Terça-feira, 8 de maio de 2012
O amor é mais frio que a morte:
negatividade, infinitude e indeterminação na teoria hegeliana do desejo
A morte é central na filosofia hegeliana. Sobre
este assunto, além da angústia e otras cositas mais, discorre o professor
Vladimir Safatle no artigo abaixo. Um texto importante para quem se interessa
por subjetividade e fenomenologia.
O amor é mais frio que a morte: negatividade, infinitude e
indeterminação na teoria hegeliana do desejo1
Vladimir Safatle
Professor
do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, bolsista de
produtividade do CNPq e autor de A paixão do negativo: Lacan e a dialética
(Unesp, 2006), Lacan (Publifolha, 2007) e Cinismo e falência da
crítica (no prelo). vsafatle@yahoo.com
Of course
all life is a process of breaking down,
but the blows that do the dramatic side of the work [...]
don't show their effect all the once.
(Scott Fitzgerald)
but the blows that do the dramatic side of the work [...]
don't show their effect all the once.
(Scott Fitzgerald)
Vivemos, aliás, numa época em que a universalidade
do espírito está fortemente consolidada, e a singularidade (Einzelnheit), como
convém, tornou-se tanto mais insignificante (gleichgültiger); época em que a
universalidade se aferra a toda a sua extensão e riqueza acumulada e as
reivindica para si. A parte que cabe à atividade do indivíduo na obra total do
espírito só pode ser mínima. Assim, ele deve esquecer-se, como já o implica a
natureza da ciência. Na verdade, o indivíduo deve vir-a-ser, e também deve
fazer o que lhe for possível; mas não se deve exigir muito dele, já que
tampouco pode esperar de si e reclamar para si mesmo.2
Essas afirmações são importantes por sintetizarem
tudo aquilo que várias linhas hegemônicas do pensamento filosófico do século XX
imputaram a Hegel. Filósofo da totalidade do Saber Absoluto, incapaz de dar
conta da irredutibilidade da diferença e das aspirações de reconhecimento do
individual às estratégias de síntese do conceito. Expressão mais bem acabada da
crença filosófica de que só seria possível pensar através da articulação de
sistemas fortemente hierárquicos, com o conseqüente desprezo pela dignidade
ontológica do contingente, deste mesmo contingente que "tampouco pode
esperar de si e reclamar para si mesmo". Defesa de uma história na qual o
presente apresentaria uma "universalidade do espírito fortemente consolidada",
história teleológica esvaziada da capacidade em apreender um tempo no qual
acontecimentos ainda fossem possíveis.3
Em todas essas acusações transparece o que teria
sido a impossibilidade hegeliana em dar conta de um particular que não deveria
nem poderia ser reduzido à condição de mera particularidade. Como se, em Hegel,
o particular fosse apenas a ocasião para a realização concreta do universal,
não tendo, com isto, realidade alguma em si. Em todas estas acusações parece
ressoar o diagnóstico de Adorno:
"Se Hegel tivesse levado a doutrina da identidade entre o universal e o particular até uma dialética no interior do próprio particular, o particular teria recebido tantos direitos quanto o universal. Que este direito – tal como um pai repreendendo seu filho: "Você se crê um ser particular" –, ele o abaixe no nível de simples paixão e psicologize (psychologistisch) o direito da humanidade como se fosse narcisismo, isto não é apenas um pecado original individual do filósofo".4
Isto não seria um pecado individual do filósofo porque seria um pecado de todo seu sistema. Mas podemos nos perguntar sobre a correção de tais interpretações. Hegel teria simplesmente ignorado as exigências necessárias para o reconhecimento da individualidade ou estaria, na verdade, procurando construir as condições para uma recompreensão dos processos de individuação? Estaríamos diante de um traço definidor dos limites da filosofia hegeliana ou esse seria o ponto mais importante de um amplo projeto que visa fornecer um conceito renovado de individualidade em relação ao qual ainda não fomos capazes de nos medir?
"Se Hegel tivesse levado a doutrina da identidade entre o universal e o particular até uma dialética no interior do próprio particular, o particular teria recebido tantos direitos quanto o universal. Que este direito – tal como um pai repreendendo seu filho: "Você se crê um ser particular" –, ele o abaixe no nível de simples paixão e psicologize (psychologistisch) o direito da humanidade como se fosse narcisismo, isto não é apenas um pecado original individual do filósofo".4
Isto não seria um pecado individual do filósofo porque seria um pecado de todo seu sistema. Mas podemos nos perguntar sobre a correção de tais interpretações. Hegel teria simplesmente ignorado as exigências necessárias para o reconhecimento da individualidade ou estaria, na verdade, procurando construir as condições para uma recompreensão dos processos de individuação? Estaríamos diante de um traço definidor dos limites da filosofia hegeliana ou esse seria o ponto mais importante de um amplo projeto que visa fornecer um conceito renovado de individualidade em relação ao qual ainda não fomos capazes de nos medir?
Sabemos que Hegel desenvolve seu conceito de
individualidade através da noção de consciência-de-si. No entanto, esquecemos
com freqüência como a consciência-de-si hegeliana não é um conceito mentalista
próprio à reflexividade de uma subjetividade auto-suficiente que se delimita em
relação ao que lhe é exterior. Na verdade, consciência-de-si é, para Hegel, um
conceito relacional que visa descrever certos modos de imbricação entre sujeito
e outro que têm valor constitutivo para a experiência do Si mesmo. Por ser a
consciência-de-si um conceito relacional, seus atributos maiores no campo
prático (como determinação, autonomia, liberdade e imputabilidade) só podem ser
pensados em seu verdadeiro sentido quando abandonamos a crença de que a
experiência da ipseidade está assentada na entificação de princípios formais de
identidade e unidade. Até porque, a consciência-de-si não se funda na apreensão
imediata da auto-identidade, mas naquilo que nega sua determinação imanente. Se
quisermos utilizar um vocabulário contemporâneo, diremos que a
consciência-de-si hegeliana é o locus de uma experiência fundamental
de não-identidade que se manifesta através das relações materiais do sujeito ao
outro. Relações essas que são pensadas a partir das figuras do trabalho, do
desejo e da linguagem.
Mas dizer que a consciência-de-si é um conceito
relacional é ainda dizer muito pouco. Pois isto pode simplesmente significar
que toda subjetividade é, desde o início, dependente de uma estrutura
intersubjetiva de relações que a constitui e a precede. No entanto, parece que
Hegel quer dizer algo a mais. Para tanto, precisaremos compreender
melhor quem é este outro com o qual me relaciono em experiências
constitutivas que se dão no campo do trabalho da linguagem e do desejo.
Trata-se apenas de uma outra consciência-de-si ou de uma alteridade mais profunda
que está para além do que determina uma individualidade como objeto de
representação mental, um para além que me coloca em confrontação com algo que,
do ponto de vista da consciência, é indeterminado?
Se seguirmos esta segunda hipótese, talvez
compreendamos melhor porque, para Hegel, a individualidade livre (ou seja,
aquela individualidade que realizou seu processo de formação) é aquela que
leva ao campo da determinação a força disruptiva da confrontação com o
indeterminado e que, por isso, tem a capacidade de fragilizar toda
aderência limitadora a uma determinidade finita. Talvez seja assim que devamos
entender afirmações maiores de Hegel como: "A liberdade não se vincula
pois nem ao indeterminado nem ao determinado, mas ela é ambos".5 Ou
ainda: "O Eu é a passagem (Übergehen) da indiferenciação
indeterminada para a distinção determinada e põe uma determinação como um
conteúdo e objeto".6 Lembremos
que, por ser passagem, o Eu nunca deixa de conservar os momentos que ele coloca
em relação através do movimento de passar no oposto. O que nos leva a dizer que
ele deve conservar algo do que ainda não é um Eu, algo que é pré-individual.
Esta confrontação com o indeterminado enquanto
processo fundamental de constituição da individualidade ficará mais clara se
nos perguntarmos pela função de experiências limites como aquelas
desempenhadas pela morte e pela angústia no processo de formação da consciência-de-si.
Veremos que, longe de serem meros motivos de uma leitura demasiado
"existencialista" da fenomenologia hegeliana ou ainda de uma temática
moralizadora vinculada a um processo de formação ligado ao ressentimento e à
resignação diante da finitude (como quer Deleuze e, de uma certa forma, Gerard
Lebrun),7 a
morte e a angústia no caminho de formação da consciência-de-si têm funções
lógicas bastante precisas. Pois elas indicam o processo necessário de abertura
àquilo que, do ponto de vista da consciência imersa em um regime de pensar
marcado pela finitude da representação e dos modos de categorização do
entendimento, só pode aparecer como desprovido de determinação.8 Neste
sentido, não deixa de ser irônico lembrar que a intuição de Kojève a respeito
da centralidade da confrontação com a morte no processo de formação da
consciência-de-si não era exatamente incorreta. Restava apenas descrever de
maneira mais adequada sua função fenomenológica.
Por outro lado, insistir neste aspecto nos
permitirá mostrar como, a partir de uma perspectiva hegeliana, o processo de
reconhecimento da individualidade não pode estar restrito ao simples
reconhecimento da reivindicação de direitos individuais positivos que não
encontram posição em situações normativas determinadas, como o quer Honneth ao
afirmar não ser possível compreender porque a "antecipação da morte, seja
a do próprio sujeito seja a do Outro, deveria conduzir a um reconhecimento da
reivindicação de direitos individuais".9 O
mesmo Honneth para quem a experiência da indeterminação é vivenciada pela
consciência basicamente como fonte de sofrimento, como: "um estado
torturante de esvaziamento".10
De fato, a questão não pode ser respondida se
compreendermos o que exige reconhecimento como sendo direitos individuais,
expressões singulares da autonomia e da liberdade. Mas não é isto que Hegel tem
realmente em vista. Tanto é assim que ele não teme afirmar que o não arriscar a
vida pode produzir o reconhecimento enquanto pessoa, mas não enquanto
consciência-de-si autônoma e independente. Como se a verdadeira autonomia da
consciência-de-si só pudesse ser posta em um terreno para além (ou mesmo para
aquém) da forma da pessoa jurídica portadora de diretos positivos e
determinações individualizadoras. Por isso, tudo nos leva a crer que Hegel
insiste que se trata de mostrar como a constituição dos sujeitos é solidária da
confrontação com algo que só se põe em experiências de negatividade e des-enraizamento
que se assemelham à confrontação com o que fragiliza nossos contextos
particulares e nossas visões determinadas de mundo. A astúcia de Hegel
consistirá em mostrar como o demorar-se diante desta negatividade é condição
para a constituição de um pensamento do que pode ter validade universal para os
sujeitos.
Sendo assim, as tensões internas à teoria hegeliana
do reconhecimento também não podem ser pensadas a partir de dualidades como
esta proposta por Habermas ao afirmar:
Eu me compreendo como "pessoa em geral" e
como "indivíduo inconfundível" que não se deixa substituir por
ninguém em sua biografia. Sou pessoa em geral na medida em que tenho em comum
com todas as outras pessoas as propriedades pessoais essenciais de um sujeito que
conhece, fala e age. Sou ao mesmo tempo um indivíduo inconfundível, que
responde, de maneira insubstituível, por uma biografia tão formadora quanto
singular.11
Interpretações desta natureza entificam uma noção
personalista de individualidade, noção ligada ao Eu como figura de uma
determinação completa. Isto nos impede de pensar a fluidez de um conceito de
individualidade onde toda determinação seria corroída por um fundo de
indeterminação que fragiliza sua identidade e sua fixidez. Por outro lado, tais
interpretações tendem a constituir a universalidade como conceito normativo e
essencialista ao demarcá-la a partir de um conjunto determinado de
"propriedades pessoais essenciais" que não são objetos de
questionamento ou conflito, mas motor de toda demanda presente em conflitos sociais.
Esta é uma via que nos leva, necessariamente, à substancialização do conceito
de sujeito. Como veremos, é exatamente para impedir derivas desta natureza que
Hegel insiste tanto na necessidade de o trajeto em direção à universalidade
passar pelo "trabalho do negativo" e pelo "caminho do
desespero".
Ontogêneses e conflitos
Se reconstruirmos o dispositivo fundamental de
desenvolvimento da teoria hegeliana da formação da consciência-de-si, veremos
que se trata de partir de considerações sobre a ontogênese das capacidades
prático-cognitivas dos sujeitos, uma ontogênese que se desenvolve através de
processos de socialização e de individuação. Trata-se de se perguntar sobre a
gênese empírica de nossas habilidades cognitivas e de nossos esquemas de determinação
racional da ação. No entanto, em vez de partir da análise das práticas de
socialização através de identificações que ocorrem em núcleos elementares de
interação social (família, sociedade civil, instituições, Estado), Hegel
prefere, inicialmente, fornecer algo como uma matriz fenomenológica geral para
a inteligibilidade de tais processos. Trata-se da dialética do Senhor e do
Escravo (DSE).
Conhecemos tentativas contemporâneas de invalidar o
papel central da DSE na reflexão sobre os processos de formação e
reconhecimento da consciência-de-si. Robert Williams dirá, por exemplo:
"Não é o processo completo de reconhecimento recíproco, mas o fracasso em
realizar tal reconhecimento que será enfatizado. Por esta razão, a figura do
Senhor/Escravo tende a dominar o relato sobre a intersubjetividade
na Fenomenologia".12 Apenas
no seu sistema de maturidade Hegel teria enfim fornecido todo este
"processo completo". Mas leituras desta natureza tendem a esquecer
como a Fenomenologia já é a versão completa do sistema a partir
do ponto de vista da consciência, assim como a Ciência da Lógica é
a versão completa do sistema a partir do ponto de vista do saber objetivo.
Neste sentido, nunca é prudente relativizar o que a Fenomenologia nos
traz, como se tratasse de processos incompletos.
Na verdade, o desconforto de vários comentadores
hegelianos com a DSE vem principalmente do fato de ela nos mostrar como os
processos de reconhecimento social são mediados por um desejo que instaura o
conflito enquanto solo ontológico, por se apresentar desde o início como aquilo
que constitui relações apenas a partir de dinâmicas de dominação e servidão.
Através do desejo, procuro submeter o outro à condição de objeto desprovido de
autonomia, outro cuja essência consiste apenas em ser suporte do meu desejo.
Mas como o desejo é o primeiro modo de relação ao outro, então o conflito que
ele instaura tem o peso de um dado ontológico para o modo de ser da
consciência-de-si.
No entanto, se assim for, parece haver um equívoco
neste esquema hegeliano. Pois: "De acordo com Hegel, o processo de
reconhecimento começa com o fato de o Eu estar fora de si, de ele estar
cancelado como ser-para-si e intuir si-mesmo apenas no outro. No entanto, esta
não é uma estrutura de luta, mas do amor".13 Um
conflito com o outro só faz sentido por pressupor que o outro deve e é
capaz de me reconhecer. Se acreditasse que o outro não é capaz (por ser,
por exemplo, louco) ou não deve me reconhecer (por ser, por exemplo, alguém que
desprezo), então não haveria demanda de reconhecimento, não haveria tentativa
de submeter o sistema de interesses do outro ao meu desejo. Mas se creio que o
outro deve e é capaz de me reconhecer, é porque há um tipo prévio de vínculo
que poderíamos chamar de "amor" e que serve aqui como base
intersubjetiva inicial e não problemática de relações. Assim, Hegel deveria ter
começado a descrição dos processos conflituais de reconhecimento entre sujeitos
a partir da apresentação do amor como fundamento e base normativa das demandas
sociais de reconhecimento presentes em processos de interação. Algo que, por
sinal, ele faz em seus textos de juventude, como na Filosofia do espírito, de
1805.
Retomar a DSE, entretanto, pode nos explicar porque
Hegel não tem como concordar com tentativas contemporâneas de recuperar o amor
como "estrutura geral de reconhecimento recíproco"14 que
deveria ser pressuposta como solo intersubjetivo primário para o
desenvolvimento seguro e normatizado de todo e qualquer processo de determinação
social da individualidade. Isto ao menos se pensarmos o amor a partir do
paradigma comunicacional de relações de mútua dependência e complementaridade.
Pois, ao contrário, talvez Hegel queira mostrar que os processos de interação e
socialização são mediados por um desejo cuja opacidade e negatividade
problematiza de maneira decisiva a intersubjetividade primária do amor.15 Desejo
que só poderá ser satisfeito ao reconhecer-se em uma individualidade onde o Eu
sempre vai estar, de uma certa forma, irredutivelmente fora de si; desejo cuja
satisfação nos leva, inclusive, ao abandono do Eu como forma altamente
individuada.
É certo que o desejo enquanto relação negativa para
com o objeto exige ser superado. No entanto, tal superação não implica
recuperar alguma forma de interação recíproca entre sujeitos fortemente individualizados
e determinados, muito menos procurar pôr processos de indiferenciação
simbiótica pré-pessoais como horizonte de desenvolvimento de relações sociais.
Como gostaria de mostrar, a experiência da negatividade do desejo será, de
certa maneira, conservada como base para a reconstrução dos modos de relação a
si e ao outro. Isto obrigará, no limite, à problematização de todo conceito de
amor ligado a formas de paradigmas comunicacionais.16
Se voltarmos ao texto da Fenomenologia, veremos que
o desejo aparece pela primeira vez em um contexto esclarecedor. Trata-se de uma
discussão a respeito das condições para a realização da unidade entre
consciência-de-si e consciência de objeto. Ao lembrar que a noção de
"fenômeno", enquanto "diferença que não tem em si nenhum
ser" (já que é apenas o aparecer para-um-Outro) não era figura da unidade
da consciência-de-si consigo mesma, mas, ao contrário, era a própria clivagem
(já que a essencialidade está sempre em um Outro inacessível ao saber: a
coisa-em-si), Hegel afirma: "Essa unidade [da consciência-de-si] deve
vir-a-ser essencial a ela, o que significa: a consciência-de-si é desejo em
geral (Begierde überhaupt)".17
O que significa esta introdução do que Hegel chama
aqui de "desejo em geral", ou seja, não desejo deste ou daquele
objeto, mas desejo tomado em seu sentido geral, como modo de relação entre
sujeito e objeto? A partir do contexto, podemos compreender que a unidade da
consciência-de-si com o que havia se alojado no "interior das Coisas"
como essência para além dos fenômenos, unidade entre o saber e a determinação
essencial dos objetos, só será possível a partir do momento em que
compreendermos as relações entre sujeito e objeto não apenas como relações de
conhecimento, mas primeiramente como relações de desejo e satisfação.
A princípio, uma afirmação desta natureza parece
algo totalmente temerário. Estaria Hegel colocando em marcha alguma forma de
psicologismo selvagem que submete as expectativas cognitivas a interesses
prático-finalistas? Ou estaria ele insistindo, e aí na melhor tradição que encontramos
também em Nietzsche e Freud, que a razão configura seus procedimentos (ou seja,
ela define o que é racional e legítimo) através dos interesses postos na
realização de fins práticos, interesses que nos levam a recuperar a dignidade
filosófica da categoria de "desejo"?
De fato, esta segunda alternativa parece ser o
caso. Neste sentido, podemos seguir um comentador que viu isto claramente,
Robert Pippin: "Hegel parece estar dizendo que o problema da objetividade,
do que estamos dispostos a contar como uma reivindicação objetiva é o problema
de satisfação do desejo, que a 'verdade' é totalmente relativizada por fins
pragmáticos [...] Tudo se passa como se Hegel estivesse reivindicando, como
muitos fizeram nos séculos XIX e XX, que o que conta como explicações
bem-sucedidas dependem de quais problemas práticos queremos resolver [...] que
o conhecimento é uma função de interesses humanos".18
No entanto, parece que Hegel estaria assim entrando
com os dois pés em alguma forma de relativismo que submete expectativas
universalizantes de verdade à contingência de contextos marcados por interesses
e desejos particulares. A não ser que Hegel seja capaz de mostrar que os
interesses práticos não são guiados pelo particularismo de apetites e
inclinações, mas que, ao se engajar na dimensão prática tendo em vista a
satisfação de seus desejos, os sujeitos realizam necessariamente as aspirações
universalizantes da razão. Lembremos ainda que, por não admitir distinções
estritas entre empírico e transcendental, Hegel não está disposto a operar
rupturas entre desejo patológico e vontade livre cujo reconhecimento seria o
fundamento para a constituição do universo dos direitos. Há algo da
universalidade da vontade livre que já se manifesta no interior do desejo.
Colocações desta natureza parecem ir na contramão
de tendências hegemônicas do pensamento crítico do século XX. Basta lembrar,
por exemplo, desta questão sempre posta por teóricos da Escola de Frankfurt,
questão animada pela psicanálise freudiana com sua descrição da natureza
conflitual dos processos de socialização no interior da família e de
internalização da Lei social: o que é necessário perder para se conformar às
exigências de racionalidade e universalidade presentes em processos hegemônicos
de socialização do desejo? Ou ainda: qual é o preço a pagar a fim de viabilizar
tais exigências? Quanto devemos pagar para sustentar afirmações como: "A
verdadeira liberdade é, enquanto eticidade, o fato de a vontade não ter
finalidades subjetivas, ou seja, egoístas, mas um conteúdo universal"?19 Como
disse Adorno, não estaríamos aí diante da tentativa de "psicologizar o
direito da humanidade como se fosse narcisismo"?
Tais questões têm conseqüências maiores. Tomemos,
por exemplo, o caso de Adorno, para quem os modos de organização da realidade
no capitalismo avançado, assim como os regimes de funcionamento de suas
dinâmicas de interação social, de seus núcleos de socialização, eram
dependentes da implementação de uma metafísica da identidade. Uma metafísica
que guiaria a ontogênese das capacidades prático-cognitivas dos sujeitos
através da internalização de exigências de unidade que orientam a formação do
Eu e reprimem o que é da ordem do corpo, das pulsões e da sexualidade (em suma,
do desejo). Assim, se Adorno pode dizer que: "identidade de si e alienação
de si estão juntas desde o início",20 é
principalmente porque a socialização que visa constituir individualidades segue
a lógica da internalização de uma Lei repressiva da identidade. Daí afirmações
como: "A consciência nascente da liberdade alimenta-se da memória
(Erinnerung) do impulso (Impuls) arcaico, não ainda guiado por um Eu sólido.
Quanto mais o Eu restringe (zügeln) tal impulso, mais a liberdade primitiva
(vorzeitlich) lhe parece suspeita pois caótica".21 Afirmações
que demonstram como análise da realidade social, crítica da metafísica da
identidade e crítica da ontogênese das capacidades prático-cognitivas estariam
absolutamente vinculadas. Um vínculo que legitimaria Adorno a voltar-se contra
Hegel, o mesmo Hegel que não teria compreendido que a violência do Universal
realizando-se não é idêntica à essência dos indivíduos, mas contrária.
No entanto, devemos insistir que Hegel é sensível
àquilo que não se determina integralmente de maneira positiva através de
processos de socialização e individuação. Ele sabe que há um caminho complexo
até a realização da possibilidade de tais processos preencherem exigências
universalizantes. Por isso, em Hegel, a ontogênese do sujeito é o
reconhecimento de uma anterioridade ontológica do conflito que se manifesta
nesta ligação necessária entre subjetividade e negatividade.
Sobre tal anterioridade ontológica, lembremos como
Hegel chega a "naturalizar a noção de conflito" através de sua
filosofia da natureza, isto ao instaurá-lo no interior de seu conceito de
"vida". Vida cujo movimento será recuperado de maneira reflexiva no
interior da determinação da consciência-de-si. Ou seja, vida que fornecerá o
modelo do processo reflexivo de autoposição próprio à consciência-de-si.
Insistir nesta complementaridade é inclusive maneira de lembrar que aquilo que
se manifesta inicialmente como exterioridade em relação à consciência-de-si (a
natureza, a mesma na qual Adorno verá o signo da emancipação do sujeito através
da suspensão de sua dominação pela razão) fornecerá o modelo de constituição do
conceito de individualidade.
A fluidez absoluta da vida
Sabemos como, para a geração de Hegel, a filosofia
moderna deveria ultrapassar um sistema de dicotomias que encontrara sua figura
mais bem acabada na maneira kantiana de definir o primado da faculdade do
entendimento na orientação da capacidade cognitiva da consciência. Hegel
partilha o diagnóstico de pós-kantianos como Fichte e Schelling para quem, na
filosofia kantiana, o primado da reflexão e do entendimento produziu cisões
irreparáveis. Daí porque "o único interesse da razão é o de suspender
antíteses rígidas",22 como
aquelas que orientam as distinções entre sujeito e objeto, forma e matéria,
receptividade e espontaneidade, natureza e subjetividade.
Em Hegel, uma das primeiras maneiras de definir o
modo de anulação de tais dicotomias foi a tematização de uma espécie de solo
comum, de fundamento primeiro, a partir do qual sujeito e objeto se extrairiam,
na mais clara tradição schellinguiana. Este fundamento primeiro era a vida. Daí
porque Hegel poderá afirmar, na juventude: "Pensar a pura vida, eis a
tarefa", já que "A consciência desta pura vida seria a consciência do
que o homem é".23 Neste
sentido, ter a vida por objeto do desejo é reconhecer, no próprio objeto, a
substância que forma consciências-de-si. Não é por outra razão que Hegel
apresenta a vida logo na entrada da seção dedicada à consciência-de-si,
na Fenomenologia do Espírito. Enquanto consciência que reconhece as
dicotomias nas quais uma razão compreendida a partir da confrontação entre
sujeito e objeto se enredara, a consciência-de-si procura
um background normativo intersubjetivamente partilhado a partir do
qual todos os modos de interação entre sujeito e objeto se extraem. A vida
aparece inicialmente como este background.
No entanto, a vida é ainda uma figura incompleta
porque seu movimento não é para-si, ou seja, não é reflexivamente posto e
apreendido. Não se trata aqui de simplesmente negar, através de uma negação
simples, o que a reflexão sobre a vida traz. De fato, há uma certa continuidade
entre a vida e a consciência-de-si claramente posta por Hegel nos seguintes
termos: "A consciência-de-si é a unidade para a qual é a infinita unidade
das diferenças, mas a vida é apenas essa unidade mesma, de tal forma que não é
ao mesmo tempo para si mesma".24 Ou
seja, a diferença entre consciência-de-si e vida é afirmada sobre um fundo de
semelhanças.
Mas como Hegel compreende a vida e seu movimento, seu
ciclo? De maneira esquemática, podemos dizer que a vida é fundamentalmente
compreendida a partir da tensão entre a universalidade da substância que define
o vivente e a particularidade do indivíduo ou da multiplicidade diferenciadora
das formas viventes (espécies). Esta tensão entre unidade e indivíduo produz
uma forma de oposição que Hegel havia chamado, em Diferença sobre os
sistemas de Fichte e Schelling, de "o fator da vida" (Faktor des
Lebens), para descrever o motor de um movimento no interior da vida que visa a
superação de tal oposição. Por tender em direção a esta superação, a vida pode
aparecer como primeira figura da infinitude. Isto nos explica porque Hegel
havia dito, ao apresentar o conceito de infinitude no capítulo sobre o
entendimento, na Fenomenologia do espírito: "Essa infinitude simples
– ou o conceito absoluto – deve-se chamar a essência simples da vida, a lama do
mundo, o sangue universal".25Hegel
descreve assim o ciclo da vida:
Seu ciclo se encerra nos momentos seguintes. A
essência é a infinitude, como ser-superado de todas as diferenças [a vida é o
que retorna sempre a si na multiplicidade de diferenças do vivente], o puro
movimento de rotação, a quietude de si mesma como infinitude absolutamente
inquieta, a independência mesma em que se dissolvem as diferenças do movimento;
a essência simples do tempo que tem, nessa igualdade-consigo-mesma, a figura
sólida do espaço. Porém, nesse meio simples e universal, as diferenças também
estão como diferenças, pois essa fluidez universal (allgemeine Flüssigkeit) [da
vida como unidade] só possui sua natureza negativa enquanto é um superar das
mesmas, mas não pode superar as diferenças se essas não têm um subsistir.26
Este ciclo demonstra como há uma cisão (Entzweiung)
no interior da vida. Hegel chega a falar que a vida conhece apenas uma unidade
negativa absoluta (absolut negative Einheit) consigo mesma. Isto significa que,
por um lado, ela é substância universal que passa por todos os viventes. Daí o
uso importante de uma metáfora como "fluidez" que indica o que não
pode se estabilizar em uma determinidade fixa, o que tendencialmente se
manifesta como princípio de indeterminação. Mas, por outro, ela é tendência a
diferenciações cada vez mais visíveis que recebemformas independentes
(selbstständigen Gestalten) cada vez mais determinadas. Como vemos, há um
conflito interno à vida entre indeterminação e determinação. Conflito que faz
com que a posição da individualidade seja a divisão de uma fluidez
indiferenciada (unterschiedslosen Flüssigkeit) que, por sua vez, só pode ser
posta através da dissolução da própria individualidade. É pensando em tal
conflito que Hegel dirá:
A inadequação (Unangemessenheit) do animal à
universalidade [da vida] é sua doença original e o germe interno de sua morte.
A superação desta inadequação é ela mesma a execução deste destino [...] [já
que] na natureza, a universalidade só acede ao fenômeno desta maneira negativa
que consiste em superar a subjetividade.27
Hegel quer insistir que, na natureza, a vida só
pode alcançar a universalidade, esta fluidez fundamental, através da dissolução
da individualidade, daí porque o organismo morre de uma causa interna, ele não
pode se reconciliar com a universalidade. É por não ser capaz de reconciliar a
individualidade com o universal que a natureza é uma figura imperfeita do
Espírito. Ela chega a desenvolver uma certa reconciliação, ela também
imperfeita: o gênero (Gattung). Mas, do ponto de vista do gênero, todos os
indivíduos já estão mortos. Ou seja, a assunção de si como gênero apenas é uma
reconciliação que, mais uma vez, opera uma negação simples da individualidade.
Daí porque: "O objetivo da natureza é matar-se a si mesma e quebrar sua
casca, esta do imediato, do sensível, queimar-se como fênix para emergir desta
exterioridade rejuvenescida como espírito".28 O
que leva Hegel a afirmar, ao final, que a vida: "é o todo que se
desenvolve, que dissolve seu desenvolvimento e que se conserva simples nesse
movimento".29
Podemos mesmo dizer que a consciência-de-si será
capaz de experimentar este conflito presente no interior da vida, mas sem se
dissolver como individualidade. Ela terá a experiência da universalidade
negativa, da fluidez absoluta, mas tal experiência será um tremor diante da
morte que terá função formadora. No entanto, está é uma maneira mais nebulosa
de dizer que o movimento próprio à consciência-de-si já está, de certa forma,
presente na natureza. Um pouco como se o movimento que anima o meio no qual a
consciência-de-si age (a história) já estivesse em germe na natureza. O que não
poderia ser diferente para alguém que afirmou: "O espírito proveio
(hervorgegangen) da natureza".30 Um
provir que não o impede de dizer que o espírito estava, de certo modo, antes da
natureza (já que ele se confunde com seu movimento).
De maneira peculiar, Hegel está dizendo que entre
natureza e história não há uma completa ruptura, há apenas o aprofundamento
reflexivo de um movimento partilhado, o que complexifica as dicotomias modernas
entre natureza e liberdade.31 Movimento
marcado principalmente pelas noções de conflito e de luta. Não uma luta
darwiniana entre espécies, mas uma luta no interior de cada individualidade
biológica, no interior de cada singularidade natural, entre determinação e
indeterminação.32 Todo
o esforço de Hegel consiste em mostrar como a singularidade natural já é, desde
sempre, campo de trabalho do negativo, e não realidade que se determina de
maneira imanente. Por isso, a superação da singularidade natural é, no fundo, a
realização "natural" de seu destino.
Isto pode nos ajudar a compreender porque o
movimento do Espírito parece seguir de perto esta dissolução das determinidades
e manifestação da fluidez que anima a natureza, já que o Espírito é tanto sua
inscrição em uma figura finita quanto o desaparecimento incessante de tal
figuração.33 Gerard
Lebrun percebeu claramente esta natureza do Espírito ao afirmar: "Se somos
assegurados de que o progresso não é repetitivo, mas explicitador, é porque o
Espírito não se produz produzindo suas formações finitas mas, ao contrário, em
recusando-as uma após outra. Não é a potência dos impérios, mas sua morte que
dá à História 'razão'". Ou ainda: "O único tipo de devir que o
movimento do Conceito esposa nada tem em comum com a transição indiferente de
uma forma à outra. Ele só pode ser um devir que sanciona a instabilidade da
figura que vem de ser transgredida, um devir expressamente
nadificador".34 Por
sinal, não é por outra razão que tanto a vida quanto o espírito serão animados
pela mesma "fluidez universal", pela mesma "inquietude"
(Unruhe).
Por fim, devemos dizer que esta tensão no interior
das individualidades biológicas aparecerá de maneira reflexiva no movimento de
reconhecimento que orienta processos de socialização e individuação. O que nos
explica porque, no texto da Fenomenologia, as considerações sobre a
estrutura das dinâmicas sociais de reconhecimento são antecedidas pela
descrição do ciclo da vida. Se a vida é o primeiro objeto do desejo da
consciência-de-si, é porque a verdade do desejo, sua satisfação, só pode se dar
lá onde ele se confrontar com um objeto marcado pela fluidez universal. Ou
seja, se a verdade do desejo é realizar as aspirações universalizantes da
razão, é porque convergem para a noção hegeliana de universal experiências de
indeterminação. Neste sentido, voltemos os olhos para o desejo hegeliano.
O que realmente falta ao desejo?
Para Hegel, o desejo (Begierde) é a maneira através
da qual a consciência-de-si aparece em seu primeiro grau de desenvolvimento.
Neste sentido, ele é, ao mesmo tempo, modo de interação social e modo de
relação ao objeto. Além do desejo, Hegel apresenta, ao menos, outros dois
operadores reflexivos de determinação da consciência-de-si: o trabalho e a
linguagem. Estes três operadores tecem entre si articulações profundas, já que
o trabalho é "desejo refreado" e a linguagem obedece à mesma dinâmica
de relação à expressão que o trabalho.
Lembremos inicialmente como Hegel parece
vincular-se a uma longa tradição que remonta a Platão e compreende o desejo
como manifestação da falta. Vejamos, por exemplo, um trecho maior
da Enciclopédia. Lá, ao falar sobre o desejo, Hegel afirma:
O sujeito intui no objeto sua própria falta
(Mangel), sua própria unilateralidade – ele vê no objeto algo que pertence à
sua própria essência e que, no entanto, lhe falta. A consciência-de-si pode
suprimir esta contradição por não ser um ser, mas uma atividade absoluta.35
A colocação não poderia ser mais clara. O que move
o desejo é a falta que aparece intuída no objeto. Um objeto que, por isso, pode
se pôr como aquilo que determina a essencialidade do sujeito. Ter a sua
essência em um outro (o objeto) é uma contradição que a consciência pode
suprimir por não ser exatamente um ser, mas uma atividade, isto no sentido de
ser uma reflexão que, por ser posicional, toma a si mesma por objeto e, neste
mesmo movimento, assimila o objeto a si. Esta experiência da falta é tão
central para Hegel que ele chega a definir a especificidade do vivente
(Lebendiges) através da sua capacidade em sentir falta, em sentir esta
excitação (Erregung) que o leva à necessidade do movimento; assim como ele
definirá o sujeito como aquele que tem a capacidade de suportar (ertragen) a
contradição de si mesmo (Widerspruch seiner selbst) produzida por um desejo que
coloca a essência do sujeito no objeto. Hegel acredita que a falta é tão
definidora da condição de sujeito que ele chega a afirmar:
A falta da cadeira, quando ela tem três pés, está
em nós [pois é falta em relação ao conceito de cadeira]; mas a própria falta
está na vida, já que a vida a conhece como limitação, ainda que ela também
esteja superada. É pois um privilégio das naturezas superiores sentir dor;
quanto mais elevada a natureza, mais infeliz ela se sente. Os grandes homens
têm uma grande necessidade e o impulso (Trieb) a superá-la. Grandes ações vêm
apenas de profunda dor da alma (Gemütes); a origem do mal etc. tem aqui sua
dissolução.36
Mas dizer isto é ainda dizer muito pouco. Pois se o
desejo é falta e o objeto aparece como a determinação essencial desta falta,
então deveríamos dizer que, na consumação do objeto, a consciência encontra sua
satisfação. No entanto, não é isto o que ocorre:
O desejo e a certeza de si mesma alcançada na
satisfação do desejo [notemos esta articulação fundamental: a certeza de si
mesmo é estritamente vinculada aos modos de satisfação do desejo] são
condicionados pelo objeto, pois a satisfação ocorre através do suprimir desse
Outro, para que haja suprimir, esse Outro deve ser. A consciência-de-si não
pode assim suprimir o objeto através de sua relação negativa para com ele, pois
essa relação antes reproduz o objeto, assim como o desejo.37
A contradição encontra-se aqui na seguinte
operação: o desejo não é apenas uma função intencional ligada à satisfação da
necessidade animal, como se a falta fosse vinculada à positividade de um objeto
natural. Ele é operação de autoposição da consciência: através do desejo a
consciência procura se intuir no objeto, tomar a si mesma como objeto e este é
o verdadeiro motor da satisfação. Através do desejo, na verdade, a consciência
procura a si mesma. Até porque, devemos ter clareza a este respeito, a falta é
um modo de ser da consciência, modo de ser de uma consciência que insiste que
as determinações estão sempre em falta em relação ao ser.
Como sabemos, esta proposição do desejo como falta
foi, nas últimas décadas, objeto de críticas virulentas vindas principalmente
de autores como Gilles Deleuze e Félix Guattari. Seu alvo não era apenas a
apropriação do conceito hegeliano feita pela psicanálise lacaniana, mas também
a metafísica da negatividade presente no conceito hegeliano de desejo. Pois a
maneira com que a psicanálise procura socializar o
desejo produziria um desejo marcado pela negatividade, pela perda,
pelo conflito, desejo como falta que nos remete, afinal de contas, a Hegel. No
entanto, "Nada falta ao desejo", dirão os dois, "ele não está em
falta em relação ao seu objeto. Na verdade, é o sujeito que está em falta com o
desejo, ou é ao desejo que falta sujeito fixo; só há sujeito fixo graças à
repressão".38 Neste
caso, tratava-se de insistir que a afirmação do desejo como falta não poderia
ser outra coisa que fruto de uma ilusão metafísica a respeito da realidade do
negativo. Ilusão animada por uma teologia negativa que sequer tem medo de dizer
seu nome.
A este respeito, lembremos que há três maneiras de
compreender a proposição de que a essência do desejo é falta. Primeiro, a falta
pode ser simples manifestação da carência, da privação de um objeto determinado
da necessidade. Esta claramente não é a posição hegeliana, já que implicaria
uma naturalização de sistemas de necessidades estranha a uma filosofia que não
compreende a natureza como sistema fechado de leis.
Segundo, podemos dizer que a falta é um modo de ser
da consciência porque ela indica a transcendência do desejo em relação aos
objetos empíricos, seguindo aqui uma via aberta por Platão.
Sabemos como Platão faz Sócrates afirmar, em O
banquete: "Desejamos aquilo do qual somos desprovidos"39 ou
aquilo que não está presente ou aquilo que pessoalmente não sou. Daí porque
Eros é o intermediário entre dois contrários: ele manifesta a falta de coisas
belas e boas que impelem o desejo (epithumia), coisas a respeito das quais
tenho um certo saber. Ou seja, o objeto do desejo é aquilo que, ao mesmo tempo,
não tenho e está em mim. Este caráter intermediário entre presença e ausência
fica visível a partir do momento em que Eros é compreendido através da
perspectiva do amante (erastes), e não do amado (eromenos).
No entanto, esta falta que mobiliza o desejo não
está exatamente ligada à dimensão dos objetos sensíveis. Pois: "a beleza
que existe em tal ou tal corpo é irmã da beleza que reside em outro e, se
devemos perseguir o belo em sua forma sensível, seria uma insígnia desrazão não
julgar una e idêntica a beleza que reside em todos os corpos".40 Esta
desqualificação do sensível permite a abertura a uma série de asceses que nos
levará à "essência mesma do belo" para além do que é mortal e
corruptível. Uma essência cuja visão implicaria liberar o belo em sua pureza,
abrir espaço para sua manifestação sem misturas na unicidade de sua natureza
formal. Poderíamos mesmo afirmar que, nesta ascese: "a pessoa deixa sua
particularidade para trás",41 como
se fosse questão de negar a essencialidade do que é da ordem da natureza
mortal, isto em prol da essencialidade de algo que: "de alguma forma lhe
pertence, mas que não lhe é imediatamente disponível".42 Assim,
a negatividade do desejo seria, no fundo, manifestação intencional da
transcendência inesgotável do ser em relação à empiricidade.
É pensando nesta vertente que Deleuze e Guattari
desenvolvem sua crítica ao desejo como falta. Tudo se passaria como se Hegel se
apropriasse deste esquema de transcendência para colocá-lo em operação no
interior de uma certa teologia negativa onde não é mais a transcendência da
Idéia que produz a desqualificação de todo sensível, mas a "pura
negatividade" que só aparece através da reiteração infinita da
ultrapassagem da determinação finita sensível, do sacrifício infinito de uma
determinação finita que precisa continuar a desaparecer, permanecer
desaparecendo, a fim de que a negatividade tenha realidade.
No entanto, podemos dizer que não é essa a questão
que está em jogo na definição hegeliana do desejo em sua negatividade. Pois a
negatividade do desejo não vem exatamente da pressão negadora da
transcendência, como queria alguém como Kojève (no fundo, a referência maior de
Deleuze em sua leitura de Hegel).43 Por
sinal, este apelo irrestrito à transcendência seria estranho para um autor,
como Hegel, que compreende o saber absoluto como reconciliação com uma dimensão
renovada do empírico. A este respeito, basta lembrar como, ao falar sobre a
reconciliação produzida pelo saber absoluto, Hegel apresenta um julgamento
infinito (unendlichen Urteil) capaz de produzir a síntese da cisão entre
sujeito e objeto. Trata-se da afirmação: "o ser do eu é uma coisa (das
Sein des Ich ein Ding ist); e precisamente uma coisa sensível e imediata (ein
sinnliches unmittelbares Ding)". Dessa afirmação, segue-se um comentário:
"Este julgamento, tomado assim como imediatamente soa, é
carente-de-espírito, ou melhor, é a própria carência-de-espírito", pois,
se compreendemos a coisa sensível como uma predicação simples do eu, então o eu
desaparece na empiricidade da coisa – o predicado põe o sujeito: "mas
quanto ao seu conceito, é de fato o mais rico-de-espírito".44 Pois
seu conceito nos leva a uma recompreensão da dimensão do sensível para além da
sua domesticação pelas estruturas identitárias e finitas da estética
transcendental.
Na verdade, para entender o que Hegel tem em vista
na sua noção de desejo como falta, não devemos compreender a falta como
privação, como carência ou simplesmente como transcendência, mas
comomanifestação da infinitude. Esta infinitude pode ser ruim, se
a satisfação do desejo for vista como consumo reiterado de objetos que produzem
um gozo (Genuss) que é apenas submissão narcísica (ou "egoísta", se
quisermos usar um termo hegeliano) do outro ao Eu. Mas ela será
infinitude verdadeira quando se confrontar com objetos liberados de
determinações finitas.
Lembremos inicialmente que, para Hegel, a falta
aparece como modo de ser da consciência em um contexto histórico preciso.
Contexto marcado pela problematização do que serve de fundamento às formas de
vida da modernidade. Hegel compreende a modernidade como o momento histórico no
qual o espírito "perdeu" a imediatez da sua vida substancial, ou
seja, nada lhe aparece mais como substancialmente fundamentado em um poder
capaz de unificar as várias esferas sociais de valores.45 Daí
diagnósticos clássicos de época como: "[Nos tempos modernos] Não somente
está perdida para ele [o espírito] sua vida essencial; está também consciente
dessa perda e da finitude que é seu conteúdo. [Como o filho pródigo],
rejeitando os restos da comida, confessando sua abjeção e maldizendo-a, o
espírito agora exige da filosofia não tanto o saber do que ele é, quanto
resgatar por meio dela, aquela substancialidade e densidade do ser [que tinha
perdido]".46
Décadas depois de Hegel, a sociologia de Durkheim e
Max Weber constituirão quadros convergentes de caracterização da modernidade
como era própria a um certo sentimento subjetivo de indeterminação resultante
da perda de horizontes estáveis de socialização. A autonomização das esferas
sociais de valores na vida moderna, assim como a erosão da autoridade
tradicional sedimentada em costumes e hábitos ritualizados, teria produzido uma
perda de referências nos modos de estruturação das relações a si, uma
problematização sem volta da espontaneidade de sujeitos agentes.47 A
partir de então, o sujeito só pode aparecer como: "esta noite, este nada
vazio que contém tudo na simplicidade desta noite, uma riqueza de
representações, de imagens infinitamente múltiplas, nenhuma das quais lhe vem
precisamente ao espírito, ou que não existem como efetivamente presentes [...]
É esta noite que descobrimos quando olhamos um homem nos olhos, uma noite que
se torna terrível, é a noite do mundo que se avança diante de nós".48
No entanto, Hegel não está disposto a se contentar
com diagnósticos sócio-históricos. Ele quer fornecer o fundamento ontológico da
situação histórica própria à modernidade, como se tal perda de horizontes
estáveis não fosse apenas o resultado da contingência de processos históricos,
mas fosse a realização de um destino marcado com a necessidade do que tem
dignidade ontológica. Para tanto, Hegel precisa de uma noção de individualidade
como aquilo que é habitado por uma potência de indeterminação, como aquilo que
não se submete integralmente à determinação identitária da unidade sintética de
um Eu. A teoria do desejo como falta, ou ainda, como negatividade que
impulsiona o agir, forneceria a Hegel este fundamento ontológico procurado. Ou
seja, a falta aqui é, na verdade, o modo de descrição de uma potência de
indeterminação e de despersonalização que habita todo sujeito.
Por sua vez, esta potência de indeterminação é um
outro nome possível para aquilo que Hegel compreende por infinitude, já que o
infinito é o que demonstra a instabilidade e a inadequação de toda determinação
finita. O que não poderia ser diferente, pois, para Hegel, infinito é
aquilo que porta em si mesmo sua própria negação e que, ao invés de se
autodestruir, conserva-se em uma determinidade que nada mais é que a figura da
instabilidade de toda determinidade. Daí porque ele podia afirmar, em uma
frase-chave: "A infinitude, ou essa inquietação absoluta do puro
mover-se-a-si-mesmo, faz com que tudo o que é determinado de qualquer modo –
por exemplo, como ser – seja antes o contrário dessa determinidade".49
Percebe-se claramente aqui que o conceito de
infinitude é construído a partir da noção de contradição. Lembremos da
definição de contradição fornecida por Kant: "O objeto de um conceito que
se contradiz a si mesmo é nada, porque o conceito nada é o impossível, como,
por exemplo, a figura retilínea de dois lados (nihil negativum)".50 Ou
seja, a contradição é um objeto vazio sem conceito, já que não há representação
possível quando tenho duas proposições contrárias aplicadas ao mesmo objeto,
como no caso de uma figura que, ao mesmo tempo, é retilínea e tem dois lados.
Hegel não quer pensar uma figura retilínea de dois lados, mas quer insistir que
há objetos que só podem ser apreendidos através da aplicação de duas
proposições contrárias, de duas séries divergentes. Isto talvez nos demonstre
como a infinitude não é simplesmente uma estratégia astuta de desqualificação
do sensível, mas é o fundamento que permite a crítica da submissão do sensível
à gramática da finitude.
No entanto, como o sujeito é
essencialmente locus de manifestação da infinitude, podemos dizer que
o vocabulário da negatividade do desejo serve para salientar a natureza
de inadequação entre as expectativas de reconhecimento de sujeitos e as
possibilidades disponíveis de determinação social de si.51 Pois
se trata de afirmar que a positividade da realidade reificada com suas
representações finitas estabeleceu-se de maneira tão forte como
"representação natural do pensar" que apenas um esforço de negação
pode romper tal círculo de alienação. Ou seja, o vocabulário da negatividade
nada tem a ver com formas de julgamento resignado da vida, como se a vida
precisasse ser desvalorizada enquanto espaço da finitude, como quer Lebrun.52 Ao
contrário, ele é fruto da consciência do descompasso entre modos de
determinação da vida social e as potencialidades da vida que realizou
seu destino como Espírito.
De qualquer forma, Hegel acharia simplesmente
incorreta esta maneira tão própria a nós, contemporâneos do pós-estruturalismo,
de contrapor a negatividade do desejo à positividade de uma potência que se
expressa de maneira imanente, tal como a relação entre a substância spinozista
e seus modos. Pois, de uma certa perspectiva, o desejo é sempre destrutivo (ele
sempre afirma sua inadequação em relação às determinações finitas) e, de outra,
ele sempre é produtivo (sua verdade é afirmar-se como vontade livre que
constitui quadros institucionais para seu reconhecimento através da relações de
trabalho e linguagem). Hegel era tão cônscio dessa imbricação entre
negatividade e produtividade que, ao falar da necessidade do terror
revolucionário enquanto experiência histórica de internalização da negatividade
que devasta toda determinação fenomenal, escreverá:
Mas, por isso mesmo, a vontade universal forma
imediatamente uma unidade com a consciência-de-si, ou seja, é o puramente
positivo porque é o puramente negativo; e a morte sem sentido, a negatividade
do Si não-preenchido, transforma-se no conceito interior, em absoluta positividade.53
O caráter formador do "puro terror do
negativo"
Este é o pano de fundo adequado para a reflexão
sobre a confrontação com a morte no trajeto de formação da consciência-de-si.
Notemos, inicialmente, uma conseqüência maior. Se é verdade que Hegel é animado
por uma teoria do desejo dessa natureza, então o conflito produzido pelo
desejo, conflito que aparece enquanto motor da DSE, não pode ser a mera colisão
entre sistemas particulares de interesses de duas consciências distintas, como
querem comentadores como Terry Pinkard e Jürgen Habermas.54 Conflito
através do qual Eu procuro dominar o outro através da submissão do seu sistema
de valoração e interesse à perspectiva própria ao meu sistema, onde Eu procuro
submeter o desejo do outro ao meu desejo. Ao contrário, se Hegel pode afirmar
que a formação para a vontade livre e universal passa pela submissão a um
senhor, é porque este senhor não pode simplesmente representar uma outra
determinação particular de interesse.
Se voltarmos os olhos à DSE, veremos Hegel
insistindo que, após a luta por reconhecimento, a essencialidade do escravo
parece estar depositada no senhor. É ele quem domina o seu fazer consumindo o
objeto de seu trabalho. O escravo vê assim seu fazer como algo estranho. No
entanto, Hegel insiste que este estranhamento pode significar elevação para
além da particularidade, já que: "Enquanto o escravo trabalha para o senhor,
ou seja, não no interesse exclusivo da sua própria singularidade, seu desejo
recebe esta amplitude que consiste em não ser apenas o desejo de um este, mas
de conter em si o desejo de um outro".55 Ter
seu desejo vinculado ao desejo de um outro, entretanto, não nos fornece a
universalidade do reconhecimento almejado pela consciência. Para que esse
vínculo não seja simples submissão, faz-se necessário que esse outro tenha algo
da universalidade incondicional do que é essencial, que ele seja um
"senhor absoluto", cuja internalização me leva a ser reconhecido para
além de todo e qualquer contexto. É tendo esse problema em vista que devemos
interpretar a afirmação central:
Só mediante o pôr a vida em risco, a liberdade se
conquista e se prova que a essência da consciência-de-si não é o ser, nem o
modo imediato como ela surge, nem o seu submergir-se na expansão da vida, mas
que nada há para a consciência que não seja para ela momento evanescente
(verschwindendes Moment); que ela é somente puro ser-para-si. O indivíduo que
não arriscou a vida pode ser bem reconhecido como pessoa (Person), mas não
alcançou a verdade desse reconhecimento como uma consciência-de-si
independente.56
Se a confrontação com a morte é condição para a
conquista da liberdade, é porque a morte é figura privilegiada desta
universalidade incondicional e absoluta que, por ser incondicional e absoluta,
manifesta-se como negação de tudo o que é condicionado e finito. Devemos levar
isso em conta quando encontramos Hegel dizendo:
A submissão (Unterwerfung) do egoísmo do escravo
forma o início da verdadeira liberdade dos homens. A dissolução da
singularidade da vontade, o sentimento de nulidade do egoísmo, o hábito da
obediência (Gehorsams) é um momento necessário da formação de todo homem. Sem
ter a experiência deste cultivo (Zucht) que quebra a vontade própria
(Eigenwillen), ninguém advém livre, racional e apto a comandar. E para advir
livre, para adquirir a aptidão de se auto-governar, todos os povos tiveram que
passar pelo cultivo severo da submissão a um senhor.57
Afirmações desta natureza servem a vários
mal-entendidos. Hegel não está dizendo que a liberdade é apenas o nome que
damos para uma vontade construída a partir da internalização de "dispositivos
disciplinares" travestidos de práticas de autocontrole. Não é qualquer
submissão a um senhor que produz a liberdade, mas apenas a um senhor que seja
capaz de realizar exigências incondicionais de universalidade. Isto nos explica
porque, para Hegel, as grandes individualidades capazes de submeter um povo
produzem, necessariamente, o sentimento de que o trabalho do Espírito é sem
medida comum com toda e qualquer política finita, com todo cálculo utilitarista
baseado em "meu" sistema de interesses egoístas. Por sinal, a maior
de todas as ilusões consiste exatamente em ver na crítica hegeliana do egoísmo
uma estratégia astuta de esvaziamento do particular. Hegel pode criticar o
egoísmo porque não há nenhuma individualidade neste "ego", já que não
há nada de individual no interior de um sistema de interesses construído, na
verdade, a partir de identificações e internalização de princípios de conduta
vindos de uma outra consciência determinada.58 Por
isso, a "dissolução da singularidade da vontade" pode aparecer como
"liberação".
Lebrun serve-se dessas características da filosofia
hegeliana para afirmar que a formação da consciência-de-si é apenas a
dissolução de um indivíduo definido como o que se anula, renúncia incessante de
si, ascese permanente. Pois: "ganhar uma determinação acaba sempre por ser
renúncia a uma diferença que me individualizava, advir um pouco mais meu ser
verdadeiro na medida em que sou um pouco menos meu ego".59 Neste
sentido, tremer diante do mestre absoluto seria tomar consciência da impotência
de princípio que representa a singularidade natural. Como se a liberação
hegeliana fosse um passe de mágica no qual o sentimento de fraqueza se
transforma em legitimação da incapacidade de resistir. Assim: "em troca de
seus sofrimentos, é o gozo do universal que se oferece à consciência – belo
presente ...".60 Não
estamos muito longe de Deleuze vendo a dialética hegeliana como "idéia do
valor do sofrimento e da tristeza, valorização das 'paixões tristes' como
princípio prático que se manifesta na cisão, no dilaceramento".61
No entanto, podemos fornecer uma interpretação
diferente. Basta estarmos mais atentos para o sentido que Hegel dá a esta
despossessão de si produzida pela internalização da morte como senhor absoluto.
Neste contexto, a morte não é destruição simples da consciência, não é um
simples despedaçar-se (zugrunde gehen), mas é modo de ir ao fundamento (zu
Grund gehen). Pois a confrontação com a morte é experiência fenomenológica que
visa exprimir o acesso ao caráter inicialmente indeterminado do fundamento, que
visa exprimir como: "A essência, enquanto se determina como fundamento,
determina-se como o não-determinado (Nichtbestimmte) e é apenas a superação
(Aufheben) de seu ser determinado (Bestimmtseins) que é seu determinar".62 O
que pode ser entendido da seguinte maneira: a indeterminação do fundamento vem do
fato de ele servir de substrato comum entre determinações opostas, daí porque
Hegel poderá afirmar que o fundamento implica a unidade entre a identidade e a
diferença (die Einheit der Identität und des Unterschiedes). Mas sendo o Eu o
princípio sintético que fornece o fundamento da experiência, assim como o
princípio de ligação e unidade que determina o modo de articulação entre o
fundamento e aquilo que ele funda, então pensar a verdadeira essência do
fundamento como o que tem seu ser em um outro (sein Sein in einen Anderen hat)
exige a confrontação com um estado de diferenças não submetidas à forma do Eu.63
Demoremo-nos um pouco mais neste ponto. Sabemos que
fundar é determinar o existente através da sua relação a um padrão que me
permite orientar no pensamento. Por exemplo, ao mobilizar estruturas
categoriais como a causalidade, a modalidade para assegurar a inteligibilidade
dos fenômenos, determino a forma do existente. A partir deste recurso à forma
como fundamento, posso garantir o critério do verdadeiro e do falso, do correto
e do incorreto, do adequado e do inadequado. Mas a aplicação de todas estas
estruturas aos fenômenos depende de uma decisão prévia e tácita sobre
princípios lógicos gerais de ligação e unidade capazes de constituir objetos da
experiência e fundar proposições de identidade e diferença. Esses princípios de
ligação (Verbindung) e unidade são derivados do Eu como unidade sintética de
apercepções, que aparece assim como o verdadeiro fundamento das determinações.
No entanto, a problematização de tais princípios é o verdadeiro objeto da
dialética. Por exemplo, quando Hegel constrói um witz ao dizer que,
para a consciência, "o ser tem a significação do seu" (das Sein die
Bedeutung das Seinen hat),64 ele
tem em vista o fato de que ser objeto para a consciência significa
estruturar-se a partir de um princípio interno de ligação e unidade que é modo
de a consciência apropriar-se do mundo, constituir o mundo a partir de sua
imagem, o que permite a Hegel ignorar a relevância das distinções kantianas
entre receptividade e espontaneidade.
A dialética precisa, pois, aceder a um fundamento
não mais dependente da forma auto-idêntica do Eu, o que é possível através da
superação dos modos naturalizados de determinação, através da fragilização das
imagens de mundo que orientam e constituem nosso campo estruturado de
experiências. Tal fragilização é descrita fenomenologicamente por Hegel através
da angústia e da confrontação com a morte.
Vemos assim como a confrontação com a morte permite
à consciência-de-si compreender o Espírito como aquilo que se expressa na
multiplicidade de suas determinações fragilizando-as todas, levando-as a confrontar-se
com uma potência do pré-pessoal e do indeterminado que nos permite, inclusive,
recompreender o que vem a ser a diferença. A diferença não será aquilo que
determina a distinção entre entidades conceitualmente articuladas, como Deleuze
imputa a Hegel. A diferença em Hegel é esta potência interna da in-diferença
que corrói toda determinação. Ela será esta expressão do ser que nos leva a
afirmar, com Scott Fitzgerald, que: "toda vida é um processo de
demolição". Demolição que ocorre quando desvelamos esta "franja de
indeterminação da qual goza todo indivíduo".65 Não
se trata exatamente de um ganho de determinação e positividade, mas da assunção
de um risco vinculado à confrontação com aquilo que se coloca enquanto
puramente indeterminado. Nestas condições, submeter-se a um Senhor absoluto que
dissolve tudo aquilo que parecia fixo e determinado nada tem a ver com uma
dinâmica psicológica da resignação, do ressentimento ou da necessidade da
repressão.
A determinação pelo trabalho
Para finalizar, devemos comentar o ponto essencial
que irá estabilizar esta dialética. Pois a angústia sentida pela consciência
escrava não fica apenas em uma:
universal dissolução em geral, mas ela se
implementa efetivamente no servir (Dienen). Servindo, suprime (hebt) em todos
os momentos tal aderência ao Dasein natural e trabalhando-o, o elimina.
Mas o sentimento da potência absoluta em geral, e em particular o do serviço, é
apenas a dissolução em si e embora o temor do senhor seja, sem dúvida, o início
da sabedoria, a consciência aí é para ela mesma, mas não é ainda o ser para-si;
ela porém encontra-se a si mesma por meio do trabalho.66
Hegel fará então uma gradação extremamente
significativa que diz respeito ao agir da consciência nas suas potencialidades
expressivas. Hegel fala do serviço (Dienen), do trabalho (Arbeiten) e do formar
(Formieren). Esta tríade marca uma realização progressiva das possibilidades de
autoposição da consciência no objeto do seu agir. O serviço é apenas a
dissolução em si (Auflösung an sich) no sentido da completa alienação de si no
interior do agir, que aparece como puro agir-para-um-outro e como-um-outro. O trabalho
implica uma autoposição reflexiva de si. No entanto, sabemos que Hegel não
opera com uma noção expressivista de trabalho que veria sua realização mais
perfeita em uma certa compreensão do fazer estético como manifestação das
capacidades expressivas dos sujeitos. A consciência que trabalha não expressa a
positividade de seus afetos em um objeto que circulará no tecido social. O
trabalho não é a simples tradução da interioridade na exterioridade. De uma
certa forma, a categoria hegeliana de trabalho é inicialmente uma defesa contra
a angústia diante da negatividade da morte ou, ainda, uma superação dialética
da angústia, já que ele é autoposição de uma subjetividade que sentiu o
desaparecer de todo vínculo imediato ao Dasein natural, que sentiu o
tremor da dissolução de si. Lembremos desta afirmação central de Hegel:
O trabalho é desejo refreado (gehemmte Begierde),
um desvanecer contido, ou seja, o trabalho forma. A relação negativa para com o
objeto toma a forma do objeto e permanece, porque justamente o objeto tem
independência para o trabalhador. Esse meio-termo negativo ou agir formativo é,
ao mesmo tempo, a singularidade, ou o puro-ser-para-si da consciência que agora
no trabalho se transfere para fora de si no elemento do permanecer; a
consciência trabalhadora chega assim à intuição do ser independente como
intuição de si mesma [...] no formar da coisa, torna-se objeto para o escravo
sua própria negatividade.67
Por refrear o impulso destrutivo do desejo em seu
consumo do objeto, o trabalho forma, no sentido de permitir a auto-objetivação
da estrutura da consciência-de-si em um objeto que é sua duplicação. Sua função
será, pois, realizar, ainda que de maneira imperfeita, o que o desejo não era
capaz de fazer, ou seja, permitir a autoposição da consciência-de-si em suas
exigências de universalidade, já que o trabalho está organicamente vinculado a
modos de interação social e de reconhecimento.
O giro dialético consiste em dizer que a alienação
no trabalho, a confrontação tanto com o agir enquanto uma essência estranha,
enquanto agir para-um-Outro absoluto, quanto com o objeto enquanto aquilo que
resiste ao meu projeto (experiência de resistência que será fundamental para
alguém como Adorno desenvolver a idéia de dialética como primado do
objeto) tem caráter formador por abrir a consciência à experiência de uma alteridade
interna como momento fundamental para a posição da identidade. Daí porque Hegel
afirma que tanto o medo quanto o formar são dois momentos necessários para este
modo de reflexão que é o trabalho. Hegel não teme afirmar que o formar sem o
medo absoluto fornece apenas um sentido vazio, pois sua forma ou negatividade
não é "a negatividade em si" (Negativität an sich). Através do
trabalho, o lugar do sujeito como fundamento pode ser compreendido como negação
em si: conseqüência necessária de uma filosofia do sujeito onde
"sujeito" não é mais do que o nome do caráter negativo do
fundamento.
Afirmar que há um caráter negativo do fundamento
significa, entre outras coisas, que a relação ao existente não é a repetição do
que está potencialmente posto no fundamento, mas que a própria determinação do
existente não pode mais ser pensada a partir do paradigma da subsunção simples
do caso à norma. Ela exige compreender que não há determinação completa no
sentido de identidade completa entre a determinação e o fundamento. É isto
que a consciência-de-si descobrirá pelas vias do trabalho.
Notemos, por fim, que temos uma explicação para o
fato de, na Fenomenologia do Espírito, o trabalho não nos colocar no
caminho da "institucionalização da identidade do Eu".68 Ou
seja, contrariando o que poderíamos esperar, o trabalho não abre uma dinâmica de
reconhecimento que se realizará na regulação jurídica das minhas relações com o
outro através da assunção de meus direitos como sujeito que colabora com a
riqueza (Vermögen) social. Ou ainda, ele faz isto, mas à condição de
recomprendermos completamente o que entendíamos por "identidade",
"direitos", "sujeito". Isto porque Hegel está mais
interessado no fato de o trabalho aparecer como modo de posição de uma
negatividade com a qual o sujeito se confrontou ao ir em direção a uma potência
de indeterminação cuja assunção é condição para a consciência-de-si "viver
no universal". Daí podemos derivar o problema maior da modernidade, ao
menos segundo Hegel; problema este que está na base da sua filosofia do
direito, a saber, como viabilizar o reconhecimento institucional de sujeitos
pensados enquanto modos singulares de confrontação com o que se oferece como
indeterminado? Pois não é a indeterminação que produz sofrimento social, mas a
incapacidade de as estruturas institucionais e os processos de interação social
reconhecerem sua realidade fundadora da condição existencial de todo e qualquer
sujeito. Se tais estruturas forem capazes de fornecer o delineamento de
processos de reconhecimento da potência de indeterminação que habita todo
sujeito, então talvez possamos encontrar o caminho para recuperar um conceito
renovado de amor enquanto horizonte regulador de práticas de interação social.
Mas, de uma maneira que ainda não está clara, este amor deverá portar
experiências de despersonalização e infinitude que Hegel vincula inicialmente à
confrontação com a morte. Por isso, não seria apenas licença poética dizer,
parafraseando Fassbinder, que ele é a promessa de um amor mais frio que a
morte.
Referências
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Artigo recebido em dezembro de 2007 e aprovado em
março de 2008.
1 Este
artigo é o desenvolvimento complementar de outro artigo do autor: "A
teoria das pulsões como ontologia negativa" (Revista Discurso, n. 36). Lá,
foi questão de mostrar como a teoria psicanalítica das pulsões (em especial em
sua versão lacaniana) era solidária de uma reflexão ontológica próxima àquilo
que podemos encontrar ao analisarmos os usos hegelianos do conceito de
negatividade. Aqui, trata-se de explorar tal via mostrando as relações
profundas entre negatividade, universalidade e indeterminação em Hegel.
2 HEGEL. Fenomenologia do Espírito, p. 62. Todas as traduções dos textos hegelianos foram corrigidas quando julgado por mim necessário.
3 A este respeito, por exemplo, Habermas, falará: "de um espírito que arrasta para dentro do sorvo da sua absoluta auto-referência as diversas contradições atuais apenas para fazê-las perder o seu caráter de realidade, para transformá-las no modus da transparência fantasmagórica de um passado recordado – e para lhes tirar toda a seriedade" (HABERMAS. O discurso filosófico da modernidade, p. 60).
4 ADORNO. Negative Dialektik, p. 323 (tradução modificada).
5 HEGEL. Grundlinien der Philosophie des Recht, § 7.
6 Idem, § 6.
7 Ver DELEUZE. Nietzsche et la philosophie; assim como LEBRUN. L' envers de la dialectique; ambas leituras que visam, cada uma a sua maneira, confrontar Hegel com temáticas da crítica nietzscheana da moral. Agradeço a Ernani Chaves que me revelou a profunda semelhança estrutural entre a crítica de ambos a Hegel.
8 Não deixa de ser desprovido de interesse lembrar como Deleuze está próximo de Hegel nesta maneira de compreender a morte como potência da indeterminação, o mesmo Deleuze para quem a morte é: "um estado de diferenças livres que não são mais submetidas à forma que lhes era dada por um Eu, que se desenvolve em uma figura que exclui minha própria coerência ao mesmo tempo que a coerência de uma identidade qualquer. Há sempre um 'morre-se' mais profundo do que um 'eu morro'" (DELEUZE. Différence et répétition. 5e éd. Paris: PUF, 2000. p. 148).
9 HONNETH. Lutte pour reconnaissance, p. 30.
10 HONNETH. Sofrimento da indeterminação, p. 102.
11 HABERMAS. Verdade e justificação, p. 195.
12 WILLIAMS. Hegel's ethics of recognition, p. 47.
13 SIEP. Der Kampf um Anerkennung. Zur Auseinandersetzung Hegels mit Hobbes in den Jenaer Schriften. In:Hegel-Studien, p. 194.
14 HABERMAS. Verdade e justificação, p. 200. Sendo que a mais justamente conhecida e sistemática destas tentativas é aquela empreendida por Axel Honneth em seu Luta por reconhecimento (op. cit.).
15 Lembremos que a Fenomenologia do Espírito apresenta uma crítica explícita ao amor como princípio de relações intersubjetivas através da figura do "Prazer e da necessidade". Aqui, encontramos também a exigência de: "sich als diese Eizelne in einem andern oder ein anderes Selbstbewustssein als sich auzuschauen". No entanto, tal intuição só pode se realizar através da submissão do outro à essência negativa de um gozo que em nada se aquieta. Não se trata de fazer alguma confusão entre 'amor' e 'gozo', mas de lembrar que a tematização hegeliana do hedonismo pode nos fornecer um modelo para questionarmos a possibilidade de realização social de um conceito de amor fundado no paradigma comunicacional de relações de mútua dependência e complementaridade.
16 Isto pode nos explicar porque alguém como Jacques Lacan, leitor precoce da DSE, desenvolverá um conceito de amor que não pode mais ser compreendido como figura de uma intersubjetividade primária, mas que exige a mobilização de conceitos como "destituição subjetiva". A este respeito, remeto ao meu SAFATLE. A paixão do negativo, p. 209-220. Talvez este seria o único caminho para recuperar um conceito de amor que faça jus à experiência hegeliana de negatividade.
17 HEGEL. Fenomenologia do Espírito, p. 120.
18 PIPPIN. Hegel's idealism: The satisfaction of self-consciousness, p. 148.
19 HEGEL. Enciclopédia das ciências filosóficas, v. 3, § 469.
20 ADORNO. Negative Dialektik, p. 216.
21 Idem, p. 221.
22 HEGEL. Diferença dos sistemas filosóficos de Fichte e Schelling, p. 38.
23 Como bem viu Hyppolite: "a pura vida supera essa separação [produzida pelo primado do entendimento] ou tal aparência de separação; é a unidade concreta que o Hegel dos trabalhos de juventude ainda não consegue exprimir sob forma dialética" (HYPPOLITE. Gênese e estrutura da Fenomenologia do Espírito, p. 162). Ou ainda: "Contra a encarnação autoritária da razão centrada no sujeito, Hegel apresenta o poder unificador de uma intersubjetividade que se manifesta sob o título de amor e vida" (HABERMAS. O discurso filosófico da modernidade, p. 39).
24 HEGEL. Fenomenologia de Espírito, p. 121.
25 Idem, p. 115.
26 Idem, p. 121.
27 HEGEL. Enciclopédia, v. 1, § 375.
28 Idem, § 376.
29 HEGEL. Fenomenologia do Espírito, p. 123.
30 HEGEL. Enciclopédia. v. 1, § 376.
31 Neste sentido, não é possível aceitar de maneira completa afirmações como: "a realização da liberdade ocorre quando a natureza (aqui, a sociedade que teve início numa forma tosca e primitiva) é remodelada segundo as demandas da razão" (TAYLOR. Hegel e a sociedade moderna, p. 108). De certo modo, poderíamos mesmo dizer o inverso: a fluidez absoluta da natureza oferece a base para a remodelação da razão e de sua inquietude. Insistir em "remodelagem" é apenas uma maneira mais cuidadosa de continuar pensando a relação entre natureza e história a partir de uma certa ruptura que retira toda dignidade ontológica da primeira. Melhor seria dizer, como Malabou, que: "a passagem da natureza ao espírito não se produz como uma ultrapassagem, mas comoduplicação (redoublement), processo através do qual o espírito se constitui como segunda natureza. Esta duplicação reflexiva é, de uma certa forma, o 'estádio do espelho' do espírito, no qual se constitui a primeira forma de sua identidade" (MALABOU. L'avenir de Hegel, p. 43).
32 À sua maneira, encontraremos o mesmo tipo de conflito entre determinação e indeterminação nas individualidades biológicas em Freud através de sua teoria das pulsões de vida e de morte, teoria que, por dar conta de processos que se situam no limite entre o somático e o psíquico, também se refere tanto à natureza quanto à história.
33 O que não poderia ser diferente se aceitarmos que: "O processo dialético é plástico na medida em que articula no seu curso a imobilidade plena (a fixidez), a vacuidade (a dissolução) e a vitalidade do todo como reconciliação destes dois extremos, conjugação da resistência (Widerstand) e da fluidez (Flüssigkeit)" (MALABOU. L'avenir de Hegel, p. 26).
34 LEBRUN. L'envers de la dialectique, p. 28-29.
35 HEGEL. Enciclopédia. v. 3, § 427.
36 idem, § 359.
37 HEGEL. Fenomenologia do Espírito, p. 124.
38 DELEUZE; GUATTARI. L'anti-Œdipe, p. 34.
39 PLATÃO. Le banquet, 200a.
40 Idem, 210b.
41 LEAR. Eros and Unknowing: the psychoanalytic significance of Plato's Symposium. In: Open minded, p. 163. Esta desqualificação do sensível e da particularidade leva Lebrun a afirmar que: "o adestramento socrático submete o indivíduo a uma autoridade que é apenas a negação simples de todas as pulsões" (LEBRUN. L'envers de la dialectique, p. 128).
42 MORTLEY. Désir et différence dans la tradition platonicienne, p. 81.
43 Como lembrou muito bem Paulo Arantes em ARANTES. Um Hegel errado mas vivo. Revista Ide.
44 HEGEL. Fenomenologia do Espírito, p. 209.
45 De fato, esta perda deve ser posta entre parênteses porque, de certa maneira, a consciência perdeu aquilo que ela nunca teve. Por isso, Hegel pode afirmar, a respeito da eticidade: "Mas a consciência-de-si que de início só era espírito imediatamente e segundo o conceito saiu (herausgetreten) dessa felicidade que consiste em ter alcançado seu destino e em viver nele, ou então: ainda não alcançou sua felicidade. Pode-se dizer igualmente uma coisa ou outra. A razão precisa (muss) sair dessa felicidade, pois somente em si, ou imediatamente a vida de um povo livre é a eticidade real" (HEGEL. Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 224). Ou seja, o que Hegel diz é: a consciência perdeu sua felicidade e nunca a alcançou, até porque, perder e nunca ter tido é a mesma coisa. Além do mais, ela precisa perder aquilo que nunca teve. Isto tudo apenas indica o estatuto ilusório da imediaticidade própria à eticidade em sua primeira manifestação. Pois a consciência ainda não sabe que é "pura singularidade para si", ou seja, ela ainda não é reconhecida enquanto consciência-de-si.
46 HEGEL. Fenomenologia do Espírito, p. 24.
47 E não é por acaso que todos os dois pensem tais fenômenos através da modificação do sentido sociológico da confrontação com a morte. A este respeito basta lembrar de Max Weber, para quem: "a vida individual do homem civilizado, colocada dentro de um progresso infinito, segundo seu próprio sentido imanente, jamais deveria chegar ao fim; pois há sempre um passo à frente do lugar onde estamos, na marcha do progresso. E nenhum homem que morre alcança o cume que está no infinito. Abraão, ou algum camponês do passado, morreu 'velho e saciado de vida', por que estava no ciclo orgânico da vida [...] O homem civilizado, colocado no meio do enriquecimento continuado da cultura pelas idéias, conhecimento e problemas, pode 'cansar-se da vida', mas não 'saciar-se dela'" (WEBER. Ensaios de sociologia, p. 166).
48 HEGEL. JenaerPhilosophie, p. 13.
49 HEGEL. Fenomenologia do Espírito, p. 116.
50 KANT. Crítica da razão pura, B348.
51 Monique David-Ménard, em um texto maior sobre a crítica à noção de desejo como falta, lembra como a psicanálise é tributária da idéia de que: "há uma verdade na experiência de uma inadequação do objeto pulsional à satisfação pulsional que um sujeito persegue". Isto obrigaria a filosofia a repensar: "a idéia medieval de que a verdade é a adequação do conceito e do objeto, assim como a idéia spinozista de que um pensamento verdadeiro desdobra suas determinações de maneira imanente e na univocidade e que não há verdade possível da inadequação" (DAVID-MÈNARD. Deleuze et la psychanalyse, p. 22). No entanto, esta inadequação não poderia ser pensada a partir de uma "lógica da negação" aplicada ao desejo. Pois esta lógica seria dependente do quadro de oposição entre o universal e o particular, onde o particular aparece como negativo que excede o universal. Mas poderíamos dizer que, ao menos no caso de Hegel, como se trata de pensar um conceito de infinitude ou de determinação infinita, a lógica da negação não é uma lógica da oposição ou da contrariedade, mas da negação determinada (para uma diferença entre oposição e negação determinada, remeto ao meu SAFATLE. Linguagem e negação: sobre as relações entre ontologia e pragmática em Hegel. Revista Dois Pontos, p. 124-167).
52 Ver: LEBRUN. L'envers de la dialectique, p. 222.
53 HEGEL. Fenomenologia do Espírito II, p. 100.
54 Ver PINKARD. Hegel's phenomenology: The sociality of reason; e HABERMAS. Caminhos da destranscendentalização. In: Verdade e justificação.
55 HEGEL. Enciclopédia das ciências filosóficas, v. 3, § 433.
56 HEGEL. Fenomenologia do Espírito, p. 128-129.
57 HEGEL. Enciclopédia das ciências filosóficas, § 435.
58 Esta intuição hegeliana recebeu uma confirmação material através da psicanálise lacaniana e sua descrição da gênese do Eu através da internalização da imagem de um outro que tem a função de tipo ideal de conduta e de orientação do desejo. A este respeito, remeto ao capítulo "Desejo sem imagens" (In: SAFATLE. Lacan).
59 LEBRUN. L'envers de la dialectique, p. 100.
60 Idem, p. 211.
61 DELEUZE. Nietzsche et la philosophie, p. 224.
62 HEGEL. Wissenschaft der Logik II, p. 81.
63 Longuenesse compreendeu isto bem ao afirmar que, para Hegel: "O fundamento é o herdeiro da unidade de apercepção da Crítica da razão pura" (LONGUENESSE. Hegel et la critique de la métaphysique, p. 111).
64 HEGEL. Fenomenologia do Espírito, p. 159.
65 DELEUZE. Différence et répétition, p. 331.
66 HEGEL. Fenomenologia do Espírito, p. 132.
67 Idem, p. 132.
68 HABERMAS. Trabalho e interação. In: ______. Técnica e ciência como ideologia, p. 196.
2 HEGEL. Fenomenologia do Espírito, p. 62. Todas as traduções dos textos hegelianos foram corrigidas quando julgado por mim necessário.
3 A este respeito, por exemplo, Habermas, falará: "de um espírito que arrasta para dentro do sorvo da sua absoluta auto-referência as diversas contradições atuais apenas para fazê-las perder o seu caráter de realidade, para transformá-las no modus da transparência fantasmagórica de um passado recordado – e para lhes tirar toda a seriedade" (HABERMAS. O discurso filosófico da modernidade, p. 60).
4 ADORNO. Negative Dialektik, p. 323 (tradução modificada).
5 HEGEL. Grundlinien der Philosophie des Recht, § 7.
6 Idem, § 6.
7 Ver DELEUZE. Nietzsche et la philosophie; assim como LEBRUN. L' envers de la dialectique; ambas leituras que visam, cada uma a sua maneira, confrontar Hegel com temáticas da crítica nietzscheana da moral. Agradeço a Ernani Chaves que me revelou a profunda semelhança estrutural entre a crítica de ambos a Hegel.
8 Não deixa de ser desprovido de interesse lembrar como Deleuze está próximo de Hegel nesta maneira de compreender a morte como potência da indeterminação, o mesmo Deleuze para quem a morte é: "um estado de diferenças livres que não são mais submetidas à forma que lhes era dada por um Eu, que se desenvolve em uma figura que exclui minha própria coerência ao mesmo tempo que a coerência de uma identidade qualquer. Há sempre um 'morre-se' mais profundo do que um 'eu morro'" (DELEUZE. Différence et répétition. 5e éd. Paris: PUF, 2000. p. 148).
9 HONNETH. Lutte pour reconnaissance, p. 30.
10 HONNETH. Sofrimento da indeterminação, p. 102.
11 HABERMAS. Verdade e justificação, p. 195.
12 WILLIAMS. Hegel's ethics of recognition, p. 47.
13 SIEP. Der Kampf um Anerkennung. Zur Auseinandersetzung Hegels mit Hobbes in den Jenaer Schriften. In:Hegel-Studien, p. 194.
14 HABERMAS. Verdade e justificação, p. 200. Sendo que a mais justamente conhecida e sistemática destas tentativas é aquela empreendida por Axel Honneth em seu Luta por reconhecimento (op. cit.).
15 Lembremos que a Fenomenologia do Espírito apresenta uma crítica explícita ao amor como princípio de relações intersubjetivas através da figura do "Prazer e da necessidade". Aqui, encontramos também a exigência de: "sich als diese Eizelne in einem andern oder ein anderes Selbstbewustssein als sich auzuschauen". No entanto, tal intuição só pode se realizar através da submissão do outro à essência negativa de um gozo que em nada se aquieta. Não se trata de fazer alguma confusão entre 'amor' e 'gozo', mas de lembrar que a tematização hegeliana do hedonismo pode nos fornecer um modelo para questionarmos a possibilidade de realização social de um conceito de amor fundado no paradigma comunicacional de relações de mútua dependência e complementaridade.
16 Isto pode nos explicar porque alguém como Jacques Lacan, leitor precoce da DSE, desenvolverá um conceito de amor que não pode mais ser compreendido como figura de uma intersubjetividade primária, mas que exige a mobilização de conceitos como "destituição subjetiva". A este respeito, remeto ao meu SAFATLE. A paixão do negativo, p. 209-220. Talvez este seria o único caminho para recuperar um conceito de amor que faça jus à experiência hegeliana de negatividade.
17 HEGEL. Fenomenologia do Espírito, p. 120.
18 PIPPIN. Hegel's idealism: The satisfaction of self-consciousness, p. 148.
19 HEGEL. Enciclopédia das ciências filosóficas, v. 3, § 469.
20 ADORNO. Negative Dialektik, p. 216.
21 Idem, p. 221.
22 HEGEL. Diferença dos sistemas filosóficos de Fichte e Schelling, p. 38.
23 Como bem viu Hyppolite: "a pura vida supera essa separação [produzida pelo primado do entendimento] ou tal aparência de separação; é a unidade concreta que o Hegel dos trabalhos de juventude ainda não consegue exprimir sob forma dialética" (HYPPOLITE. Gênese e estrutura da Fenomenologia do Espírito, p. 162). Ou ainda: "Contra a encarnação autoritária da razão centrada no sujeito, Hegel apresenta o poder unificador de uma intersubjetividade que se manifesta sob o título de amor e vida" (HABERMAS. O discurso filosófico da modernidade, p. 39).
24 HEGEL. Fenomenologia de Espírito, p. 121.
25 Idem, p. 115.
26 Idem, p. 121.
27 HEGEL. Enciclopédia, v. 1, § 375.
28 Idem, § 376.
29 HEGEL. Fenomenologia do Espírito, p. 123.
30 HEGEL. Enciclopédia. v. 1, § 376.
31 Neste sentido, não é possível aceitar de maneira completa afirmações como: "a realização da liberdade ocorre quando a natureza (aqui, a sociedade que teve início numa forma tosca e primitiva) é remodelada segundo as demandas da razão" (TAYLOR. Hegel e a sociedade moderna, p. 108). De certo modo, poderíamos mesmo dizer o inverso: a fluidez absoluta da natureza oferece a base para a remodelação da razão e de sua inquietude. Insistir em "remodelagem" é apenas uma maneira mais cuidadosa de continuar pensando a relação entre natureza e história a partir de uma certa ruptura que retira toda dignidade ontológica da primeira. Melhor seria dizer, como Malabou, que: "a passagem da natureza ao espírito não se produz como uma ultrapassagem, mas comoduplicação (redoublement), processo através do qual o espírito se constitui como segunda natureza. Esta duplicação reflexiva é, de uma certa forma, o 'estádio do espelho' do espírito, no qual se constitui a primeira forma de sua identidade" (MALABOU. L'avenir de Hegel, p. 43).
32 À sua maneira, encontraremos o mesmo tipo de conflito entre determinação e indeterminação nas individualidades biológicas em Freud através de sua teoria das pulsões de vida e de morte, teoria que, por dar conta de processos que se situam no limite entre o somático e o psíquico, também se refere tanto à natureza quanto à história.
33 O que não poderia ser diferente se aceitarmos que: "O processo dialético é plástico na medida em que articula no seu curso a imobilidade plena (a fixidez), a vacuidade (a dissolução) e a vitalidade do todo como reconciliação destes dois extremos, conjugação da resistência (Widerstand) e da fluidez (Flüssigkeit)" (MALABOU. L'avenir de Hegel, p. 26).
34 LEBRUN. L'envers de la dialectique, p. 28-29.
35 HEGEL. Enciclopédia. v. 3, § 427.
36 idem, § 359.
37 HEGEL. Fenomenologia do Espírito, p. 124.
38 DELEUZE; GUATTARI. L'anti-Œdipe, p. 34.
39 PLATÃO. Le banquet, 200a.
40 Idem, 210b.
41 LEAR. Eros and Unknowing: the psychoanalytic significance of Plato's Symposium. In: Open minded, p. 163. Esta desqualificação do sensível e da particularidade leva Lebrun a afirmar que: "o adestramento socrático submete o indivíduo a uma autoridade que é apenas a negação simples de todas as pulsões" (LEBRUN. L'envers de la dialectique, p. 128).
42 MORTLEY. Désir et différence dans la tradition platonicienne, p. 81.
43 Como lembrou muito bem Paulo Arantes em ARANTES. Um Hegel errado mas vivo. Revista Ide.
44 HEGEL. Fenomenologia do Espírito, p. 209.
45 De fato, esta perda deve ser posta entre parênteses porque, de certa maneira, a consciência perdeu aquilo que ela nunca teve. Por isso, Hegel pode afirmar, a respeito da eticidade: "Mas a consciência-de-si que de início só era espírito imediatamente e segundo o conceito saiu (herausgetreten) dessa felicidade que consiste em ter alcançado seu destino e em viver nele, ou então: ainda não alcançou sua felicidade. Pode-se dizer igualmente uma coisa ou outra. A razão precisa (muss) sair dessa felicidade, pois somente em si, ou imediatamente a vida de um povo livre é a eticidade real" (HEGEL. Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 224). Ou seja, o que Hegel diz é: a consciência perdeu sua felicidade e nunca a alcançou, até porque, perder e nunca ter tido é a mesma coisa. Além do mais, ela precisa perder aquilo que nunca teve. Isto tudo apenas indica o estatuto ilusório da imediaticidade própria à eticidade em sua primeira manifestação. Pois a consciência ainda não sabe que é "pura singularidade para si", ou seja, ela ainda não é reconhecida enquanto consciência-de-si.
46 HEGEL. Fenomenologia do Espírito, p. 24.
47 E não é por acaso que todos os dois pensem tais fenômenos através da modificação do sentido sociológico da confrontação com a morte. A este respeito basta lembrar de Max Weber, para quem: "a vida individual do homem civilizado, colocada dentro de um progresso infinito, segundo seu próprio sentido imanente, jamais deveria chegar ao fim; pois há sempre um passo à frente do lugar onde estamos, na marcha do progresso. E nenhum homem que morre alcança o cume que está no infinito. Abraão, ou algum camponês do passado, morreu 'velho e saciado de vida', por que estava no ciclo orgânico da vida [...] O homem civilizado, colocado no meio do enriquecimento continuado da cultura pelas idéias, conhecimento e problemas, pode 'cansar-se da vida', mas não 'saciar-se dela'" (WEBER. Ensaios de sociologia, p. 166).
48 HEGEL. JenaerPhilosophie, p. 13.
49 HEGEL. Fenomenologia do Espírito, p. 116.
50 KANT. Crítica da razão pura, B348.
51 Monique David-Ménard, em um texto maior sobre a crítica à noção de desejo como falta, lembra como a psicanálise é tributária da idéia de que: "há uma verdade na experiência de uma inadequação do objeto pulsional à satisfação pulsional que um sujeito persegue". Isto obrigaria a filosofia a repensar: "a idéia medieval de que a verdade é a adequação do conceito e do objeto, assim como a idéia spinozista de que um pensamento verdadeiro desdobra suas determinações de maneira imanente e na univocidade e que não há verdade possível da inadequação" (DAVID-MÈNARD. Deleuze et la psychanalyse, p. 22). No entanto, esta inadequação não poderia ser pensada a partir de uma "lógica da negação" aplicada ao desejo. Pois esta lógica seria dependente do quadro de oposição entre o universal e o particular, onde o particular aparece como negativo que excede o universal. Mas poderíamos dizer que, ao menos no caso de Hegel, como se trata de pensar um conceito de infinitude ou de determinação infinita, a lógica da negação não é uma lógica da oposição ou da contrariedade, mas da negação determinada (para uma diferença entre oposição e negação determinada, remeto ao meu SAFATLE. Linguagem e negação: sobre as relações entre ontologia e pragmática em Hegel. Revista Dois Pontos, p. 124-167).
52 Ver: LEBRUN. L'envers de la dialectique, p. 222.
53 HEGEL. Fenomenologia do Espírito II, p. 100.
54 Ver PINKARD. Hegel's phenomenology: The sociality of reason; e HABERMAS. Caminhos da destranscendentalização. In: Verdade e justificação.
55 HEGEL. Enciclopédia das ciências filosóficas, v. 3, § 433.
56 HEGEL. Fenomenologia do Espírito, p. 128-129.
57 HEGEL. Enciclopédia das ciências filosóficas, § 435.
58 Esta intuição hegeliana recebeu uma confirmação material através da psicanálise lacaniana e sua descrição da gênese do Eu através da internalização da imagem de um outro que tem a função de tipo ideal de conduta e de orientação do desejo. A este respeito, remeto ao capítulo "Desejo sem imagens" (In: SAFATLE. Lacan).
59 LEBRUN. L'envers de la dialectique, p. 100.
60 Idem, p. 211.
61 DELEUZE. Nietzsche et la philosophie, p. 224.
62 HEGEL. Wissenschaft der Logik II, p. 81.
63 Longuenesse compreendeu isto bem ao afirmar que, para Hegel: "O fundamento é o herdeiro da unidade de apercepção da Crítica da razão pura" (LONGUENESSE. Hegel et la critique de la métaphysique, p. 111).
64 HEGEL. Fenomenologia do Espírito, p. 159.
65 DELEUZE. Différence et répétition, p. 331.
66 HEGEL. Fenomenologia do Espírito, p. 132.
67 Idem, p. 132.
68 HABERMAS. Trabalho e interação. In: ______. Técnica e ciência como ideologia, p. 196.
Postado
por Pollyanna Lima
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