Também a poesia é filha da necessidade
Esta que me chega já um pouco fora do tempo...
Na altura de ser consagrado com o Prémio Camões, em 2001, pudemos
saudar neste jornal Eugénio de Andrade pela importância da sua obra poética
em mais de cinquenta anos de ofício e, sobretudo, pela forma singular e tão
pessoal como soube criar a sua poesia. De facto, na clara solaridade
vocabular que em todos os poemas se patenteia com fulgor, o Poeta de As Mãos e os Frutos reincidiu sempre na mesma sinceridade e brevidade expressivas que fazem da sua obra uma morada onde pairam as sombras, passos e
lugares de infância e adolescência, de peregrinação e vagabundagem por muitas
outras paragens.
Assim, na hora final da sua partida, podemos ainda dialogar com Eugénio
de Andrade na insistência da mesma concisão vocabular que nos permite
mergulhar em imagens quase comuns e estabelecer o convívio com uma das vozes
mais coerentes da poesia deste tempo português que para sempre nos deixou
no mesmo dia que foi o do nascimento de Pessoa, poeta que muito estimava e
admirava.
Em jeito de balanço e de releitura. dizemos que os livros do Poeta de Rosto Precário, sendo quase o mesmo e um outro livro, prolonga
esse discurso cristalino e sincero, breve e incisivo, de saber guiar o leitor por
certos lugares obscuros, "branco no branco", que traz
consigo os sinais ou ecos da tradição lírica portuguesa na linhagem de
Bernardim, Camões ou Sá de Miranda e dos primeiros trovadores medievais. Mas
esse discurso, sendo idêntico e diferente, revela ainda o mesmo sentido e
propósito de o Poeta nos falar da vida e do mundo, das pessoas e das coisas,
dos olhares e dos sentimentos, nesse dizer por dizer ao rés das águas límpidas ou
dos rios e lugares de diversa peregrinação, na persistente e decantada
claridade poética:
Toda a ciência está aqui,
na maneira como esta mulher
dos arredores de Cantão
os dos campos de Alpedrinha
rega quatro ou cinco leiras de couves.
Na sua repetida "arte poética",
pela brevidade e sinceridade das palavras, tantas vezes numa linguagem comum,
mas marcadas por um sentido metafórico que emotiva e oferece uma renovada
forma de abordar ou olhar o mundo, Eugénio de Andrade redescobre, num sótão
perto da casa onde morara, num Porto que durante mais de cinquenta anos
adoptou por íntima coabitação, esse sentido solar da sua própria efemeridade, no fazer rente ao dizer e na carga simbólica das palavras com que o seu "verbo"
poético se tece e enaltece:
Também a poesia é filha da necessidade
- esta que me chega um pouco já fora do tempo,
deixou de ser a sumarenta alegria
do sol sobre a boca.
Na avalanche metafórica e expressiva de um intencional rigor de
expressão, é uma poesia que arrebata e comove, destituída de sombras ou
inibições, às vezes por entre ironias e sarcasmos, mas é todavia, no dizer de
Jorge de Sena, "uma poesia
aberta com generosidade a todos os anseios de libertação, sempre concebida
num bom gosto que defendeu o poeta dos exageros do neo-realismo, do
surrealismo ou do barroquismo hispânico Talvez porque na
claridade e rigor no fio calmo dos anos, o que o Poeta de Mar de Setembro desejou foi que,
pela simplicidade formal e transfiguração da sua clareza, essa solidariedade
se confirmasse de livro a livro na cadência dos próprios versos, na inocência
quase pagã sem deuses nem excessos, no cantante enaltecer do corpo, da terra
e da vida, ou como observara Eduardo Lourenço dizer-se que "nenhum poeta como Eugénio de Andrade escreveu poesia de tal modo
convincente com as figuras que lha sugerem e o obrigam a cantá-las, como se
tudo estivesse certo no universo e só nós, no fundo, estivéssemos a
mais".
Assim, na intencional insistência dessa música vital que perpassa em
cada um dos seus poemas, saber-se que orumor do mundo se construiu ainda e
sempre de palavras, que nessa poética carregam todo o peso da memória, pelas sombras e lugares de um
inalterável peregrinar, em trajecto que foi único e singularíssimo na poesia
portuguesa do nosso tempo, e por o Poeta ter sabido desde longe estar em boas
companhias: Homero, Platão, Whitman ou Blake, Lorca, Machado, Montale ou
Pessoa.
E uma vez mais proclamar num dos poemas emblemáticos de Rente ao Dizer:
materna casa da alegria
e da mágoa;
dança do sol e do sal;
língua em que escrevo;
ou antes: falo.
Na hora de ser acompanhado até ao Prado do Repouso por largas centenas
de amigos e leitores, Eugénio de Andrade partiu, ao contrário de muitos
outros poetas, com a consciência assumida de que, se outro mérito não
tivesse, foi assim confirmado no ponto mais elevado da sua expressão porque a
sua obra imortalizará no silêncio tumular um dos nomes maiores da poesia
portuguesa do nosso tempo. Na clareza e rigor da sua poética e no exemplo de
ter cumprido a sua missão em mais de oitenta anos de vida. Entre Lisboa e
Porto, nas palavras de algumas das suas dedicatórias,e no convívio esparso de
alguns encontros portuenses, guardo a memória da sua delicadeza e do trato
amigável com toda a gente.
Na memória de Fernão Lopes e da antologia literária sobre o Porto, (Daqui
houve nome Portugal), na sombra das magnólias do Jardim de São Lázaro
ou ainda na lembrança de Domingos Peres das Eiras, aqui lhe deixo, meu caro
Eugénio de Andrade, um punhado de violetas que não hão-de murchar.
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Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação:
http://www.apagina.pt/?aba=7&cat=148&doc=11044&mid=2
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