sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

O surrealismo cerebral de René Magritte


Chamado de pintor cerebral, a arte surrealista de René Magrite tem algo de enigmático. Não por acaso, afinal é dele a assertiva segundo a qual 'a arte evoca o mistério sem o qual o mundo não existiria'. Abaixo, do sítio lusitano Obvious (http://obviousmag.org), um breve texto do belga. 


El Sedutor, de Magrite 

René Magritte (1898-1967) tinha apenas 13 anos quando a sua mãe cometeu um acto terrível. Depois de várias tentativas de suicídio, ela atirou-se de uma ponte, afogando-se no Rio Sambre. Diz-se que este acontecimento viria a marcar para o resto da vida o pintor belga, levando-o a pintar quadros como Les Amants (1928), em que dois namorados se beijam encapuçados - da mesma forma que a sua mãe tinha sido encontrada, com o vestido cobrindo-lhe a cabeça. Apesar da tragédia, a verdade é que Magritte se tornou um dos pintores mais famosos do século XX e um marco incontornável da arte surrealista.
Os primeiros quadros de Magritte datam de 1915 e eram impressionistas. No entanto, de 1916 a 1918 o belga decidiu frequentar a Academia Real de Artes em Bruxelas de forma a aperfeiçoar a sua técnica, acabando por se aborrecer com o conservadorismo da escola e por abandoná-la. Tornou-se então um desenhador de papel de parede e artista comercial em Bruxelas, cidade onde passou a viver e se casou com Georgette Berger.
Os seus primeiros trabalhos, depois de sair da Academia, foram influenciados pelo Cubismo e Futurismo. Foi, contudo, quando se aproximou de Giorgio de Chirico e da sua pintura metafísica que Magritte mergulhou no surrealismo que viria a marcar toda a sua obra. Em 1926, deixou o emprego para se dedicar inteiramente à arte, sob o mecenato da Galerie le Centaure, que lhe permitiu pintar a tempo inteiro. Le Jockey Perdu, tela terminada no mesmo ano, foi a sua primeira obra surrealista. No entanto, a má recepção da crítica fez com que Magritte se refugiasse em Paris e aí vivesse durante três anos, estabelecendo contactos com Max Ernst, Dali, André Breton e Paul Éluard.
Voltando para Bruxelas, viu-se obrigado a criar uma agência de publicidade com o irmão, de forma a ganhar dinheiro para sustentar o seu estilo de vida. Viria mais tarde a confessar o desprezo que tinha por este tipo de trabalho: "Detesto o meu passado e o de todos. Detesto a resignação, a paciência, o heroismo profissional e os sentimentos bonitos obrigatórios. Também detesto as artes decorativas, o folclore, a publicidade, as vozes dos anúncios, o aerodinamismo, os escuteiros, o cheiros das bolas de naftalina, acontecimentos do momento e pessoas embriagadas".
Durante os anos 30 aprofundou a sua técnica, pintando imagens perturbantes e desconstruídas que logram desafiar as percepções do público. Em 1928, Magritte já nos tinha deixado uma pista para a leitura da sua obra com "A traição das imagens", pintado em Cadaqués (Catalunha) na companhia de Dali. Por baixo do cachimbo, podemos ler as palavras "Ceci n'est pas une pipe", uma aparente contradição. Contudo, se reflectirmos acerca do assunto, trata-se da imagem de um cachimbo que não satisfaz a necessidade do objecto real. O mote estava lançado: não importa o quão fiel possamos representar uma imagem, é sempre impossível capturar a sua essência.
A pintura de Magritte dá novos significados aos objectos comuns, mas de uma forma diferente. Ao contrário do automatismo surreal até então praticado, o seu trabalho surge da justaposição pensada, criando uma imagética poética e exortando à hipersensibilidade do público. O resultado são objectos híbridos, como em O Retrato (1935) ou La Durée poignardée (1938). Os motivos eram muitas vezes quotidianos: árvores, janelas, portas, cadeiras, pessoas, paisagens. Magritte não procurava o obscuro e recusava o significado dos sonhos e da psicanálise. Pelo contrário, ele procurava, através da terapia de choque e da surpresa, libertar da sua obscuridade as visões convencionais da realidade.
A simplicidade enganadora das suas telas tem um conteúdo filosófico e poético, satirizando o mundo instável e perturbado do século XX. Um mundo feroz (e veloz) no qual a razão se torna indispensável para dar sentido à vida. Mas Magritte expurga essa razão através de técnicas surrealistas, jogando com a lógica do espectador: há nos seus quadros uma necessidade de reagir ao fenómeno da vida quotidiana, criando algo inesperado. Um quadro de Magritte não é para ser admirado. É para ser objecto de reflexão e ponderado - o sentido está muitas vezes escondido e é alvo de segundas, terceiras e quartas interpretações. E as questões acerca das suas criações ainda pairam no ar, já que Magritte nunca deu respostas claras acerca do seu significado. La reproduction interdite ou Golconde são alguns dos exemplos desta aura de mistério.
Sendo versátil, Magritte foi ainda responsável por reproduzir sátiras de quadros famosos, que inspiraram o sentido de humor non-sense moderno. Apaixonado pela filosofia e literatura, muitos dos seus quadros reflectem também a sua aproximação a certos autores, como Baudelaire (em La Géante), Edgar Allan Poe (Le Domainde d'Arnheim) ou Hegel (Les Vacances de Hegel).
Durante os tempestivos anos 40, o pintor belga passou ainda por dois períodos - os únicos da sua vida - em que se afastou do surrealismo. Em 1943-44, influenciado por Renoir, adoptou um estilo colorido que deixou pouco depois, dado o desinteresse da crítica. Em 1947-48, na época "vache", foi influenciado pelos fauvistas, pintando imagens provocatórias e rudes. Desencorajado mais uma vez pelas críticas ao seu trabalho, acabou também por voltar ao seu "visual thinking" ou "pintura cerebral", termos rotulados pela crítica.
Apesar dos cerca de mil trabalhos que criou até à sua morte em Agosto de 1967, René Magritte começou apenas a ser verdadeiramente apreciado nos anos 60. O interesse generalizado fez com que muitas das suas telas se tornassem parte da cultura popular durante as décadas seguintes. Ainda hoje o seu trabalho é re-interpretado por artistas modernos. O músico Rufus Wainwright é um deles e no seu vídeo Across The Universe (2002) mostra Dakota Fanning rodeada de homens de chapéu de coco e gabardine estáticos no ar, numa semelhança inegável com "Golconde".




segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Um Rosto de Natal

A todos que têm visitado este espaço, dando-me o privilégio da leitura, saúdo-vos uma vez mais, nesta quadra do ano, através da pena do Ruy Belo. 




(Ruy Belo - Todos os Poemas II. Lisboa: Assírio Alvim, 2004, págs. 176-177) .

Caiu sobre o País uma cortina de silêncio
A voz distingue o homem, mas há homens que
não querem que os demais se elevem sobre os animais
E o que aos outros falta, têm eles a mais
No dia de Natal, eu caminhava
E vi que em certo rosto havia a paz que não havia
Era na multidão o rosto da justiça
Um rosto que chegava até junto de mim de Nicarágua
Um rosto que me vinha de qualquer das indochinas
Num mundo onde o homem é um lobo para o homem
E o brilho dos olhos o embacia a água
Caminhava no dia de Natal
E entre muitos ombros, eu pensava em quanto homem morreu por um deus que nasceu
A minha oração fora a leitura do jornal
E por ele soubera que o deus que cria
consentia em seu dia o terremoto de Manágua
E que sobre os escombros ainda havia
as ornamentações da quadra de Natal
Olhava aquele rosto e nesse rosto via
a gente do dinheiro que fugia em aviões fretados
e os pés gretados de homens humilhados
De pé sobre os seus pés se ainda tinham pés
ao longo de desertos descampados
Morrera nesse rosto toda uma cidade
Talvez para que as mulheres de ministros e banqueiros
se permitam exercitar melhor a caridade
A aparente paz que nesse rosto havia
como que prometia a paz da Indochina a paz na alma
Eu caminhava e como que dizia
àquele homem de guerra oculta pela calma:
se cais pela justiça alguém pela justiça
há-de erguer-se no sítio exacto onde caíste
e há-de levar mais longe o incontido lume
visível nesse teu olhar molhado e triste
Não temas nem sequer o não poder falar
porque fala por ti o teu olhar
Olhei mais uma vez aquele rosto
Era Natal
É certo que o silêncio entristecia
Mas não fazia mal, pensei, pois me bastara olhar
tal rosto para ver que alguém nascia

domingo, 23 de dezembro de 2012

Dossiê Moscou: Petites histoires ou histórias da História

Pernambuco tem sido espaço de uma safra de bons jornalistas. Neste time, estão, por exemplo, Vandeck Santiago e Geneton de Moraes Neto. Com uma projeção nacional, Geneton tem levado a cabo um estilo de jornalismo que mergulha na história.  Petites histoires da grande História. É assim que se pode, a meu ver, designar o seu Dossiê Moscou (publicado pela Gerção Editorial), resultado da cobertura que fez da primeira eleição na ex-União Soviética. Ficamos a saber, dentre outras coisas, que Boris Yeltsin - figura sem conteúdo intelectual - decidiu numa sauna, sem roupa, tocar avante a derrocada da União Soviética. De resto, há, no livro, significativas entrevistas, feitas por Genton, com personalidades do quilate do recém falecido Eric Hoobsbawm. Sem mais palavras, vale a leitura da obra - enquanto isso, reproduzo uma resenha sua abaixo. 


 
Fonte: http://www.geracaobooks.com.br/releases/?id=31

Quando terminou seu grande livro jornalístico sobre o fim da maior das utopias, a socialista, o jornalista Geneton Moraes Neto pensou em lhe dar o título de Bye,Bye, Brejnev. Ao fazer a revisão das provas, veio-lhe à mente um título menos empolgante, mas bem mais preciso: Dossiê Moscou, a cobertura, sim, da primeira eleição para a presidência da Rússia após sete décadas de comando comunista, mas também, e principalmente, a história, contada em lances emocionantes, do espetacular colapso da gigante União Soviética, com intervalos brilhantes para reflexões sobre ideologias, utopias, modelos políticos e econômicos.
(...)
Com brilhante carreira no jornalismo eletrônico e impresso, já percorreu os corredores da morte em prisões de segurança máxima americanas, esteve nas ruínas de campos de concentração na Alemanha, entrevistou astronautas que pisaram na lua, sobreviventes do Titanic, o co-piloto do avião que jogou a bomba atômica sobre Hiroshima e o assassino de Martin Luther King. Dossiê Moscou é o oitavo livro-reportagem de Geneton, que já escreveu, entre outras coisas, sobre o pacto maldito entre Hitler e Stalin, sobre o poeta Drummond e sobre a tragédia da Copa de 50.
Retrato da humanidade
Uma outra maneira de definir Dossiê Moscou é que em suas páginas estão escritas as grandes petite histoires, e não vai contradição nenhuma nisso. São as histórias que fazem a História. Um retrato da humanidade por meio dos personagens que a compõem. Assim, o autor combina a reportagem dos grandes fatos de repercussão mundial com as grandes histórias de pessoas que na maior parte das vezes escapam das lentes de tevê e das páginas de jornal.
Como o flagrante ao ex-professor de Ciências Sociais do Partido Comunista, caminhando cabisbaixo em um inusitado cemitério de estátuas, onde se encontram destroços dos grandes monumentos a líderes comunistas como Lenin, Brejnev e Andropov, e maldizendo a marcha da História. Ou o momento único em que Gorbatchev, o líder que promoveu as aberturas política e econômica na URSS, admirado em todo mundo, Prêmio Nobel da Paz, depositou seu voto na urna e despontou para o esquecimento no seu próprio país, onde era impopular.
A História se faz com fatos como o acontecimento marcante que mudou a geopolítica internacional. Foi em 1989, e se passou com aquele que seria o presidente que comandaria uma guinada da Rússia em direção ao capitalismo. Boris Yeltsin, conhecido pela sua falta de brilho intelectual e pelas constantes mudanças de opinião, estava nu em uma sauna quando outros homens, igualmente nus, o estimularam a manter firme a rebelião contra o Partido Comunista. Yeltsin confessaria para seu biógrafo que aquele fato havia mudado sua visão de mundo. Naquela hora descobrira que era comunista “por inércia, mas não por convicção”.
Entrevistas exclusivas
Junto com as histórias e a História, o livro traz também um caráter reflexivo. Por meio de entrevistas como as com Eric Hobsbawm, um dos maiores historiadores do século 20, e com o filósofo marxista Leandro Konder, Dossiê Moscou busca responder perguntas como: O socialismo ainda vive? Há ainda espaço para as utopias? O que legou para o mundo o comunismo, a “religião sem Deus”, segundo o escritor Ariano Suassuna, “um insulto à nossa inteligência”, segundo o economista John Maynard Keynes?
Rico em entrevistas, Geneton Moraes Neto colheu também um dos últimos pronunciamentos de Pavel Sudoplatov, único agente da KGB sobrevivente da era Stalin, o homem que deu a ordem para que se matasse Trotski no México. Falou também com a astronauta Svetlana Savitskaya, a primeira mulher a flutuar no espaço, que com sua frieza serviria bem como fonte de inspiração para a Ninotchka do filme de Ernst Lubitsch. “Se você quer saber sobre emoções, deve entrevistar outra pessoa”, foi avisando logo de cara, o que não a impediu de dar um dos relatos mais emocionantes do livro, uma rara perspectiva da guerra vista do alto: “Quando estão no espaço os cosmonautas vêem a Terra como a casa onde moram. Voltar para casa significa voltar para o planeta Terra, e não para a América ou a União Soviética.”
Completam o quadro de entrevistas Oleg Kalugin, ex-general da KGB, espião que falou sobre os bastidores da guerra fria e a falsificação de documentos britânicos, franceses e americanos para mostrar o “caráter sinistro” do imperialismo, o fanfarrão candidato Vladimir Zhirinovsky, cujo depoimento da própria esposa, Galina, é de que para ele a política é mais importante que o sexo, o marqueteiro de Yeltsin, Mikhail Margelov, ex-agente da KGB que agora se dedica a fazer a denúncia do passado comunista do país, Serguei Kruschev, filho do líder Nikita, que numa assembléia da ONU em 1960 tirava um dos sapatos e batia sobre a mesa para expressar discordância aos discursos que ouvia, Oleg Ignatiev, velho jornalista do Pravda que um dia diante da necessidade inventou um provérbio egípcio, e Gennady Zyuganov, o candidato comunista que quase tirou a reeleição de Yeltsin e fez acender o alerta vermelho no Ocidente. Mesmo que para isso tenha que ter deixado de lado seu materialismo dialético e usar o Apocalipse bíblico para mostrar que o demônio enviaria duas bestas do inferno, a primeira com uma marca na cabeça, a segunda com uma marca na mão, referindo-se a Gorbatchev e sua famosa pinta na testa e a Yeltsin, que havia perdido dois dedos da mão na explosão de uma granada.
Com isso, este livro-reportagem traz à tona as peças que compõem a realidade. Mostra que a reportagem não é só o fato, mas os vários ângulos do fato, combinando a grande angular com o plano de detalhe. Prova que a reportagem em primeira pessoa, com emoção e paixão, pode combinar com objetividade. A Dossiê Moscou pode-se aplicar uma das definições do jornalismo: “o primeiro rascunho da História”. Mas um rascunho completo, elaborado, apresentado com um texto instigante e envolvente que convida o leitor a aproximar-se dos fatos que marcaram o século.
Dessa maneira, Dossiê Moscou vai decifrando uma Rússia que, nas palavras de Winston Churchill, era “um mistério, envolto por um enigma, embrulhado num segredo”. O livro estrutura-se como um longo dia de reportagem para dentro da noite. Começa na manhã das eleições, relatando o “dia que demorou cem anos para acontecer”, na épica descrição da imprensa russa, e vai relembrando o passado até aquele ponto final da saga soviética: a revolução de 17 onde menos se esperava, a agrária Rússia, a morte do líder Lenin em 24, o longo governo de Stalin, as denúncias de seu sucessor, Kruschev, em 56, que tiraram Stalin da condição de “guia genial dos povos” para a de um dos maiores criminosos da humanidade, Brejnev, Andropov, Tchernenko e, finalmente, Gorbatchev, que promoveu a glasnost e a perestroik mas foi responsabilizado pelo colapso do país. Assim, perdeu as eleições para Yelstsin, ex-comunista convertido à economia de mercado. No segundo mandato, Yeltsin, doente, deixou o cargo para o atual presidente, Vladimir Putin. À noite, só na redação, o jornalista e autor reflete sobre 






sábado, 22 de dezembro de 2012

A cor do tempo quando passa


Pois então, o passar dos dias, o contar dos anos: a cor do tempo quando passa... 

Cavalaria Vermelha, de Malevich



Paisagens de passagem: a existência na cor do tempo quando passa


Por Ivonaldo Leite


Na cor do tempo quando passa, um registro: o do ser humano que convive com a sua morte, que age no seu sofrimento, o ser humano que é desejo, que perdeu o seu objetivo e que é linguagem através da qual se articula silenciosamente. Daí que Neruda bem tenha se deixado dizer pelo internalizado do vivido: “As minhas memórias ou lembranças são intermitentes e, por momentos, me escapam porque a vida é exatamente assim. A intermitência do sonho nos permite suportar os dias de trabalho. Muitas de minhas lembranças se toldaram ao evocá-las, viraram pó como um cristal irremediavelmente ferido. Talvez não vivi em mim mesmo, talvez vivi a vida dos outros. Minha vida é uma vida feita de todas as vidas: as vidas do poeta”.

Não é sem razão, portanto, a possibilidade de a aguda existência tornar-se familiar dos mais profundos abismos da vida espiritual. De a intensa consciência de si ser tomada fulminantemente por vislumbres vertiginosos e, à dada altura, inevitáveis do último e definitivo estágio da condição humana. O perecer. Hemorragia de todos os sentidos. O nada. Oh, sim, é o sorriso cru e irônico do destino: “não me escapas”.

Compreensível então o que nos dá a conhecer o Camilo Castelo Branco, emCousas Leves e Pesadas. Em solo luso, na cidade do Porto, a oitocentista ponte pênsil,logo a jusante da atual Ponte D. Luís I, foi consagrada pelo salto de um jovem advogado e poeta, inebrio com a vida e com as coisas do mundo. Não sem antes, em estilo tardio-romântico e contemplativo, declarar “isto será a sua inauguração”. A perseguição absoluta da idéia de liberdade. Ao quebrar o espelho da razão com o seu grito solitário, Nietzsche atirou estilhaços para todos os lados.

Diante disto, bem como perante as palpitações da idéia absoluta de liberdade, temperadas pela convicção existencialista de que a existência precede a essência, um certo brado conservador – no mais das vezes tingido pelo fervor religioso -  recorre à moralidade e refugia-se em Kant: “o céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim”. Se até certo ponto a máxima da ética kantiana faz sentido, por outro lado, não há como negar que a definição de um procedimento moral não constitui ciência.

Vamos a ver como são as coisas. A vida tem momentos de exaltação, de desânimo, de cólera, de enternecimento e de melancolia. Na companhia de António Patrício, podemos dizer que o valor fundamental não é obedecer à regra; o valor fundamental, numa sociedade laicizada e liberta de toda a metafísica finalista, é a própria vida como irrupção desordenada e rebelde, criadora do seu próprio sentido. A vida que, finalmente, se vive apenas uma vez em face da morte como uma onda que encrespou, arqueou num grande esforço, foi um côncavo glauco cheio de asas e explodiu a rir toda espumante. Sim, sim, a decisão de viver é algo mais do que o simples apego físico à carcaça. Para lá disso, há que se prescrutar os mais íntimos e particulares sinais dos tempos que são dados a viver.

 A ser assim, pode acontecer de se cair de tristeza e melancolia, mas também comover-se até às últimas lágrimas de alegria e gratidão, tal qual sucedeu a Nietzsche, quando ele foi tomado pela ideia de eterno retorno, no caminho de Engadine. O choro de Jung ao lado de Sabina Spielrein. Paisagens de passagem: a cor do tempo quando passa. O galope da existência, enfim, guarda qualquer semelhança com o quadro A Cavalaria Vermelha, de Malevich. Cenário enigmático. Uma luz misteriosa, que mostra e oculta. O passo numa direção infinita.

                                                                              

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Zizek: sobre o sujeito interpassivo

Slavoj Zizek, creio eu, é um pensador social que, nesta condição, supera as fronteiras disciplinares (muito embora, nalgumas paragens, há quem o defina apenas como 'um professor de filosofia', pode?!). E, ao ler textos seus, como o que a seguir reproduzo, só reforço essa minha convicção. O sujeito interpassivo ou o outro lado de uma determinada interatividade. A conferir o texto. 


Slavoj Zizek
É lugar-comum enfatizar como, com os novos meios eletrônicos, o consumo passivo de um texto ou obra de arte está ultrapassado: não mais apenas contemplo a tela, interajo com ela cada vez mais, entrando numa relação dialógica com ela (escolhendo os programas, participando de debates numa comunidade virtual, ou mesmo determinando diretamente o desfecho da trama nas chamadas "narrativas interativas").
(...) O outro lado dessa interatividade é a interpassividade. A contraparte da interação com o objeto (em vez do acompanhamento passivo do espetáculo) é a situação em que o próprio objeto tira de mim minha passividade, priva-me dela, de tal modo que é o objeto que aprecia o espetáculo em vez de mim, poupando-me da obrigação de me divertir. (...) Parece que, hoje, até a pornografia funciona cada vez mais de um modo interpassivo: filmes pornográficos não são mais fundamentalmente o meio para excitar o usuário para sua atividade masturbatória solitária - contemplar a tela em que a "ação ocorre" é suficiente, basta-me observar como os outros gozam em meu lugar. (...)
A interpassividade é o oposto da noção de Hegel de List der Vernunft (astúcia da Razão), em que sou ativo através do Outro: posso permanecer passivo, sentado confortavelmente em segundo plano, enquanto o Outro age por mim. Em vez de bater no metal com um martelo, a máquina pode fazer isso por mim; em vez de girar eu mesmo a roda do moinho, a água pode fazer isso: atinjo meu objetivo interpondo entre mim e o objeto sobre o qual trabalho um outro objeto natural. O mesmo pode acontecer no nível interpessoal: em vez de atacar diretamente o meu inimigo, instigo uma luta entre ele e outra pessoa, de modo a poder observar confortavelmente os dois se destruindo.
No caso da interpassividade, ao contrário, sou passivo através do Outro. Concedo ao Outro o aspecto passivo (gozar) de minha experiência, enquanto posso continuar ativamente empenhado (...posso tomar providências financeiras relativas à fortuna do falecido enquanto as carpideiras pranteiam por mim). Isso nos leva à noção de falsa atividade : as pessoas não agem somente para mudar alguma coisa, elas podem também agir para impedir que alguma coisa aconteça, de modo que nada venha a mudar.
(...) Mesmo em grande parte da política progressista de hoje, o perigo não é a passividade, mas a pseudoatividade, a ânsia de ser ativo e participar. As pessoas intervêm o tempo todo, tentando "fazer alguma coisa", acadêmicos participam de debates sem sentido; a coisa realmente difícil é dar um passo atrás e retirar-se daquilo. Os que estão no poder muitas vezes preferem até uma participação crítica em vez do silêncio - só para nos envolver num diálogo, para se assegurar de que nossa passividade ameaçadora seja rompida. Contra esse modo interpassivo, em que somos ativos o tempo todo para assegurar que nada mudará realmente, o primeiro passo verdadeiramente decisivo é retirar-se para a passividade e recusar-se a participar. Esse primeiro passo limpa o terreno para uma atividade verdadeira, para um ato que mudará efetivamente as coordenadas da cena.
(...)Quando eu acredito através de outrem, ou tenho minhas crenças externalizadas no ritual que sigo mecanicamente, quando rio por meio de risada enlatada, ou faço o trabalho de luto através de carpideiras, estou realizando uma tarefa que diz respeito a meus sentimentos e crenças íntimos sem realmente mobilizar esses estados íntimos. (...) Ainda sim, seria errado qualificar meu ato de hipócrita, já que de outra maneira eu sinto isso: (...) eu rio "sinceramente" através da risada enlatada (a prova é o fato de que me sinto efetivamente aliviado).
O que isso significa é que as emoções que enceno através da máscara (a falsa persona) que adoto podem, de uma forma estranha, ser mais autênticas e verdadeiras do que admito sentir em meu foro íntimo. Quando construo uma falsa imagem de mim que me representa numa comunidade virtual de que participo (em jogos sexuais, por exemplo, um homem tímido muitas vezes adota na tela a persona de uma mulher promíscua e atraente), as emoções que sinto e finjo como parte de meu personagem não são simplesmente falsas: embora (o que considero como) meu verdadeiro eu não as sinta, elas são contudo verdadeiras em certo sentido. Suponhamos que, no fundo, eu seja um pervertidosádico que sonha em surrar outros homens e estuprar mulheres; como em minha interação com outras pessoas na vida real não me é permitido expressar esse verdadeiro eu, adoto uma persona mais humilde e polida. Neste caso, não se segue que meu verdadeiro eu está muito mais próximo do que adoto como um personagem fictício na tela e o eu de minhas interações na vida real é uma máscara? Paradoxalmente, é o próprio fato de eu estar ciente de que, no ciberespaço, eu me movo dentro de uma ficção que me permite expresar ali o meu verdadeiro eu - é isso, entre outras coisas, que Lacan tem em mente quando afirma que a "verdade tem a estrutura de ficção".
(...) O hiato entre minha identida psicológica direta e minha identidade simbólica ( a máscara ou título simbólico que uso, definindo o que sou para e dentro do grande Outro) é o que Lacan chama de "castração simbólica", (...) a castração que ocorre pelo próprio fato de eu ser apanhado na ordem simbólica, assumindo uma máscara ou título simbólico. A castração é o hiato entre o que sou imediatamente e o título simbólico que me confere certo status e autoridade. (...) a identidade simbólica conferida a nós é o resultado do modo como a ideologia dominante nos "interpela" - como ciddãos, democratas, cristãos. A histeria emerge quando um sujeito começa a questionar ou sentir desconforto em sua identidade simbólica: "Você me diz que sou amado - o que há em mim que me torna seu amado? O que vê em mim que o leva a me desejar desse modo?".
A realidade virtual simplesmente generaliza esse procedimentode oferecer um produto despojado de sua substância: fornece a própria realidade despojada de sua substância, do núcleo duro resistente do real - do mesmo modo como um café descafeinado tem cheiro e gosto de café real sem ser a coisa verdadeira, a realidade virtual é experimentada como realidade sem o ser. Tudo é permitido, você pode desfrutar tudo - com a condição de que tudo seja privado da substância que o torna perigoso.
(...) "Precisamente quando pareço expresar meu desejo mais íntimo e autêntico, o que eu quero já me foi imposto pela ordem patriarcal que me diz o que desejar, de modo que a primeira condição de minha libertação é que eu rompa o cículo vicioso de meu desejo alienado e aprenda a formular meu desejo de maneira autônoma".
(...) Aceitar plenamente essa incoerência de nosso desejo, aceitar plenamente que é o desejo que sabota, ele mesmo, sua própria libertação é a lição amarga de Lacan (...) não há garantia para nosso desejo no grande Outro.
(In: Como ler Lacan. Slavoj Zizek. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. p.33-52).


terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Entre a Tragédia e a Comédia


Paul Craig é um antigo Secretário de Estado do Tesouro norte-americano, e surpreendentemente (ou talvez não) produziu o artigo abaixo, publicado no Wall Street Journal, e traduzido pelo sítio alternativo português Resistir Info (http://resistir.info/). Vale a pena a leitura. De fato, o Ocidente anda entre a tragédia e a comédia. A tradução do Resistir Info é muito boa, mas, quem desejar, pode ler a publicação na língua original, aqui: http://www.globalresearch.ca/the-declining-west-tragedy-or-comedy). 


O declínio do ocidente: Tragédia ou comédia?

Por Paul Craig Roberts
Durante a Guerra do Vietname a Suécia era um país independente com consciência moral e abrigou cidadãos estado-unidenses que protestavam contra a guerra e que recusaram a conscrição. Washington percebeu o custo disto e comprou o governo sueco a fim de impedir um ressurgimento de consciência moral da parte de qualquer governo ocidental. 

No pós II Guerra Mundial e durante as décadas seguintes da Guerra Fria com a União Soviética, os países ocidentais apresentavam-se como a consciência moral do mundo. Descobrimos que isto em grande medida foi uma farsa. Os "países ocidentais" são meros peões cúmplices dos crimes de Washington quando o governo dos EUA tenta bloquear toda informação na sua busca de hegemonia mundial. 

Mark Weisbrot, a escrever na Aljazeera, tem o que dizer acerca da utilização por Washington do seu governo fantoche na Suécia a fim de perseguir Julian Assange pela publicação de documentos que revelam a má fé de Washington e a fraude a outros países: 


"Há uma abundância de provas de que os EUA estão muito interessados em punir Assange, e elas continuam a crescer: em 18 de Agosto, oSydney Morning Herald informou que o serviço de estrangeiros da Austrália estava consciente de que as autoridades dos EUA estiveram a perseguir Assange durante pelo menos 18 meses. E em 24 de Agosto Craig Murray, antigo embaixador do Reino Unido com 20 anos de carreiradiplomática, informou que os seus colegas do Foreign Office britânico sabiam melhor porque fazer a ameaça sem precedentes de invadir a embaixada do Equador, mas que fizeram-no sob pressão de Washington. 

"Tal como muitos países europeus, incluindo naturalmente o Reino Unido, a política externa sueca está estreitamente alinhada com a do governo estado-unidense. Esta não foi a primeira vez em que a Suécia colaborou com seus aliados de Washington para violar direitos humanos e o direito internacional. Em 2001, o governo sueco entregou dois egípcios à CIA de modo a que pudessem ser enviados ao Egipto, onde foram torturados. 

"A acção sueca provocou a condenação da ONU e o governo foi forçado a pagar indemnizações às vítimas; ambas posteriormente isentadas de qualquer suspeita de transgressão. Inquéritos mostram que os suecos consideraram tal crime como o pior escândalo político no seu país em 20 anos. 

"A Suécia é uma social-democracia altamente desenvolvida que tem muitas garantias de direitos civis e liberdades para os seus cidadãos. O povo da Suécia não deveria permitir que o seu governo continue a desacreditar-se em outro crime governamental internacional – este um ataque funesto à liberdade de expressão – simplesmente porque Washington assim o quer".

Todos os países ocidentais cumprem as ordens de Washington e são cúmplices nos seus crimes. Washington ou Israel – no essencial, a mesma coisa – fez com que o governo fantoche do Canadá acabasse as relações diplomáticas do país com o Irão sem nenhuma razão que se veja. O ministro canadiano dos Negócios Estrangeiros, John Baird, numa inabitual mostra de ignorância, mesmo para ele, condenou o Irão como uma "ameaça à segurança global". Nenhuma pessoa inteligente poderia acreditar que o Irão constitui uma ameaça à segurança global. 

Olhe-se para John Baird. Ele parece mesmo um idiota mentecapto. No que é que se tornaram os canadianos, que foram outrora um povo inteligente e tolerante, para colocaram loucos no ministério? Baird, depois de ser informado pela sua equipe que ao Irão faltava força para ser uma ameaça à segurança global, mudou a sua justificação e insistiu em que rompeu relações diplomáticas devido à hostilidade do país para com Israel. Isto trouxe para o imbecil ministro dos Negócios Estrangeiros do Canadá gargalhadas ainda mais altas. É Israel que tem estado a ameaçar o Irão com ataque militar e a exigir que os EUA se lhe juntem, não o Irão a ameaçar Israel com ataque. 

Os países ocidentais tornaram-se uma caricatura de hipocrisia. Se os países ocidentais não estivessem armados com ogivas nucleares, a maior parte do mundo cairia na gargalhada. 



sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Sobre o excesso de seminários nas disciplinas dos cursos de graduação

O texto abaixo é da lavra de Pierre Lucena, Prof. da UFPE e responsável pelo blog 'Acerto de Contas' (http://acertodecontas.blog.br), onde o mesmo foi publicado. O texto é provocativo, mas necessário ao debate sobre o assunto. Diz respeito ao excesso de seminários nas disciplinas dos cursos de graduação. 


Por Pierre Lucena 
Fui estudante de graduação entre os anos de 1990 e 1994, e um dia desses estava me lembrando dos seminários que tive que apresentar em sala de aula. Lembro-me com detalhes, pois isso aconteceu em apenas duas ocasiões.
Semestre passado perguntei a um formando do mesmo curso, qual teria sido a quantidade de seminários, e este me confidenciou que não sabia ao certo. Encontrou-me posteriormente, e disse que foi contar, e que teria apresentado por volta de 40 seminários. Em algumas disciplinas chegou a apresentar 3 trabalhos, em um mesmo semestre.
É preciso pensar com cuidado o que isso significa. E principalmente em que momento esta virada aconteceu com tanta força.
É inegável que um bom trabalho de pesquisa com apresentação pode agregar muito valor ao aluno, tanto em relação ao aprendizado quanto ao desenvolvimento pessoal, já que no cotidiano profissional será necessário fazer apresentações em público.
Mas quando observamos que em grande parte das disciplinas os conteúdos são ministrados por estudantes, alguma coisa está errada.
Em algumas disciplinas é normal a apresentação e orientação de trabalhos, como por exemplo, as disciplinas de Metodologia, ou mesmo de pesquisa. Em outros casos são seminários para conclusão, com poucas horas-aula, justificando pela motivação que pode gerar nos alunos, além do conteúdo que pode ser trabalhado.
Mas o que dizer quando são disciplinas teóricas, do tronco principal da grade de ensino, com mais da metade da carga horária sendo de seminários? Ou ainda quando o próprio livro-texto é dividido entre os alunos para que estes apresentem o conteúdo?
Um aluno de direito me relatou o caso de um professor de Processo Civil que chegou no primeiro dia de aula com o código, dividiu o mesmo em capítulos, e avisou aos alunos que a partir da próxima aula seriam chamados em ordem alfabética para apresentarem o texto durante as duas horas.
Uma parte dos professores acredita que o aluno pode ter um bom desempenho na apresentação de seminários, mas para outra parte, o seminário “comendo” parte significativa das horas-aula de uma disciplina é apenas um pretexto para esconder sua incompetência em desenvolver 60 horas-aula de estudo por completo.
A verdade é que uma parte dos professores se esconde terceirizando suas aulas aos alunos, até porque não têm leitura e didática suficientes para enfrentar 60/70 alunos durante o semestre inteiro.
Outros acabam repassando a forma de ensinar nos programas de pós-graduação, onde a dinâmica é totalmente diferente, e pouco se importam se os estudantes estão ou não aprendendo o conteúdo obrigatório.
Nos cursos de administração e direito a situação é mais dramática, pois no país houve grande expansão do número de faculdades e alunos, sem que a formação de professores acompanhasse este ritmo.
Por exemplo, há 15 anos eram 5 mil professores de administração no Brasil. Hoje existem por volta de 30 mil profissionais. É simplesmente impossível multiplicar por 6 o número de bons profissionais em tão pouco tempo. O resultado está aí.
Como as Federais possuem pacotes mais atrativos (salário e estabilidade), é natural que consigam os melhores professores, mas o que dizer no caso das demais?
E se para o aluno que perguntei, os 40 seminários apresentados por ele foram em uma Universidade Federal, o que dizer do restante das instituições?
Como sou um professor “antiquado”, utilizo minhas 60 horas da melhor forma possível, dando todas as aulas e aplicando as provas, pois ainda não consegui encontrar um método mais adequado de avaliação. Mesmo reconhecendo que o mundo está mudando rapidamente, e que será preciso uma nova metodologia, ainda não mudei minha forma de ensinar.
Talvez o errado seja eu.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Rumos da universidade

O sociólogo Simon Schwartzman costuma despertar polêmica com algumas das suas posições. Contudo, não se pode desconhecer a sua vasta obra, construída com uma consistente sustentação empírica. Abaixo, extratos de uma entrevista por ele concedida ao Portal da Unicamp (http://www.unicamp.br/unicamp/noticias/) a propósito das perspectiva do ensino superior. Apontamentos para um debate plural sobre a universidade brasileira. 


 

Como o senhor vê a questão da ampliação do acesso ao ensino superior no Brasil?
Nós últimos anos, tem ocorrido um aumento no número de matrículas no ensino superior. Gradativamente, a população tem ficado mais educada, mas temos duas barreiras que continuam limitando o crescimento do sistema. A dimensão do ensino médio ainda está longe do ideal, bem como a sua qualidade, que em boa parte é precária. A quantidade de pessoas capacitadas para entrar no ensino superior é pequena. Além disso, o Brasil não criou um sistema diferenciado de educação pós-secundária, como fez o Chile, que tem segmentos de ensino profissional e técnico, o que dá mais possibilidade de atendimento e de formação da população. Aqui, ou você faz a universidade convencional ou não tem alternativa.

Muito se tem falado sobre a necessidade de as universidades se internacionalizarem. Esse é um jogo para todos? Se não, como identificar as instituições vocacionadas para se tornarem escolas de classe mundial?
Alguns países, como Alemanha, fazem avaliação interna e decidem concentrar recursos nas instituições que possam jogar esse jogo. Evidentemente, não é para todo mundo. É uma posição que cada instituição pode até pretender, mas cabe o governo, federal ou estadual, identificar aquelas que têm condições para se transformar em instituição de classe mundial. É para estas que são concedidos os instrumentos legais e financeiros para que possam subir de patamar.

E que papel deve caber àquelas universidades que não disputarão esse jogo internacional?
O exemplo americano é bom. Os Estados Unidos têm 3 mil universidades, mas somente 300 fazem pesquisas. As outras são de formação. O país tem escolas de quatro anos, de dois anos e as que formam professores, para ficar em três exemplos. Nesse sistema de ensino superior, a grande maioria das pessoas vai adquirir uma formação profissional ou uma formação mais geral para a sua vida. Ou seja, grande parte das instituições não é de pesquisa e nem atua em nível mundial. As instituições têm que ter qualidade naquilo que elas se propõem a fazer. É possível, por exemplo, ter uma pequena universidade que atende alunos com baixa formação, mas que consegue fazer com que eles ampliem o conhecimento e se qualifiquem melhor. Ela não precisa fazer pesquisa e nem competir internacionalmente para realizar um trabalho que traga benefícios para a sociedade. Nem todo mundo precisa estar na ponta.

O que o senhor pensa sobre o programa Ciência sem Fronteiras?
A ideia é boa, mas tudo indica que as ações foram precipitadas A ênfase dada foi para cursos muito curtos de graduação. Para o aluno, é muito bom ir para o exterior por oito meses ou um ano. Do ponto de vista do aproveitamento acadêmico, porém, talvez não seja tão bom assim. Esse estudante vai levar pelo menos seis meses para poder entender onde ele está. Quando começar a aproveitar a experiência, já estará na hora de retornar. A ênfase que deveria ter sido dada é na formação de alto nível, sobretudo doutorado, que é a formação completa.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Good bye, Dave Brubeck

Partiu Dave Brubeck. Foi com 'take five' que, em tempos outros e por outras paragens, comecei  a apreciar jazz. De certo modo, o seu jazz faz-me lembrar o encantamento do arco-íris. Good bye, Dave Brubeck. Abaixo, reportagem do jornal português O Público a seu respeito (http://www.publico.pt/cultura/noticia/dave-brubeck-o-pianista-que-fez-o-jazz-sorrir-1576279)

Foto: Você sabia?

Essa é do arco-da-velha!

 Arco-da-velha é como é chamado o arco-íris em Portugal, e existem muitas lendas sobre suas propriedades mágicas. Uma delas é beber a água de um lugar e devolvê-la em outro – tanto que há quem defenda que “arco-da-velha” venha de arco da bere (”de beber”, em italiano).
 Arco-da-velha hoje implica em coisas inacreditáveis, absurdas.




Amado por muitos e considerado sobreavaliado por outros, Dave Brubeck foi sem dúvida um dos mais famosos músicos de jazz de sempre. Inserido no seu álbum Time Out, de 1951, o tema Take five atravessou gerações de ouvintes, tornando-se um dos grandes clássicos do género e o single de jazz mais vendido de todos os tempos.
A melodia simples e saltitante do tema, composta e tocada pelo tom de veludo do saxofone de Paul Desmond, veio trazer uma nova alegria ao jazz de então, projectando Dave Brubeck e o seu grupo para o estrelato mundial. Ainda hoje o tema é facilmente reconhecido pelas mais diversas pessoas nos quatro cantos do mundo, tendo-se tornado um símbolo de um jazz alegre e descomplexado, profundamente "swingante".
Nascido em 1920, na Califórnia, Brubeck começou a aprender piano aos quatro anos. Alegando dificuldades de visão, evitava aprender a ler partituras, tendo desenvolvido a sua música de forma algo autodidacta. Ainda jovem, tocava nos bailes com uma banda local e planeava ser veterinário. No entanto, ao entrar na universidade, passou a tocar em clubes nocturnos para pagar os estudos e depressa percebeu que era isso que queria seguir como carreira. 
Recrutado para a Segunda Guerra Mundial, Brubeck serviu sob o comando do célebre general Patton e tocou frequentemente para as tropas em eventos da Cruz Vermelha. Quando solicitado a formar uma banda entre os seus colegas militares, criou um grupo a que deu o nome The Wolfpack, um ensemblemulti-racial, numa altura em que o Exército norte-americano era ainda fortemente marcado pela segregação. Forte opositor à discriminação, o músico viria mais tarde a actuar regularmente no Sul dos Estados Unidos, muitas vezes em clubes exclusivamente para negros.
Ao sair da tropa, já na faculdade, Brubeck quase foi expulso ao descobrirem que não sabia ler partituras, sendo, no entanto, defendido pelo seu enorme talento em contraponto e harmonia. Um talento realmente invulgar que fez das gravações de Take five, Blue rondo à la turk e muitos outros temas do seu repertório canções facilmente memorizáveis e de grande impacto melódico. 

Como pianista, aplicou ao jazz os ensinamentos clássicos do seu mais influente professor, o mestre francês Darius Milhaud, criando a variação mais notável do que se viria a chamar west coast jazz. Ao longo da sua carreira tocou com muitos dos grandes, como Duke Ellington, Ella Fitzgerald, Carmen McRae ou Gerry Mulligan, e o fenomenal sucesso do Dave Brubeck Quartet, o grupo que formou com Paul Desmond, Eugene Wright e Joe Morello, permitiu-lhe vender milhões de álbuns e tocar a sua música nos mais prestigiados palcos de todo o mundo. 

Brubeck compôs mais de 250 temas e escreveu música para ballet, orquestras ou cerimónias religiosas. Da sua longa discografia, destacam-se Time Out, mas também Brubeck Time, Time Further Out, Jazz at Storyville e The Dave Brubeck Quartet at Carnegie Hall.

Considerado uma lenda viva pela Biblioteca do Congresso americano, Dave Brubeck foi o primeiro músico de jazz branco a aparecer na capa da revista Time, em 1954 (Louis Armstrong já o havia feito em 49) e um dos poucos a actuar para quatro Presidentes americanos.