indochina a paz na alma
Eu caminhava e como que dizia
àquele homem de guerra oculta pela calma:
se cais pela justiça alguém pela justiça
há-de erguer-se no sítio exacto onde caíste
e há-de levar mais longe o incontido lume
visível nesse teu olhar molhado e triste
Não temas nem sequer o não poder falar
porque fala por ti o teu olhar
Olhei mais uma vez aquele rosto
Era Natal
É certo que o silêncio entristecia
Mas não fazia mal, pensei, pois me bastara olhar
tal rosto para ver que alguém nascia

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