terça-feira, 22 de maio de 2012

O que 'cai dos dias': últimos combates e a persistência da memória

Wlater Benjamin foi, decerto, um pensador enigmático. O 'anjo da história' por ele, digamos, conceptualizado continua a inspirar interpretações. Fiquemos com o próprio: "o anjo da história gostaria de deter-se, cuidar das feridas das vítimas esmagadas sob o acúmulo de ruínas, mas a tempestade leva-o inexoravelmente para o futuro". É o que 'cai dos dias'. Os últimos combates e a memória que persiste. Por estas e outras elaborações, vale a leitura do texto abaixo, do Prof. Gleyton Trindade (UFMG).  

A Persistência da Memória, de Salvador Dalí 


Por Gleyton Trindade

Walter Benjamin foi certamente um dos mais enigmáticos pensadores do século XX e provavelmente o mais singular dos pensadores marxistas. Crítico literário, teólogo, filósofo e filólogo, judeu e marxista, Benjamin está, como diz Michael Lowy, “distante de todas as correntes e no cruzamento dos caminhos”. (Redenção e utopia. O judaísmo libertário na Europa Central. Companhia das Letras, São Paulo: 1993.) Não é por menos que autores de várias correntes, da teologia judaica ao marxismo revolucionário, fizeram de Benjamin um ícone cuja obra foi ardorosamente disputada.
Fascínio ainda mais alimentado pela conturbada vida que Benjamin experimentou. Vida marcada por fracassos, Benjamin é um representante dos “derrotados da história” que suas Teses sobre o conceito de história enunciam. Filho de uma família burguesa decadente de Berlim, Benjamin viu sua carreira acadêmica impossibilitada pela recusa de sua tese de livre docência pela Universidade de Frankfurt. Perseguido pelo regime nazista na Alemanha na década de 30, foi obrigado a fugir do país, passando a viver, com muitas dificuldades, do pouco dinheiro que conseguia de suas publicações, especialmente junto à Revista do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt. Conhecendo-se as cartas que Benjamin escreveu durante esse período nota-se que ele via a si próprio como o escritor da era moderna “pós-aurática” que tanto analisou. Como um Baudelaire, poeta obrigado a vender sua obra como se fosse mercadoria recebendo o mínimo como pagamento. De fato, a situação de Benjamin não era muito melhor que a de Baudelaire. Tanto mais pela difícil relação de Benjamin com o Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt do qual Adorno era um dos diretores.
Tanta dificuldade culminaria com seu trágico suicídio na fronteira entre a França e a Espanha enquanto fugia da invasão alemã. Para o melancólico Benjamin a visão de um mundo que destruía a si próprio era insuportável. Num mundo marcado pela destruição causada por uma noção de progresso linear Benjamin se via como o anjo do quadro de Klee que tanto admirava: impotente e frágil. Ao contrário deste anjo, no entanto, Benjamin não queria presenciar o monte de ruínas que inevitavelmente se acumularia sob seus pés.
Da extensa, porém fragmentada e descontínua obra benjaminiana, dois temas fundamentais podem ser destacados: o das condições de produção da arte e da literatura na sociedade capitalista e o da leitura barroca da história moderna.
Produção da arte no capitalismo
Compreender a novidade societária instaurada pelo capitalismo, segundo Benjamin, implica em reconhecer também as mutações ocorridas no campo da cultura e das formas de expressão artística. A primeira destas mudanças decisivas diz respeito ao desaparecimento da figura do “narrador”. Benjamin parte da idéia de que a arte de contar histórias encontra-se em vias de extinção porque ela se baseia na transmissão de uma experiência coletiva, ligada a um trabalho e um tempo partilhados em um mesmo universo de prática e linguagem, cujas condições de realização não tem como sobreviver na sociedade capitalista. O narrador é aquele que torna coisas distantes mais próximas de seu público já que o próprio interesse pela narrativa baseia-se no fato de que o narrador deve trazer para seus ouvintes coisas de tempos e países distantes. A organização de comunidade necessária a prática narrativa baseia-se numa noção de tempo diferente do tempo capitalista, ou seja, o narrador compartilha o tempo do artesão. O artesanato permite, devido a seus ritmos lentos e orgânicos, em oposição à rapidez do processo de trabalho industrial, um tempo onde experiências são mais próximas e podem ser unificadas pela palavra. O ritmo do trabalho artesanal se inscreve em um tempo onde ainda havia tempo para contar. Esse tempo pré-capitalista é o tempo em que se vive a sensação de tédio essencial para a experiência necessária a arte de narrar. Como diz Benjamin, “O tédio é o pássaro de sonho que choca os ovos da experiência. O menor susurro nas folhagens o assusta. Seus ninhos - as atividades intimamente associadas ao tédio - já se extinguiram na cidade e estão em vias de se extinguir no campo.”
Na modernidade capitalista, com o esgotamento da memória e da tradição fundadoras da arte de contar histórias, o indivíduo que torna-se agora isolado e desorientado, consegue se encontrar apenas no romance. Essa forma diferente de narração, Benjamin analisa como forma característica da sociedade burguesa moderna. No contexto da narrativa típica da era “artesanal”, o romance aparece como gênero da desintegração da era industrial, sendo que o isolamento se apresenta em todos os níveis, tanto na solidão do autor, do personagem, da história como do leitor. Daí a busca benjaminiana pelas formas de expressão literária que mantenham-se como “obra aberta” assim como as narrativas do passado, obras que estabeleçam com o leitor um diálogo participativo através da polissemia de sentidos. Por isto a abertura benjaminiana para a recepção das artes de vanguarda e para os textos de Proust e Kafka.
A modernidade capitalista foi responsável também por rasgar os véus das ilusões religiosas. Originalmente, a arte apareceu relacionada aos rituais mágicos e a religião, tornando-se, assim, ela própria objeto de culto. De acordo com Benjamin, este fundamento religioso constituía a chamada “autenticidade” da obra de arte, seu valor único que a distanciava de quem a admirava. Historicamente, a obra de arte constituiu em torno de si o que Benjamin denomina de “aura”, ela assumiu um caráter de objeto sagrado que permitiu sua sobrevivência ao longo dos séculos.
No entanto, a modernidade capitalista incidiu decisivamente sobre este caráter “aurático” da expressão artística. A arte perde rapidamente seu caráter sagrado e único graças ao surgimento de novas experiências de percepção artística e das circunstâncias ligadas à crescente difusão e intensidade dos fenômenos de massa. Em nenhum outro momento da história desejou-se fazer com que as coisas se tornassem mais próximas, realidade tornada possível através da reprodutibilidade técnica da obra. Com a técnica, a arte, entendida enquanto objeto de culto, é profanada, aproximando-se, assim, do consumo das massas. No entanto, Benjamin não vê este processo como o nostálgico romântico que busca novamente a idéia de obra intocada. Antes, trata-se de encontrar uma saída para a sobrevivência da arte que leve em consideração sua nova situação de ente profanado e transformado em mercadoria. Com a destruição da aura, a arte pela primeira vez pode ser apropriada pelas massas abrindo-se um espaço para sua democratização e politização. As novas expressões não auráticas tem mesmo que acompanhar o ritmo da técnica já que expressões como o cinema são formas mais adaptadas para descrever as constantes mudanças e o caráter fragmentário do mundo moderno.
Mas, nos lembra Benjamin, não apenas a obra de arte foi profanada na modernidade. Também o próprio autor se encontrou em tal situação, uma vez que ele está à mercê das leis do mercado, tendo de vender seu trabalho como se fosse um produtor qualquer. Se antes o artista mantinha seu status de ser retirado do mundo comum através da proteção do mecenas, agora ele é obrigado a oferecer sua obra como um trabalhador qualquer, e como tal, tem de se submeter também às leis da oferta e procura. No ensaio “O autor como produtor” Benjamin defende a tomada de consciência do autor para a situação em que se encontra. Como produtor, o escritor está a serviço de certos interesses de classes. O escritor progressista deve reconhecer isso e tomar partido ao lado das classes revolucionárias.
Desta forma, em sua batalha política no campo da arte, o autor que se reconhece como produtor deve romper com o simples modismo “que transforma a luta contra a miséria em simples artigo de consumo” sendo a imprensa, por proporcionar a quebra da barreira entre autor e público, um importante campo de atuação. Nesse sentido, a expressão artística paradigmática para Benjamin é o teatro épico de Brecht. Este, como produtor artístico, não se limita a abastecer o aparelho produtivo sem modificá-lo, utilizando de técnicas dos novos instrumentos de difusão da moda como o rádio e o cinema para realizar uma crítica desse próprio aparelho produtivo. Brecht torna-se, assim, um exemplo de como o autor, na condição de simples produtor, pode ser importante na construção de uma outra temporalidade que não a da exploração capitalista. Seu teatro épico é uma amostra de como a arte sem aura pode utilizar das próprias técnicas de reprodução a fim de criar novas expressões.
O Barroco e a história dos vencidos
 Associado ás vanguarda modernas, Benjamin foi, no entanto, formado decisivamente pela visão barroca da história que ele procuraria transpor para o entendimento da própria modernidade. Em Benjamin, esta analogia entre barroco e modernidade procuraria evidenciar especialmente a semelhança de condições históricas vividas pelo barroco e pelo moderno: a situação de dissolução de todas as certezas e fundamentos últimos.
O barroco do século XVII evidencia as vivências de um mundo religioso em dissolução que só encontram na alegoria barroca sua forma de expressão. Os sentimentos de perda e as experiências religiosas da Reforma e da Contra-Reforma, levam o homem do século XVII a uma profunda melancolia. Benjamin analisa a gravura de Durer intitulada “Melancolia” para representar a apatia em que se encontrava o homem barroco. Essa apatia, associada posteriormente ao spleen dos flaneurs de Paris, define o melancólico como um ser que, em meio a objetos se entrega a devaneios. A alegoria barroca seria a linguagem que permitiria ao melancólico, vivendo num cenário de ruínas e cadáveres, expressar a vivência de quem vê seu mundo sendo dissolvido. É nas possibilidades da alegoria barroca que Benjamin pôde encontrar o elemento necessário para representar o desamparo de um mundo em ruínas, como o mundo moderno. Nessa perspectiva benjaminiana, tanto o homem barroco quanto o homem moderno, cercados de objetos, estão sujeitos a uma apatia, uma doença da alma insatisfeita pelo excesso de materialidade.
Neste sentido, o drama barroco denotaria, na leitura benjaminiana, um novo modo de perceber o mundo em que o sofrimento aparecia cada vez mais como o substrato inalterável da história humana. História de ruínas e catástrofes, história que traz em si a marca das grandes derrotas. O homem do século XVII vive uma experiência de perda absoluta a partir de um horizonte em fragmento, efêmero, e que mantém com a morte uma relação íntima. Nesse ambiente impregnado de torpor, o alegorista barroco está obrigado a uma busca incessante do novo. Novo ressignificado, decorrente de um mundo que se apresenta em dissolução. É desse mundo em ruínas que a expressão barroca extrai seu material de criação, partindo essencialmente da condição do “enlutado” forçado a buscar novos significados diante de uma perda irreparável. Segundo Benjamin, “o luto é um estado de espírito em que o sentimento reanima o mundo vazio sob a forma de uma máscara, para obter da visão desse mundo uma satisfação enigmática”. O homem decadente vê seu mundo como o enlutado, inconformado com a perda de seu objeto, se relaciona com as coisas. Assim também se passa com o melancólico. Este enxerga as coisas como se elas fossem mudas, pois tudo para ele perde sua significação original. No entanto, ao mesmo tempo em que as coisas perdem seu significado original, elas se revestem de algo enigmático, exigindo, assim, uma nova significação. Este novo significado só pode ser alcançado pelo homem decadente na alegoria barroca.
É este olhar barroco, permitindo entender um mundo fragmentado e sem sentido que Benjamin lança sobre o mundo moderno. Isto porque, assim como o mundo barroco, o mundo moderno se apresenta como um tempo de ruínas, marcado pela busca constante do novo e pela efemeridade do que se cria. Mundo sem significado e que precisa ser revalorizado. Pode-se aproximar, na concepção benjaminiana, o trabalho do alegorista barroco ao trabalho do “historiador materialista” expresso nas Teses sobre o conceito de história. A missão do historiado materialista, afirma Benjamin, é lançar seu olhar para o passado em busca dos fragmentos esquecidos pela historiografia tradicional, “escovar a história a contrapelo” assumindo o fato de que a própria história é descontínua, de que em relação á ela não existem certezas, de que os próprios homens, e somente eles, podem mudar os rumos das coisas.
Neste ponto começa-se a perceber um dos principais esforços de Benjamin: o tema da crítica a “uma concepção do tempo vazio e homogêneo”. Segundo Benjamin deve-se interromper a história entendida como um desenrolar tranquilo do progresso da humanidade, pois esta é produto das classes dominantes e da paralisia espiritual dos historiadores, para que uma outra história possa dizer-se: a história dos vencidos, entendida fundamentalmente como uma narrativa descontínua, recortada e sempre ameaçada pelo esquecimento. É contra o esquecimento das esperanças malogradas, das possibilidades de um mundo novo que poderia ter sido e não foi é que se torna necessário um novo olhar sobre a história da humanidade. É porque os dominadores de hoje “espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão” de todos os tempos é que uma nova versão da histórica deve ser realizada. Neste sentido, Benjamin evoca Satanás, o mais belo dos anjos e que foi derrotado, o primeiro dos vencidos. Ele é o anjo dos oprimidos, é a visão da história que todos os dominados do mundo teriam se pudessem exprimi-la. Por tentarem se rebelar, são condenados ao inferno e vistos pela classe dominante como corporificação da maldade. A visão da história, do ponto de vista dos oprimidos, expressaria àquilo que Satã teria a dizer caso tivesse voz.
Rejeitando o culto moderno do progresso, Benjamin coloca no centro de sua visão de história o conceito de catástrofe já que o passado nada mais é, do ponto de vista dos oprimidos, que uma série interminável de derrotas catastróficas. Trata-se aqui de uma versão barroca da história, já que a história vê-se marcada pela melancolia dos derrotados e tem no sofrimento seu substrato inalterável. Na Tese IX Benjamin se refere ao anjo da história caracterizado por sua angústia, impotência e fraqueza. Essa impotência é produzida por uma tempestade que sopra do paraíso e cuja violência é irresistível. Tempestade essa que é símbolo da maldição divina em relação ao casal originário Adão e Eva, banidos para fora do Jardim.
O progresso que nos distancia do paraíso nos conduz ao seu oposto, ou seja, ao inferno. Benjamin sugere uma correspondência entre modernidade e danação infernal. Segundo ele a essência do tempo infernal é a eterna repetição do mesmo, cujo paradigma se encontra na mitologia grega: Sísifo e Tântalo, condenados ao eterno retorno da mesma punição. Na modernidade, a atividade do trabalhador assalariado é o eterno recomeço a partir do zero, e neste sentido ele vive um tempo infernal baseado nos gestos automáticos que tem de realizar nas fábricas. Mas não se trata somente do operário: o conjunto da sociedade moderna, dominado pela mercadoria, está submetido à repetição, ao sempre o mesmo disfarçado em novidade e moda.
O anjo da história gostaria de deter-se, cuidar das feridas das vítimas esmagadas sob o acúmulo de ruínas, mas a tempestade leva-o inexoravelmente para o futuro. Enquanto durar esta tempestade, o futuro será apenas a repetição do passado através de novas catástrofes cada vez mais destruidoras. Como então parar a tempestade e deter o progresso? Na esfera teológica, trata-se da tarefa do Messias. A Tese XVII fala da “interrupção messiânica do devir”, no sentido de que o Messias rompe bruscamente os rumos atuais da história. Na esfera profana trata-se do homem tomar em suas mãos as rédeas da história a fim de romper seu contínuo. Esse ato histórico, é o movimento revolucionário apresentado por Benjamin em outra alegoria em que ele retoma, invertendo, a imagem marxista: “Marx disse que as revoluções são a locomotiva da história. Mas talvez as coisas se apresentem de modo muito diverso. Pode ser que as revoluções sejam o ato, pela humanidade que viaja neste trem, de puxar urgentemente os freios.” A interrupção messiânica-revolucionária da história é a resposta de Benjamin às ameaças que faz pesar sobre a humanidade a continuidade da tempestade do progresso.
Desta forma, a perspectiva de Benjamin expressa à idéia de que no tempo capitalista que só é continuação do idêntico, a felicidade provisória dos vencedores continuará alicerçada sobre os corpos dos oprimidos, esquecidos e submersos nos porões da história. Somente na experiência de uma outra temporalidade a memória dos derrotados do passado poderia ser redimida e o sentido libertador da felicidade poderia ser experienciado em oposição ao infinito tempo da necessidade.
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