sábado, 5 de maio de 2012

Um (in)discreto espelho: o 'eu', a realidade e a linguagem oculta de si

A perspectiva surrealista da linguagem deita raízes nos anos 1920, e encontra inspiração no inconsciente freudiano. De certo modo, penso eu, Breton antecipa Lacan. Abaixo, um interessante texto incursionando no tema.

Obra do surrealista René Magritte 


A experiência surrealista da linguagem: Breton e a psicanálise*

Lúcia Grossi dos Santos**

O surrealismo foi considerado como a via literária de entrada do freudismo na França, mas a história dos mal-entendidos entre Freud e Breton adquiriu uma importância talvez desmesurada, levando os comentadores a estabelecerem, sobretudo, as diferenças entre os dois. Nossa perspectiva é, ao contrário, a de buscar as contribuições e as questões comuns ao campo da psicanálise e do surrealismo. Mas vamos inicialmente tentar definir o que foi o movimento surrealista. Tomemos a definição de Maurice Nadeau:
"O surrealismo é concebido por seus fundadores não como uma nova escola artística, mas como um meio de conhecimento, em particular de continentes que até então não tinham sido sistematicamente explorados: o inconsciente, o maravilhoso, o sonho, a loucura, os estados alucinatórios, em resumo, o avesso do que se apresenta como cenário lógico." (NADEAU, 1958, p. 46)
É assim, como meio de conhecimento, que o surrealismo se manteve ao longo dos anos. O automatismo será o primeiro mecanismo eleito para explorar estes continentes evocados por Nadeau.
A história do movimento surrealista é bastante agitada e estará sempre ligada a acontecimentos políticos. Partiremos de uma distinção feita por Breton em 1934, por ocasião de uma conferência realizada na Bélgica, cujo título é "O que é o surrealismo?", entre uma primeira fase dita intuitiva (de 1919 a 1925) e uma segunda fase dita "raciocinante", na qual se coloca a questão do engajamento político (BRETON, 1934/1988). A tomada de posição dos surrealistas, em 1925, frente à guerra da França com o Marrocos (colocando-se a favor deste último), marca a mudança de fase. Assim, teremos um primeiro manifesto em 1924, que declara formalmente a existência do movimento no ato de nomeá-lo e define um certo programa. O segundo manifesto, de 1930, marca o momento de uma grave cisão interna no grupo surrealista, ligada à questão da filiação ao partido comunista, que se manterá até a eclosão da Segunda Guerra Mundial.
Há então uma particularidade desta primeira fase intuitiva, que é o fato de ela ser reconhecida a posteriori, pois recobre um período (de 1919 a 1924) em que, a rigor, o surrealismo ainda não existia. Nessa primeira fase, o movimento se definirá enquanto tal, distinto do dadaísmo, lançando-se em experiências de escrita automática, de narrações de sonhos e dos sonos hipnóticos. É justamente nesta fase que o automatismo se impõe como mecanismo essencial ao projeto surrealista de ultrapassar a oposição entre um mundo desejado e o mundo real, propondo uma nova relação do sujeito com a realidade: a de transformação. A surrealidade supõe um mundo no qual "sonhamos de olhos abertos".
Na sua retrospectiva histórica do surrealismo, Sarane Alexandrian afirma que o movimento começa com a fundação, em 1919, da revista Littérature. Ele insiste no fato de que a passagem desse grupo pelo dadaísmo, em decorrência da presença em Paris de Tristan Tzara (1922), não define uma relação de causalidade entre Dada e o surrealismo, pois a experiência fundadora deste último, que é a escrita automática, já teria acontecido antes, em 1919 (ALEXANDRIAN, 1974, p. 52). Trata-se da escrita automática realizada por Breton e Soupault, cujos textos foram publicados na referida revista. Os escritos produzidos pelos dois num estado provocado de automatismo psíquico, durante alguns dias na primavera de 1919, vão aparecer a partir de setembro daquele ano até fevereiro de 1920 nos números de Littérature. Em maio de 1920, publica-se Os campos magnéticos, livro que reúne todos os textos desta primeira experiência de escrita automática. Este livro marca uma espécie de origem do movimento surrealista mesmo que ele só seja nomeado como tal no Manifesto do Surrealismo, de 1924. Entre os dois títulos, houve o período de adesão às manifestações dadaístas em Paris.
No primeiro manifesto, após fazer uma genealogia da palavra surrealismo, atribuindo-a tanto a Apollinaire quanto a Nerval (este teria falado de um "estado de sonho supernaturalista"), Breton a define categoricamente:
"SURREALISMO, s.m. Automatismo psíquico em estado puro mediante o qual se propõe exprimir, verbalmente, por escrito, ou por qualquer outro meio, o funcionamento do pensamento. Ditado do pensamento, suspenso qualquer controle exercido pela razão, alheio a qualquer preocupação estética ou moral." (BRETON, 1924a/2001, p. 40)
Constatamos que a definição se pretende definitiva ("Defino-a de uma vez por todas", escreve Breton) e é por isto que ela toma a forma das definições do dicionário. Tal definição é seguida por outra, dirigida a uma Enciclopédia de Filosofia. Notamos que não é mais o sentido da palavra que importa, mas o que ela caracteriza em termos de pensamento:
"ENCICL. FILOS. O Surrealismo repousa sobre a crença na realidade superior de certas formas de associação desprezadas antes dela, na onipotência do sonho, no desempenho desinteressado do pensamento. Tende a demolir definitivamente todos os outros mecanismos psíquicos e a se substituir a eles na resolução dos principais problemas da vida. Deram testemunho de SURREALISMO ABSOLUTO os srs. Aragon, Baron, Boiffard, Breton, Carrive, Delteil, Desnos, Éluard, Gerard, Limbour, Malkine, Morise, Naville, Noll, Péret, Picon, Soupault, Vitrac." (BRETON, 1924a/2001, p. 40)
Se o termo automatismo não aparece na segunda definição, temos, no entanto uma insistência no termo mecanismo psíquico. Na definição para a Enciclopédia, o surrealismo é, ao mesmo tempo, a realidade superior almejada e o mecanismo necessário à sua instalação.
O automatismo tem uma forte presença na história da psiquiatria francesa. Sabemos que Breton, quando estudava medicina, optou por cumprir seu serviço militar na guerra trabalhando num hospital psiquiátrico, experiência que teve conseqüências fundamentais para seu pensamento. Durante esta temporada no hospital, Breton se interessa apaixonadamente pelo discurso dos loucos e pelo da psiquiatria. É neste momento que ele descobre a obra de Freud através dos livros de Régis: Précis de Psychiatrie e La Psychanalyse, este último escrito com a colaboração de Hesnard. Encontramos traços deste entusiasmo numa carta de Breton a Fraenkel: "Demência precoce, paranóia, estados crepusculares, / Ó poesia alemã, Freud e Kraeplin!". (BONNET, 1988, p. 99)
Não se trata aqui de um simples fascínio pelo discurso científico, mas antes de um deslocamento desse discurso que passa a ser percebido como poético, provocando a ruptura de limites entre arte e ciência, antes evocada.
Voltando às motivações que levaram Breton a se internar no hospital (como médico), diríamos que se trata aí de um desejo de saber que encontra impasses quando endereçado ao registro literário: a obsessão poética evoca uma impossibilidade de avançar além dos limites dos seus mestres em poesia (Mallarmé, Rimbaud, Apollinaire). Breton parece buscar uma outra via e o hospital psiquiátrico surge como o espaço de um encontro essencial com a loucura. A escolha pela psiquiatria, que inicialmente resultou de um movimento de fuga ou renúncia à poesia, torna-se uma fonte de conhecimento. Breton encontra aí algo de fundamental para pensar a relação do homem à realidade.
O hospital lhe mostra o trauma da guerra, sob a forma emblemática de um louco cujo conteúdo do delírio era a simulação da guerra. Esta modalidade de delírio, que coloca em tensão a realidade mesma da guerra e o desejo de negá-la, marca-o profundamente. A experiência como médico da alma comporta um duplo movimento de autoconhecimento e conhecimento do mundo. Podemos dizer que em Breton, como em Freud, é o patológico que lança luz sobre o funcionamento "normal" do psiquismo. Freud parte do sintoma neurótico e chega ao sonho e à descrição do aparelho psíquico. Breton parte dessa aproximação paranóica da realidade para pensar que a relação do homem com a realidade se funda na enunciação. Neste percurso, que reúne loucura e poesia, uma noção se impõe ao pensamento de Breton: a de automatismo.
Alexandrian tenta fazer a gênese das teorias do automatismo psíquico, cujo início pode ser situado no século XVII com Puységur, discípulo de Mesmer, distinguindo duas correntes opostas: a corrente das práticas e doutrinas ocultistas do automatismo — das quais fazem parte o magnetismo, o espiritismo e os rosa-cruz; e uma outra, científica, representada por autores como Baillargar, Azam e Janet. Alexandrian defende a hipótese de que o surrealismo seria a resolução dialética da tese ocultista e da antítese científica no que concerne às idéias sobre o automatismo. Esta resolução dialética demonstra para ele a vocação libertária do surrealismo, que se exprime pelo comportamento livre dos constrangimentos religiosos e científicos. (ALEXANDRIAN, 1974, p. 71-102)
Examinemos um pouco mais a idéia da existência das duas correntes a partir do trabalho de Ellenberger. Segundo ele, a prática ocultista, que é também religiosa, abriu um campo de exploração do não-consciente para a psiquiatria. Esta experimentação, condição fundamental de toda ciência do século XIX, foi aberta pelo espiritismo para as novas ciências do psiquismo.
"O surgimento do espiritismo desempenhou um papel capital na história da psiquiatria dinâmica, no sentido em que ela forneceu indiretamente aos psicólogos e psiquiatras, novos métodos para estudar o espírito humano. A escrita automática, um dos procedimentos introduzidos pelos espíritas, foi retomada pelos sábios como meio de exploração do inconsciente." (ELLENBERGER, 1994, p. 118)
Assim, um fenômeno como o hipnotismo chamou a atenção do meio científico, e seu estudo terá como conseqüência o aparecimento, na França, de duas escolas fundamentais para a constituição da psiquiatria dinâmica moderna: a escola de Nancy e a da Salpêtrière, onde Freud estudou.
O automatismo está muito presente no saber psiquiátrico francês, sobretudo no final do século XIX, quando Pierre Janet defende sua tese sobre "O automatismo psicológico". É certamente com a noção janetiana de automatismo que Breton se defronta enquanto estudante de psiquiatria. Seu contato com toda esta literatura ocultista à qual se refere Alexandrian é posterior à escrita de Os campos magnéticos.
Retomemos esta noção em Janet. Para ele, os fenômenos de automatismo respondem a uma dissociação mental, a uma atividade psíquica autônoma que não obedece ao controle da consciência. O automatismo é signo de fraqueza psíquica, podendo atingir vários níveis. A catalepsia, por exemplo, seria a forma mais elementar de automatismo total. A escrita automática se encontra entre as atividades que podem se desenvolver no quadro de um automatismo parcial num doente mental.
É claro que, se Breton retém a idéia de uma atividade automática efetuada fora da consciência, ele não a considera de forma alguma como signo de fraqueza psíquica; ao contrário, ela seria signo de uma liberação do espírito necessária à criação poética. O automatismo tem valor positivo como mecanismo que permite escapar ao controle da consciência, o que não está longe da noção de processo primário em Freud. O surrealismo se distingue tanto das teses ocultistas, recusando a crença numa vida após a morte, quanto das teses científicas, nas quais o automatismo é signo de demência. Assim, a tese de Alexandrian segundo a qual o automatismo praticado pelos surrealistas seria a síntese dialética do ocultismo e do cientificismo, não nos parece justa. Encontramos em Chénieux-Gendron uma análise mais fecunda do que foi a reviravolta operada pelo surrealismo a propósito do automatismo. Ela mostra que nas técnicas do automatismo (sejam escritas, faladas ou gráficas), trata-se de um "...questionamento do sujeito por ele mesmo e do sentido de toda palavra, de toda comunicação humana". Breton e seus amigos utilizam técnicas já conhecidas mas eles conferem uma outra qualidade ao que é produzido. "O que era percebido como produto da alienação (a loucura que se deve aprisionar) torna-se objeto valorizado de uma invenção maravilhosa". (CHÉNIEUX-GENDRON, 1984, p. 68)
O automatismo praticado pelos surrealistas não é uma solução dialética, pois a via artística não poderia ser considerada como a síntese da contradição entre a religião e a ciência. Mais uma vez, a originalidade do surrealismo está em questionar o limite entre estes campos, já fixados, de expressão do espírito.
A necessidade que teve Breton de teorizar sobre a noção de automatismo conduziu-o à leitura de autores como Myers e Flournoy. De certo modo, Breton refaz a cadeia histórica passando do científico ao religioso. Também a prática espiritista esteve presente no que se tornou conhecido como as sessões de sono hipnótico, quando alguns surrealistas se comportavam como verdadeiros médiuns. A vida em grupo dos surrealistas funcionava como um verdadeiro laboratório de experiências sobre o desconhecido. Os poetas e artistas plásticos se davam ao luxo da loucura e do desregramento, tendo como único limite e garantia o produto da experiência que deveria ser exposto à sociedade.
Segundo Jean Starobinski, o pensamento de Breton se acomoda muito mais ao de Myers que ao de Freud no que diz respeito ao automatismo. Mesmo recusando o dogmatismo transcendental e espírita, Breton estaria mais próximo da noção de eu subliminar de Myers do que do inconsciente freudiano. Starobinski mostra uma incompatibilidade fundamental entre Breton e Freud na medida que o primeiro confunde "o movimento do desejo com o movimento do saber" e "a liberação do desejo com a interpretação" (STAROBINSKI, 1970, p. 154). Apesar da pertinência das afirmações de Starobinski sobre a distinção entre freudismo e surrealismo, acreditamos que a posição de Breton pode ser ainda esclarecida. Podemos dizer que em Breton há uma busca do saber sobre o desejo, mesmo que as formas de acesso a esse saber sejam completamente inabituais. Marcado pelo pensamento de Hegel, o ideal bretoniano é o de um saber absoluto. Sua posição pode ser criticável, mas não confundida com uma adesão ingênua a um pensamento do tipo parapsicológico.
No seu esforço de teorização, Breton não se conforma à doutrina freudiana, nem à de Myers, pois seu projeto não poderia se circunscrever nem na perspectiva científica nem na terapêutica. Ele ultrapassa até mesmo a perspectiva de engajamento político que, como sabemos, foi uma diretriz do movimento surrealista. No conjunto das proposições surrealistas, podemos perceber o que Walter Benjamin chamou de "busca de uma iluminação profana" (BENJAMIN, 1929/1971, p. 311). Inspirado pelo materialismo dialético, o surrealismo procura esta expansão do espírito fora do êxtase religioso ou daquele provocado pela droga. O termo "iluminação profana" descreve bem a posição assumida por Breton a partir da escrita automática, onde a poesia aparece não como um gênero literário entre outros, mas como instrumento de investigação do espírito e da vida. De certa forma, Breton se alinha a uma tradição literária (Nerval, Baudelaire, Mallarmé e Rimbaud) na qual reencontramos o mesmo caráter sagrado da poesia da Antiguidade clássica. No entanto, é preciso distingui-lo de seus predecessores, pois não encontramos em Breton uma posição privilegiada do poeta nem a mistificação da atividade poética. Ao contrário, a poesia está em cada indivíduo mascarada pela sua atividade racional. É preciso apenas encontrar o mecanismo capaz de liberar a atividade poética. Com o automatismo, acessível a qualquer indivíduo, a poesia se democratiza, sofrendo uma espécie de desmistificação.

AUTOMATISMO E ASSOCIAÇÃO LIVRE
O método da associação livre proposto por Freud como meio de driblar a censura interessa enormemente a Breton. A escrita automática se inspira na associação livre na medida que ela visa recuperar o que foi afastado (recalcado) do discurso consciente pela censura. No entanto, a escrita enquanto ato não é inconsciente. Vejamos o que diz Breton no primeiro Manifesto a propósito desse projeto de escrita:
"Como, naquela época, eu ainda andava muito interessado em Freud e familiarizado com os seus métodos de exame, que tivera oportunidade de empregar em alguns pacientes durante a guerra, decidi obter de mim mesmo o que se tenta obter deles, vale dizer, um monólogo enunciado o mais depressa possível, sobre o qual o espírito crítico de quem o faz se abstém de emitir qualquer juízo, que não se atrapalha com nenhuma inibição e corresponde, tanto quanto possível, ao pensamento falado." (BRETON, 1924a/2001, p. 37)
Nessa reconstituição histórica das condições de surgimento da escrita automática, é à teoria freudiana que ele se refere. Mas percebemos por esta passagem que a "familiarização" era um tanto imprecisa. A associação livre não é propriamente um método de exame, mas um instrumento da terapêutica e podemos mesmo nos perguntar se é possível, para a psicanálise, separar exame e terapêutica. Efetivamente, Breton não havia praticado a psicanálise. Breton usava como podia o que ele conhecia do pensamento de Freud pelo intermédio do livro de Régis. Freud ainda não era traduzido para o francês. Examinemos uma passagem da correspondência para Fraenkel (carta de setembro de 1916), onde Breton copia um trecho do Précis de Psychiatrie:
"Inicialmente ele (Freud) empregou na descoberta do processo psicológico primário, o estudo interpretativo dos sonhos e o método da hipnose. Mas como esta última não era aplicável a todos os casos, ele começou, com Jung, a utilizar aquele da auto-análise e das associações mentais. No primeiro, o sujeito deve anotar ele mesmo, com a neutralidade absoluta de um testemunho estrangeiro, indiferente ou, se se quer, de um simples aparelho de registro, todos os pensamentos, quais sejam eles, que atravessam seu espírito. Em seguida o observador deve distinguir, na sucessão das manifestações ideativas, quais delas podem colocá-lo na via do complexo patogênico inicial. No método das associações mentais, o complexo se revela pelas respostas associativas ou palavras-reações do doente às questões variadas que lhe são postas e pelo atraso de algumas dentre elas, medidas cronologicamente." (BONNET, 1988, p. 126)
Esta passagem ilustra bem a extensão da deformação, tanto histórica quanto conceitual, do método freudiano. Primeiramente, a interpretação dos sonhos aparece quando a associação livre se impõe, ou seja, quando o método da hipnose é abandonado. Em segundo lugar, o método da associação utilizado por Jung em Zurique a partir de 1904, "inspirado" na leitura de A interpretação dos sonhos, baseava-se em testes de associação verbal que procuravam demonstrar experimentalmente a presença de material reprimido. A associação livre utilizada por Freud deixava ao paciente a responsabilidade das associações. Mas parece que o que reteve Breton foi a possibilidade de, através da associação, colocar o pensamento em relação ao acidental, ou seja, ao que vem ao espírito sem preocupação de ordem moral ou racional. Lembremos que no momento da escrita do Manifesto de 1924, no qual essa idéia fica mais clara para Breton, a Psicopatologia da vida cotidiana já estava traduzida para o francês. Este é um livro que acentua o determinismo inconsciente naquilo que aparece como acidental na ação do sujeito.

A FRASE DE SEMI-SONO
A primeira vez que Breton expõe as condições da escolha pela experiência de escrita automática é no texto "Entrée des médiums" (Entrada dos médiuns), de 1922. Constatamos que, depois do contato com a psiquiatria e pouco tempo antes da prática da escrita automática, entra em cena a experiência da frase do semi-sono. Ali, Breton a representa da seguinte maneira:
"Em 1919, minha atenção se fixou nas frases mais ou menos parciais que, em plena solidão, na aproximação do sono, tornam-se perceptíveis para o espírito sem que seja possível descobrir para elas uma determinação anterior (...) Só mais tarde, Soupault e eu pensamos em reproduzir voluntariamente em nós o estado onde elas se formavam." (BRETON, 1922a/1988, p. 274).
Aragon lembra que esta relação entre a frase de semi-sono e a escrita automática só será feita por Breton em 1922, três anos depois de vivida a experiência:
"(...) é preciso saber que nos primeiros tempos das experiências de escrita automática, isto é, em 1919, e mesmo durante três anos, três anos e meio, esta fonte não tinha sido evocada, é apenas depois que ele estava habituado ao mecanismo de abolição da censura pela velocidade da escrita que André Breton começou a dizer que o ditado para ele partia de uma frase escutada." (ARAGON, 1969, p. 69)
Mais tarde, em 1924, Breton conta o que se passou antes que ele tomasse a decisão de praticar a escrita automática e, neste momento, ele evoca a frase de semi-sono acompanhada de representação visual, que chama sua atenção como material de construção poética. Esta frase "que se chocava contra a vidraça" era: "Há um homem cortado em dois pela janela". A insistência inicial da frase dá lugar a uma sucessão de frases, todas bastante surpreendentes. Observemos que o estado de semi-sono é anterior ao adormecimento, num "quase abandono" da consciência. Breton estabelece uma relação entre esta experiência e aquela da associação livre psicanalítica. Ele reconhece assim, um certo contexto, um possível efeito de sugestão que condiciona sua experiência. É no après-coup que Breton vislumbra a relação de causalidade entre a frase escutada e a escrita automática. A frase de semi-sono corresponde a uma abertura do sujeito ao pensamento inconsciente do tipo involuntária, enquanto a escrita automática é um exercício voluntário.
A experiência com a frase de semi-sono é a segunda, na cadeia de experiências do desconhecido. A primeira, lembremos, foi a escuta do discurso delirante, quando Breton estava na posição de observador. Ele se desloca assim, para uma outra posição, aquela do sujeito que experimenta em si mesmo a força "automática" da linguagem. A escrita automática vem se juntar a esta série, trazendo um elemento de controle do lado do sujeito da experiência, na medida que ele a provoca e recolhe o produto. A frase de semi-sono tem esse aspecto de representação em imagem que a aproxima do sonho, mas o que conta para o escritor é sua qualidade verbo-auditiva, isto é, o poder que tem a imagem de produzir um equívoco no nível da significação. Lembremos o comentário que segue a apresentação da frase de semi-sono no primeiro Manifesto:
"(...) e não pode haver dúvida quanto a isto, uma vez que a acompanhava uma débil representação visual de um homem que andava, mas que fora truncado a meia altura por uma janela perpendicular ao eixo do seu corpo. Tratava-se, sem sombra de dúvida, do simples reerguimento no espaço de um homem debruçado à janela. Mas, visto que a janela havia acompanhado o reerguimento do homem, vi que estava lidando com uma imagem de tipo bastante raro e logo pensei em incorporá-la ao meu material de construção poética." (BRETON, 1924a/2001, p. 36-7)
Este comentário não é outra coisa senão uma interpretação a partir da qual se tenta encontrar uma resposta ao enigma produzido pela conjunção da imagem com a frase: "há um homem cortado em dois pela janela". Seguindo o reerguimento corporal do homem, a janela não é mais o que faz apenas o enquadramento do mundo exterior. Ela se incorpora ao homem, produzindo o duplo efeito: ser incorporada pelo sujeito e marcar ao mesmo tempo sua divisão. O elemento-chave da frase é a janela, ou mais precisamente a subversão da função ordinária de uma janela, aquela de fazer limite entre interior e exterior. A janela é o espaço da ação de um corte que se realiza no corpo do homem.
É verdade que esta frase tem uma estrutura muito próxima da frase fantasmática desenvolvida por Freud no texto "Bate-se em uma criança", escrito em 1919. E ela se acomoda de forma surpreendente à definição lacaniana do sujeito dividido pelo significante. É o que sublinha Fabienne Hulak: "As atividades de escrita automática serão constantemente a prática deste `ser cortado em dois'". (HULAK, 1992, p. 85)
Não possuindo um "olhar psicanalítico", Breton se interessa a princípio pela qualidade poética da frase, seu aspecto absurdo. Em seguida, ele se impressiona com a percepção de que a frase lhe vinha de fora ("que se chocava contra a vidraça"). Este aspecto de exterioridade não é estranho ao procedimento técnico da psicanálise. Da associação livre é esperado o aparecimento de um pensamento que incide sem motivo. Freud utiliza o termo Einfall para nomear esta idéia incidente que cai, como nos sugere o verbo alemão einfallen. Segundo a regra da associação livre, o sujeito deveria estar pronto a falar destes pensamentos, mesmo se eles estiverem totalmente fora do contexto. As idéias incidentes se distinguem das associações comuns justamente pelo seu caráter desconectado. A mais característica dessas idéias é examinada no texto sobre a Verneinung em que o signo negativo permite a entrada no discurso de um conteúdo recalcado. (FREUD, 1925/1976)
Um outro aspecto essencial da frase de semi-sono é o estado psíquico no qual ela faz emergência. O sujeito se encontra na transição entre sono e vigília, num estado em que a atividade motora é abandonada, inclusive a escrita. Elas demonstram para Breton um funcionamento automático da linguagem que ultrapassa a vontade do sujeito da consciência. Esta frase revela para ele não apenas a onipotência da linguagem, mas a possibilidade do surgimento de um sujeito mais autêntico na sua enunciação.

A PROCURA DOS ESTADOS ALTERADOS
A aproximação feita por Breton entre a experiência da frase de semi-sono e a decisão de praticar a escrita automática é certamente provocada pela questão dos estados alterados. Tendo experimentado o que pode produzir este estado na experiência da frase, ele queria poder provocá-lo. No texto de 1922, "Entrée des médiums" ele afirma que a simples abstração do mundo exterior era suficiente para produzi-lo. Nas Entrevistas de 1952, ele volta a falar sobre estas condições e acrescenta que além do desligamento do mundo exterior é necessário um outro, o desligamento das preocupações individuais de ordem sentimental e utilitária que estaria mais próximo do pensamento oriental.
Hulak reconhece um papel importante nas condições físicas nas quais Os campos magnéticos foram produzidos, dizendo que Breton era um grande insone e que, na época da escrita dos textos, ele não comia o suficiente (HULAK, 1992). Depois de abandonar a medicina, ele perde a ajuda financeira dos pais para se manter em Paris. A estas condições físicas se acrescenta o cansaço causado pela própria escrita. Breton e Soupault passavam dias inteiros escrevendo e aceleravam a velocidade da escritura até que o intervalo entre a palavra oral e a escrita desaparecesse. A idéia de um ditado mágico supõe a anulação do tempo de transformação — e, portanto de reflexão — do pensamento à escrita. Neste sentido, a escrita se aproxima da espontaneidade da oralidade. A escrita de Os campos magnéticos corresponderia a um "falar livremente".
Em 1952, nas Entrevistas, Breton comenta a razão desta busca dos estados alterados que marca toda a fase de experimentação deste período dito intuitivo:
"O que nos interessou apaixonadamente nestes estados era a possibilidade que eles nos davam de escapar dos constrangimentos que pesam sobre o pensamento de vigília. Um desses constrangimentos, e o mais grave, é o assujeitamento às percepções sensoriais imediatas que, numa grande medida, faz do espírito um joguete do mundo externo (quero dizer que em condições normais de ideação, nós só podemos abstrair parcialmente do que cai sob nossos olhos, que chega aos ouvidos, etc.) e que as impressões que resultam disso, pelo seu caráter parasita, não deixam de falsear o curso da ideação." (BRETON, 1952/1969, p. 85)
Seguindo este raciocínio podemos afirmar que o delírio seria a maneira mais avançada de desligamento do mundo exterior. Há uma intuição em Breton segundo a qual o pensamento deve ser levado à construção de uma realidade e não se sujeitar a uma realidade dada. Porém, a fascinação pela força poética do discurso dos doentes mentais não eliminava o desejo de controlá-lo. Ele queria provocar este estado e não ser tomado por ele. A convivência com os loucos hospitalizados lhe ensinou sobre o sofrimento e a miséria da loucura.
Não é sem cautela que ele se prepara para a nova experiência de escrita. As condições de produção de Os campos magnéticos — "o livro por onde tudo começa", como dirá Aragon (ARAGON1924) — permitem vislumbrar a estratégia empregada por Breton. A primeira condição era que a experiência fosse realizada com um outro e não sozinho. Também a escolha deste outro foi cuidadosamente pensada: Soupault foi escolhido por ser mais novo no exercício da literatura e menos crítico, ele estava numa posição de alteridade mais assegurada aos olhos de Breton; Aragon, por exemplo, era muito mais próximo de Breton, nesta época.
A necessidade de uma colaboração corresponde a uma tentativa de objetivação de um momento de subjetivação intensa que é o da associação livre na escrita. Há aí uma espécie de "forçação" do limite do comunicável. O parceiro é ao mesmo tempo testemunha e sujeito da experiência: não há propriamente assimetria das posições, mas ele guarda uma alteridade mínima. Não se trata da confusão dos delírios, porém de uma pesquisa das possibilidades do trabalho da escrita. Esta experiência tem um alvo: encontrar a fonte da imagem poética e controlá-la. É preciso ainda saber como isto funciona e aí a psicanálise tem o seu papel esclarecedor. Apesar deste desejo de controlar a experiência se preparando para ela, é bom lembrar que o resultado desse exercício era completamente imprevisível pois supõe "(...) uma tensão difícil a manter entre os pólos opostos do abandono e da vigilância". (BONNET, 1988, p. 163)
Vejamos alguns exemplos de frases de escrita automática de Os campos magnéticos:
"O círculo de heroísmo e dinheiro plana ainda, avião do mais velho modelo, sobre a província."
"A vontade de grandeza de Deus Pai não ultrapassa os 4.810 metros na França, altitude medida acima do nível do mar." (BRETON & SOUPAULT, 1920/1988, p. 86)
A escrita automática será o testemunho de uma nova relação do poeta à linguagem. O eu se apaga para deixar passar a linguagem e se maravilha vendo se produzirem as imagens poéticas. O poeta está lá para executar, para escrever o que é ditado. No entanto, ele não está na mesma posição que o louco que delira, pois no ato da escrita ele se assume como sujeito. O pensamento, mesmo se ele vem de fora (do Outro), não permanece como palavra do Outro. Dando toda uma importância à experiência da frase de semi-sono, Breton entrevê não apenas um caminho de exploração de um inconsciente singular, mas também a possibilidade de novas formas de enunciação poética.

OS SONOS HIPNÓTICOS
De 1919 a 1924 temos um período de experimentação e conquistas, cujo primeiro Manifesto do Surrealismo é a tentativa de teorização. O automatismo é experimentado não apenas na escrita, mas também na experiência do sono hipnótico. Breton descreveu o momento onde surgiram as sessões de sonos provocados na história do movimento surrealista, como um momento de renovação da esperança de reencontrar a fonte do maravilhoso. O texto "Entrée des médiums" refere-se exatamente a esta experiência que teve lugar em 1922. Breton conta que o entusiasmo pela descoberta da escrita automática havia passado. A dificuldade era cada vez maior: a consciência se insinuava o tempo todo e a vontade de fazer literatura era difícil de abolir. A atenção de Breton se voltou para a narração de sonhos que eram publicados nos números de Littérature. Mas aí também havia um problema, pois era preciso contar com a memória. A memória, sujeita a falhas e à censura, não poderia garantir a qualidade original do material inconsciente. É assim que Breton se exprime sobre a descoberta desse novo procedimento que é o sono hipnótico, neste momento de decepção:
"Por isso eu não esperava mais grande coisa deste lado (da narração de sonhos) no momento em que se ofereceu uma terceira solução ao problema (eu creio que só falta decifrá-la), solução onde intervém um número infinitamente menos considerável de causas de erro, solução que se mostrou das mais palpitantes." (BRETON, 1922a/1988, p. 276)
O sono hipnótico entrava assim no programa de pesquisa das formas de liberação dos constrangimentos. A experimentação durou alguns meses (de setembro a dezembro de 1922) e utilizou o mesmo dispositivo das sessões espíritas. Crevel foi iniciado nesta prática e a propôs ao grupo. Ele é o primeiro a revelar suas capacidades mediúnicas. Porém, o mais brilhante dos médiuns será Robert Desnos, que mostra uma extraordinária capacidade de identificação histérica quando ele encarna na sua escrita Rrose Sélavy, personagem inventada por Marcel Duchamp.
Tomemos alguns exemplos dos aforismos ou jogos de palavras produzidos por Desnos durante o estado de sono provocado:
"Les enfants des hommes sont une somme de fantômes et de sang un peu." (Os filhos dos homens são uma soma de fantasmas e de sangue um pouco.)
"Les pensées des hommes aiment les pensums." (Os pensamentos dos homens amam as tarefas). (DESNOS, 1922-23/1999, p. 148)
No primeiro exemplo, a palavra fantômes é a soma (somme) de enfants e hommes, ou mais exatamente é fant + ommes. O fonema en que resta de enfants é recuperado na homofonia com sang. No segundo exemplo, temos o mesmo procedimento, a palavra pensums (que se pronuncia pã-çóme) que significa a tarefa suplementar dada ao aluno como castigo, condensa pensées e hommes, somando a primeira sílaba da primeira com a última da segunda.
Breton, no célebre texto "Les mots sans rides" (As palavras sem rugas), pergunta:
"Quem dita a Desnos dormindo as frases que podemos ler em Littérature e das quais Rrose Sélavy é a heroína; o cérebro de Desnos está unido como ele pretende ao de Duchamp, ao ponto que Rrose Sélavy lhe fala apenas se Duchamp tem os olhos abertos? É isso que, no estado atual da questão não me compete elucidar." (BRETON1922b/1988, p. 286)
O que importa é o que Desnos é capaz de produzir neste estado, que é um estado de abandono da consciência, no qual as palavras têm autonomia. Desnos cumpre assim as regras que, segundo Breton, podem "...devolver à linguagem sua destinação plena: 1 considerar a palavra em si; 2 estudar a reação das palavras umas sobre as outras". (BRETON, 1922b/1988, p. 284)
As sessões de sono hipnótico colocam em evidência as diferenças de estratégia psíquica dos membros do grupo que se dividia entre os que entravam em transe hipnótico (Crevel, Desnos, Péret) e os que não entravam (Aragon, Breton, Éluard, Max Ernst entre outros), mas que participavam fazendo perguntas. Breton se distinguia mesmo entre os que apenas perguntavam, ocupando o lugar do médico magnetizador. Ele acolhia as manifestações que lhe eram dirigidas e intervinha para acordar os médiuns quando a coisa começava a ficar perigosa. As sessões eram claramente marcadas por efeitos de sedução e disputa pela afeição do mestre. Tinham também a virtude de reunir os participantes do grupo em torno de uma mesma prática, funcionando como uma "onda de sonhos" que arrastava todo mundo com ela.
Alexandrian reconhece nestas sessões um efeito catártico para o grupo, dizendo que os surrealistas foram precursores do psicodrama de Moreno (ALEXANDRIAN1974). Esse inevitável lado psicodramático da experiência dos sonos hipnóticos comprometeu a busca de um estado de abertura para o funcionamento primário da linguagem e, por isto, ela foi abandonada.
Vimos que a experiência do sono hipnótico é ainda uma tentativa de utilizar o automatismo como acesso a essa forma "primária" ou inconsciente do pensamento, livre dos efeitos inibidores do eu. Parece que, de uma forma intuitiva, o surrealismo procurava instalar, através desses estados alterados, um eu "fora-de-si". É uma espécie de busca de embriaguez produzida pelo próprio pensamento. Como observa Walter Benjamin, referindo-se às experiências de alteração do pensamento pelo uso de drogas, os surrealistas estavam mais interessados no pensamento sobre a embriaguez do haxixe que na própria embriaguez do haxixe. (BENJAMIN, 1929/1971)
Nesta valorização da linguagem, os surrealistas estarão mais próximos de Lacan que de Freud. No entanto, enquanto o surrealismo vê na relação do sujeito com a linguagem a possibilidade de liberação dos constrangimentos da realidade, Lacan via nesta mesma relação a causa da divisão do sujeito.
O discurso delirante, a frase de semi-sono, a escrita automática, a narração de sonhos e o sono hipnótico compõem uma série de experiências às quais Breton tenta significar por meio de uma tentativa de formalização teórica. Concomitantemente à afirmação do funcionamento autônomo da linguagem, temos o questionamento do eu e da realidade.

O POUCO DE REALIDADE
A surrealidade foi definida no primeiro Manifesto como a resolução dialética da antinomia entre o mundo do sonho e o da vigília. Dormindo ou acordado, a realidade se produz para o sujeito, no uso da linguagem. No texto de Breton "Introdução ao discurso sobre o pouco de realidade", de 1924, identificamos uma forma bastante original de abordar a questão do eu e da realidade como se fosse a narração de uma fábula. É ao mesmo tempo a introdução de um estilo narrativo que se desenvolve no sentido de uma auto-análise, e a introdução a um processo de desvelamento da relação do eu com a realidade. Uma ampla interrogação sobre a realidade exige um processo de desmascaramento do eu até o seu apagamento, cuja conseqüência é o aparecimento do sujeito da enunciação e da descoberta da linguagem como única garantia da realidade.
A primeira realidade colocada em questão pelo texto é a do eu. A multiplicidade do eu é apresentada no seu caráter teatral. No entanto, a possibilidade de mutação imaginária do eu esbarranuma espécie de traço de identidade que não se deixa apagar. Ora, este resto ineliminável na redução do eu só pode aparecer no discurso, no eu que fala, como efeito primário do fato de que existe linguagem.
"Ó teatro eterno, tu exiges que não somente para representar o papel de um outro, mas ainda para ditar este papel, nós nos maquiemos à sua semelhança, que o espelho diante do qual nos colocamos nos reenvia de nós uma imagem estrangeira. A imaginação tem todos os poderes, salvo aquele de nos identificar apesar de nossa semelhança a um personagem outro que nós mesmos." (BRETON, 1924b/1992, p. 266)
Breton trabalha magnificamente este movimento de redução imaginária do eu, mostrando que toda máscara fracassa no papel de representar o eu. Mas é preciso escolher uma para assegurar este "pouco de realidade" necessário à presença no mundo. Na sua fábula sem moralidade, Breton se veste com uma armadura do século XIV. Coincidentemente, a imagem da armadura é perfeita para ilustrar a estrutura defensiva do eu tal como Freud a concebe. Ela é também muito sugestiva pelo fato de que as armaduras dos velhos castelos foram sempre associadas aos fantasmas dos mortos que se utilizam das armaduras para se tornarem visíveis. Como se, inversamente, Breton tomasse de empréstimo a armadura para se tornar invisível.
A armadura tem a função ambígua de mascarar o eu, desmascarando, pois ela é uma máscara sem qualidades, ela não seduz: esconde a imagem sem produzir uma outra. Ela esconde os signos distintivos da face numa espécie de eliminação da aparência humana. Sua função é, por fim, ser o suporte de uma voz.
O "Colóquio das armaduras", à maneira de uma fábula, abre a cena para a voz do pensamento. A realidade sensível das coisas não garante nada e apenas o pensamento "(...) tem sua maneira própria de andar". No desenvolvimento do texto há a busca de um cogito que seria próprio ao surrealismo. Blanchot sublinha este movimento de afirmação do pensamento enquanto fundamento do sujeito, lembrando as palavras de Breton no segundo Manifesto: "Por definição, o pensamento é forte e incapaz de se deixar enganar". Ora, o pensamento, ele mesmo, encontra seu fundamento na linguagem. É o que dizia Aragon: "(...) não há pensamento fora das palavras" (ARAGON, 1924). A linguagem torna-se, em última análise, o princípio do cogito surrealista. Se o sujeito não pode ser fiel ao seu pensamento e se existe um intervalo entre o eu e o eu falante, é porque o mundo externo intervém no pensamento para distraí-lo ou para desviá-lo, mas isto "não põe em causa nem o fato nem a natureza da linguagem" (BLANCHOT1980, p. 92). Uma vez operada a separação entre o eu (sempre disfarçado, preso nas distrações do mundo) e o pensamento (capaz de denunciar estes disfarces), a questão que ganha a cena é aquela do sujeito do discurso: "Que me importa o que se diz de mim se eu não sei quem fala, a quem eu falo e no interesse de quem nós falamos?". (BRETON, 1924b/1992, p. 270).
Este "quem fala?" é o centro da busca deste texto, ele encarna a função subversiva do cogito surrealista. Quem fala para além do eu circunstancial? Ele afirma a existência do pensamento, mas não assegura o lugar da res cogitans
A dúvida recai sobre o "eu", pois falar equivale a pensar. Assim, o "eu falo" torna-se um "isso fala". O resultado desta operação, segundo Blanchot, é que "(...) a linguagem desaparece como instrumento, pois ela se tornou sujeito". (BLANCHOT, 1980, p. 93)

Ao movimento de contestação da realidade através do apagamento progressivo do eu e dos objetos, corresponde um outro movimento contrário em que a linguagem torna-se mais e mais real. A transformação da realidade passa forçosamente por uma mudança de discurso.
"O que me impede de embaralhar a ordem das palavras, de atentar desta maneira à existência aparente das coisas? A linguagem pode e deve ser arrancada de sua escravidão. Não mais descrições da natureza, não mais estudos dos costumes. Silêncio, afim que onde ninguém jamais passou, eu passe, silêncio! Depois de você, minha bela linguagem." (BRETON, 1924b/1992, p. 276)
"Introdução ao discurso sobre o pouco de realidade" é um texto que, de forma poética, apresenta a essência do pensamento surrealista: a linguagem é a fonte. Desta essência podemos deduzir certas conseqüências que concernem à realidade e ao eu. De início, pode-se afirmar que a realidade é construída na enunciação. A elevação da linguagem à dignidade de ser é paralela à distinção entre o eu do teatro do mundo e o eu da enunciação que só pode passar pelo caminho aberto pela linguagem. Esta distinção nos parece muito próxima da que faz Lacan entre o eu (moi) imaginário e o eu (je) simbólico. Este primeiro eu se confronta à sua condição de ser falante. Radu Turcanu observa que o pouco de realidade é uma maneira particular de Breton denunciar a inadequação do sujeito ao mundo sob a forma de uma "falta-a-ser" (manque-à-être de Lacan). Contrariamente, o que foi subtraído ao sujeito se encontra na linguagem sob a forma de "mais de realidade". (TURCANU, 1996)
No entanto, o surrealismo crê numa nova relação do ser falante à linguagem onde a unidade se realiza, pela revelação da realidade superior, aquela que está de acordo com o desejo inconsciente. Esta proposição se afasta radicalmente da perspectiva do Lacan dos anos 1950, para quem a relação do sujeito com a linguagem é de alienação tanto quanto a relação do eu com sua imagem. É como se Breton tivesse antecipado, em 1924, a separação entre o je e o moi proposta por Lacan, mas não tirasse daí as mesmas conseqüências que ele.
Não vamos falar de influência do pensamento surrealista sobre Lacan, mesmo sabendo que Lacan se nutria da poesia surrealista. Queremos marcar apenas este movimento de antecipação do surrealismo em relação a alguns pontos essenciais do pensamento lacaniano. Não podemos negar que Breton faz uma conjunção entre inconsciente e linguagem, já na experiência da escrita automática. Temos em Breton uma noção de autonomia da palavra em detrimento da autonomia do eu: o que determina a relação do sujeito com a realidade é a linguagem.
Lacan se debateu com a noção de inconsciente freudiano até conseguir incorporá-lo à lingüística estrutural nos anos 1950. O Lacan dos anos 1930 e 40 tem uma teoria do eu e de sua relação com a realidade mediada pela imago e os complexos, mas não tem uma teoria do inconsciente. Sabemos que Lacan, ao definir o campo da linguagem como o campo simbólico, do código, afasta dela toda a dimensão de gozo que estaria para ele (desde as elaborações do estágio do espelho) ligada à ordem imaginária.
Ora, para o surrealismo, o abandono do eu à força automática da linguagem é fonte de gozo. Digamos então que o surrealismo enquanto prática de linguagem só é devidamente apreciado pela psicanálise a partir das elaborações dos anos 1970, quando Lacan vai propor que a linguagem é um aparelho de gozo (LACAN,1985). Lacan precisará passar por uma reelaboração do simbólico, apontando nele uma incompletude. Só então, a linguagem poderá se "libertar" dessa dimensão reguladora do código e recuperar algo que Freud aponta no livro sobre os chistes: que a linguagem serve para gozar.
O modo surrealista de tratar as palavras exposto no texto "Les mots sans rides" antecipa as elaborações lacanianas dos anos 1970. As palavras do poeta não têm compromisso com a etimologia ou com o sentido do dicionário. As palavras sem rugas, fora do código, são fonte de gozo; como a experiência que a criança tem da língua, antes que a dimensão do código venha se impor à língua materna.

REFERÊNCIAS
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*Fonte:   Ágora, vol.5 ,no.2 ,Rio de Janeiro, 2002

**Professora do Curso de Psicologia da Faculdade de Ciências Humanas do Centro Universitário/Fumec, de Belo Horizonte, e doutora pelo Laboratório de Psicopatologia Fundamental e Psicanálise da Universidade de Paris VII. Psicanalista

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