Woody
Allen, Paris e o dilema da coragem
Enio Squeff
No filme "Meia Noite em Paris", (...) o
cineasta Woody Allen põe na boca do ator que interpreta o escritor
norte-americano Ernest Hemingway uma série de considerações sobre a coragem
que, no fundo, pode ser estendido não apenas aos artistas, mas ao comum dos
mortais.
Hemingway (Prêmio Nobel de 1954), pessoalmente, nunca admitiu que exagerava. Ao
contrário do argentino Jorge Luis Borges que passou maior parte da vida entre
livros, a inventar - e a inventariar - valentias e histórias fantásticas,
Hemingway foi um realista que, não raro, imitou a si mesmo em sua ficção. Era,
como Borges, um leitor compulsivo e um estilista severo com seus textos
(escoimava-os impiedosamente) - mas, ao relatar combates e guerras, sabia do
que falava. Foi soldado condecorado, por valentia, na Primeira Guerra,
correspondente na Guerra Civil Espanhola, acompanhou, como jornalista, a
Segunda Guerra Mundial e quando se viu tolhido pela velhice precoce com seus
achaques inescapáveis - tinha apenas 62 anos - não hesitou em meter uma bala na
cabeça. Era dado a depressões mas, enquanto Borges se calou diante do
assassínio de mais de 30 mil argentinos pela ditadura militar, Hemingway,
denunciou publicamente o senador proto-fascista Joseph McCarthy que, na década
de 50, fazia campanha contra os intelectuais de esquerda de seu país, com o
apoio da grande mídia. Hemingway fez o que seria, inclusive, inconcebível para
o argentino, sempre enfronhado em lutas inventadas de heróis paradoxais:
desafiou o senador para um duelo.
Não houve confronto algum. À parte seu oportunismo populista, o senador era um
covarde de "pés de barro". Quando Lillian Hellman, escritora de
esquerda, invocou a Constituição americana para se posicionar como bem
entendesse, livremente - a própria imprensa conservadora viu-se, de repente,
sem argumentos para apoiar McCarthy. Que morreu obscuramente, no esquecimento
merecido de seus compatriotas.
No belo filme de Woody Allen a idéia da coragem é apenas uma dentre as muitas
que o diretor suscita - mas uma das mais instigantes, é mesmo a questão da
valentia. O próprio diretor não regateia suas posições na contramão da
"Era Bush", com alusões diretas ao tempo do ex-presidente americano.
No entanto, parece repor o ponto de interrogação a que somos levados nos
limites da coragem. Ou da covardia.
A questão não se afigura simples, de fato. Aparentemente, em seu tempo, ninguém
mais merecedor do Prêmio Nobel que Jorge Luis Borges. Como se sabe, Borges não
foi apenas um escritor de sucesso. Tanto à esquerda quanto à direita, a crítica
jamais fez qualquer restrição aos méritos do escritor argentino - talvez um dos
mais originais da literatura universal em todos os tempos. Mas ao ser posta em
questão a sua eleição para o ambicionado premio, a Academia Sueca - com a
pusilanimidade de todas as instituições do gênero - não se atreveu a arrostar a
opinião pública mundial. Se Borges não se mostrou intimorato à altura de seus
personagens - como conceder-lhe o mais ambicionado galardão literário que, bem
ou mal representaria também o humanitarismo contido na literatura? Para muitos,
foi a resposta contraditoriamente também medrosa a um desafio talvez maior que
se pôs à Academia: o de premiar a grande literatura, a despeito do homem que a
fez.
O caso de Borges, realmente, parece conduzir ao que Woody Allen - ele mesmo, na
sua filmografia e na sua vida pessoal, insistiu em nunca tergiversar. A vida
seria curta demais para os atos vis de complacência ou a covardia perante
matanças, como se fizeram nas ditaduras militares da América Latina. Para dizer
tudo: Borges, um gênio, não parece ter-se comportado à altura da sua condição
de homem; ou mesmo de escritor. Não deixa, porém, de ser um enigma,
principalmente para os artistas.
Não que os artistas sejam diferentes do restante dos homens. Cervantes, o
grande autor de Dom Quixote, distinguiu-se na batalha de Lepanto contra os
turcos. O ferimento que recebeu na ocasião, tornou-o maneta. Sua mão esquerda
ficou inutilizada para o resto da vida. Assim também com Lord Byron (George
Gordon, 1788-1824) - o grande poeta romântico inglês. Como Hemingway, teve uma
vida aventurosa que culminou com a sua morte - de peste - na guerra de
independência da Grécia, a favor da qual, aliás, ele aderiu como combatente
voluntário. Camões, o português, foi um guerreiro persistente; Puchkin - o mais
festejado poeta russo - morreu num duelo. Os exemplos são muitos - mas a
covardia, ou a pusilanimidade ( digamos que sejam duas coisas distintas) ainda
que pouco mencionadas, também não foram nenhuma raridade entre poetas, músicos
e pintores. Cézanne fugiu de Paris quando da guerra
franco-prussiana. Com a razão que a história da pintura talvez lhe dê, preferiu
não correr riscos de vida. Monet, de sua parte, logrou escafeder-se quando se
viu na contingência de ser alistado no exército francês no mesmo período. Assim
também anos mais tarde, com o compositor alemão Richard Strauss que só rompeu
com o hitlerismo quando muitos dos cometimentos do regime nazista já tinham
sido cometidos.
Artistas não parecem, enfim, menos ou mais que homens e mulheres comuns. Quanto
a essas, porém, tidas como representantes do "sexo frágil" - a
coragem ou mesmo o heroísmo não foram menos freqüentes, porque menos
conhecidos. As mulheres submetidas às torturas pelo regime militar brasileiro,
mas que nem por isso delataram seus companheiros, são por demais conhecidas
para que se façam maiores comentários. Há, porém, os casos anônimos como o que
mereceu uma gravura de Goya. Durante a guerra franco-espanhola, uma jovem
espanhola, ao ver seu noivo abatido por um tiro, assumiu seu lugar no canhão
que ele dirigia, fulminando os franceses atacantes. O título da gravura diz por
si, do espanto, não apenas dos espanhóis: "Que coragem!", assinalou o
artista abaixo de seu trabalho.
Na verdade, se a covardia não conviesse mais - a coragem - "Que
coragem!" - nem mereceria qualquer menção. Parece não ser ocioso, porém,
que se a registre. Como fica do filme de Woody Allen, temos a impressão de que
a era do heroísmo é sempre a do passado que idealizamos, nunca do presente que
vivemos - o que nos dispensaria do gesto mais digno. Ou mais valente. Mas não é
bem assim.
Napoleão Bonaparte, que sabia do que falava, comentava, com seus generais que,
de todos os membros da família real austríaca, o mais valente era a rainha.
Dizia, derrisoriamente, contrariando, quem sabe, sua experiência com sua mãe -
a qual sempre dedicou uma admiração imorredoura, justamente por sua coragem -
que a tal dama, "era o único homem da casa ".
Ser homem, finalmente, não parece se constituir na condição para a covardia ou
para a coragem.. Como assevera Hemingway na fita de Woody Allen, a
possibilidade do medo pode assaltar um homem ( e uma mulher ) em qualquer
situação. Mas se persistir durante o ato de fazer amor - então restaria ao
candidato a romancista desistir de seu empenho. São palavras fortes,
condicionais, que talvez pudessem ser endereçadas a Borges. Seria provável,
então, que o grande escritor argentino respondesse, paradoxalmente, que
justamente durante o ato de amor, aí mesmo é que lhe dava medo. Não é impossível.
Borges gostava de chocar. Sua resposta, porém, não indicaria que seria menos
genial por causa disso. Medroso ou não, Borges foi um dos maiores escritores de
todos os tempos. Essa a contradição insolúvel dos artistas: eles acedem fazer
amor com outros medos do que só o da impotência.
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Enio Squeff é artista plástico e jornalista.- Fonte: http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=5117
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