quinta-feira, 31 de maio de 2012

Invasão de Privacidade e Crimes Digitais: Investigação e Punição

O que fazer quando os dispositivos tecnológicos deixam de ser utilizados como canais de socialização, e passam a ser usados para invadir, sob a abjeto manto do anonimato, a privacidade pessoal com todo tipo de disparate? Não hesite, acione os meios de segurança especializados no combate aos crimes digitais. E, no curto, médio ou mesmo longo prazo, a verdade será descoberta, tendo-se então condições para se realizar a implacável punição. O universo proporcionado pela Revolução da Tecnologia da Informação não pode se transformar em terreno de criminosos e criminosas, afrontando à ética cidadã. E os meios de investigação e apuração de crimes digitais estão cada vez mais ágeis no Brasil, conforme atesta a reportagem abaixo. 


Investigações de crimes digitais agora estão mais ágeis


A empresa americana Access Data apresenta no Brasil o ADLab, uma única plataforma de investigação digital que permite a análise de vários computadores por múltiplos investigadores, simultaneamente. Novidade é apresentada e revendida no Brasil pela TechBiz Forense Digital.
Em 2009, o Instituto de Criminalística do Rio de Janeiro recebeu seis sacolas, contendo cem Discos Rígidos cada, e mais 50 computadores para serem periciados por solicitação do Ministério Público. O trabalho, que levaria meses para ser concluído, hoje pode ser feito em poucos dias com a novidade que a empresa norte-americana Access Data traz para o encontro realizado pela TechBiz Forense Digital em Belo Horizonte, de 25 a 29 de janeiro. O ADLab é uma versão para laboratório do software FTK (Forensic Toolkit), que realiza análises, quebra de senhas, decriptação e visualização de registros em máquinas suspeitas e que agora também apresenta inovações: o processamento distribuído e a colaboração em rede.
“Essa nova solução da Access Data é um verdadeiro laboratório de forense computacional que permite reunir dez ou mais pessoas para trabalhar ao mesmo tempo em um único caso e investigar simultaneamente cem ou 500 máquinas apreendidas em uma mesma operação”, explica Sandro Suffert, consultor da TechBiz Forense Digital.
Ou seja, uma única plataforma, o ADLab, permite que múltiplos analistas investiguem terabytes de dados adquiridos de vários computadores simultaneamente. “Enquanto os peritos utilizam o software para investigar tecnicamente o caso e extrair informações normalmente inacessíveis utilizando técnicas avançadas de computação forense, o delegado pode revisar alguns dados levantados e o Ministério Público pode ter acesso somente às informações que são relevantes”, exemplifica Suffert.
A ferramenta gerencia o processo investigativo e permite que profissionais de diferentes instâncias colaborem no processo, inclusive com bookmarks e tags compartilhados. Outra vantagem é que o software permite um controle granular de  permissão de acesso às informações – um mecanismo fundamental de segurança que limita os dados disponíveis para cada área ou usuário particular. Tudo isso sem comprometer a agilidade, pois, embora o processamento seja distribuído em múltiplos computadores, o ADLab possui uma base de dados Oracle centralizada, o que melhora significativamente a performance durante os vários processamentos necessários que são comuns em casos complexos. E através da interface web – outra novidade do produto – é possível disponibilizar acesso remoto a revisões e relatórios parciais sobre o andamento da investigação – aumentando significantemente o nível de interação entre as partes envolvidas.
Quatro em um
Em relação ao software FTK, a Access Data também apresenta no evento de Belo Horizonte a novidade da versão 3.0.4, em que uma única licença é capaz de distribuir o processamento em até quatro máquinas. “Um computador pode processar só email, outro vai fazer indexação, outro procurar e recuperar arquivos apagados…”, sugere Suffert.
Para a TechBiz Forense Digital, que revende os produtos da Access Data no Brasil, os lançamentos vêm de encontro às necessidades de seus clientes, sobretudo os envolvidos com complexas investigações, como Polícias, Órgãos Públicos e grandes empresas privadas.
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quarta-feira, 30 de maio de 2012

Adorno's Negative Dialectic

Determinados livros, de fato, já nascem clássicos. É certo que, hoje, as deficiências no processo de formação têm levado as novas gerações a sequer tomarem conhecimento dos clássicos. E, como consequência, as distorções em torno de categorias do pensamento social abundam - aliás, por vezes, elas são confundidas até mesmo com expressões do senso comum. Uma miséria de pensamento, pode-se dizer, estabelecendo-se aqui um paralelo com a filosofia política marxiana, quando Marx cunhou o 'miséria da filosofia' como resposta a Proudhon. Pois bem, o livro A Dialética Negativa, de Adorno, caminhando para os seus 50 anos, é uma dessas obras que já nasceram clássicas. Livro central no âmbito da Escola de Frankfurt, sua influência atravessa o percurso histórico desta - dos seus fundadores, passando por Habermas e Axel Honnet. E a Dialética Negativa inspirou outros escritos, como o Adorno's Negative Dialectic: Philosophy and the Possibility of Critical Rationality, de Brian O'Connor  (Cambridge, MA: MIT Press). Reproduzo, a seguir, uma recensão deste. 


Andrew J. Taggart

University of Wisconsin-Madison


In 1992, New German Critique published a special issue devoted to the work of Theodor W. Adorno in which scholars proposed a critical reassessment of his philosophy. Since its appearance, studies of Adorno's oeuvre have not failed to remark upon his untimeliness: much like philosophy in the wake of Marxism, Adorno lives on as a missed opportunity, an unfulfilled promise. In his introduction to that issue, Peter Hohendahl observes four historical trends in Adorno criticism.1 In the heyday of New Left social movements which, in Germany especially, held firm to Marxist orthodoxy, Adorno was accused of being a pessimistic anti-revolutionary, resigned to pursuing theory without praxis and eschewing any vision of social transformation. With the advent of poststructuralism, however, Adorno's thought was appropriated in new ways. Because he critiqued idealism, constitutive subjectivity, the hegemony of reason, and history as teleology, Adorno was seen as a proto-deconstructionist in whose negative dialectics an affinity with deconstruction could be detected. Yet Adorno's cultural elitism, his criticism of mass culture, and his defense of the relative autonomy of the aesthetic soon placed him in the cross-hairs of postmodernists, who identified him as a mandarin cultural critic yearning nostalgically for a return to nineteenth-century bourgeois high culture. According to Hohendahl, "authentic" Adorno criticism, thus far sorely lacking, only began emerging in the early 1990s. Its aims were to re-read Adorno's oeuvre in light of recent English translations, to release it from its embrace by poststructuralist and postmodernist critique, and, most importantly, to discredit the view that had developed in second-generation critical theory—most notably, Jurgen Habermas's—that Adorno had sworn off the Enlightenment by disowning reason.
Habermas's view notwithstanding, Robert Hullot-Kentor regards Adorno as a bona fide Enlightenment philosopher whose life project was a "critique of reason by way of reason" (13).2 Among those who have pursued a return to Adorno, the crucial question is: What sort of Enlightenment philosopher is he? For Hullot-Kentor, Gillian Rose, and Simon Jarvis, Adorno is an aporetic philosopher of the Transcendental Dialectic and the Transcendental Doctrine of Method. Responding to the moment of nonidentity, and reflecting upon the damaging, but necessary moment of identity thinking, reason must be double: it must turn back on itself in auto-critique at the same time that it succumbs to the metaphysical or speculative impulse to think utopia. This line of [End Page 172] argument amounts to a defense of the unity of reason. In his recent work, Adorno's Negative Dialectics, Brian O'Connor elaborates an alternative understanding, one that emphasizes the duality of reason. Presupposing a split between the Transcendental Doctrine of Elements and the Transcendental Dialectic, O'Connor distinguishes between transcen-dental philosophy and transcendental illusion, between truth and critique. Staking out a new interpretation of Adorno, O'Connor maintains that in his epistemological works, Adorno is concerned with deducing the conditions of possibility for a fully lived experience. Against those who commonly claim that negative dialectics is nothing other than negative theology or pure insight with no content of its own, O'Connor argues that out of Adorno's Against Epistemology: A Metacritique and Negative Dialectics one can reconstruct a theory of experience.
O'Connor's project is significant because it represents an apology for philosophy and a defense of how one should live. His first thesis, evident in the subtitle of his book, is that philosophy is equivalent to critical rationality and that critical rationality is synonymous with full, unreduced experience. His second thesis, no less striking, is that critical rationality is the ground of social theory, or in O'Connor's terms, it is a "theoretical foundation of the sort of reflexivity—the critical stance—required by critical theory" (ix). Adorno's theory of experience is relevant, O'Connor proposes, not because it satisfies some antiquarian need to unearth the "real" Adorno, but because it carries the renewed possibility of critical theory today.
In his chapter on Kant, O'Connor takes on a central question of philosophy, that of determining just "what kind of Kantian or Hegelian" (101) Adorno is. Adorno's theory of subject-object mediation is Kantian in its problematic and procedure, yet it is Hegelian in substance. Adorno drew from Kant in formulating questions regarding experience, its limits, and the incoherence that results from attempts to transcend experience, while his reflection on the content of experience, most notably that pertaining to the dynamic interaction of subject and object, owes much to Hegel. In what I would argue is his third thesis, O'Connor posits that Adorno's understanding of experience is not simply one plausible theory among many. Since Adorno advances a normative theory of truth whose standard is rationality, only his negative dialectic is entirely consistent. In keeping with this thesis, Adorno's Negative Dialectic is organized into a neat typology addressing issues of deformation, truth, and critique. The introduction outlines the deformation of reified experience and sets the agenda for any future philosophy. Chapters one to three offer a robust account of truth focusing chiefly on the subject-object mediation and its [End Page 173] most salient feature, the priority assigned to the object. Chapters four and five become exercises in what O'Connor calls Adorno's "transcendental strategy." Here, O'Connor's assesses Adorno's critique of the internal incoherence of Kant's idealism, of Husserl's absolute objectivism, and of Heidegger's irrationalism.
In his introductory comments, O'Connor shows what a profound influence the young Georg Lukacs had on Adorno. The author of History and Class Consciousnessdid not convince him, however, that the proletariat was the subject of history. He could not subscribe to Lukacs's notion that a certain form of rationality is coeval with a society's self-understanding, a premise that led the latter to an analysis of the deformation of social life through reification. O'Connor glosses Lukacsian reification as a debilitating separation of subject and object. "Objectively, the world appears to be governed naturally by these reifying laws," by an overriding and unchangeable givenness. "Subjectively, the individual is deformed by reification to the extent that she now perceives her proper activities in terms of a society governed by quantitative laws (9, O'Connor's emphasis). Here we discern something akin to the Marxian analysis of fetishism, where quality is everywhere replaced by quantity and where all forms of activity merely redouble the status quo. According to O'Connor, Lukacs and Adorno part ways not in the diagnosis of the central social ill of our times, which they both identify as the "crisis of rationality in modernity" (12), but in positing its cure. For Adorno, reification deforms subjective experience. As such, a higher form of rationality must be constituted in order to overcome the afflictions engendered by the social world's attenuated rationality, essentially a form of irrationalism (55-56) that ravages human experience.
Any program for a philosophy that is genuinely and acutely responsive to the scourges of a reified social world would need to avoid the errors visible in much of contemporary philosophy. O'Connor interprets Adorno's inaugural lecture, "The Actuality of Philosophy," as a work that sets the agenda for a philosophy that would become fully mature some twenty or thirty years later. Here Adorno problematizes fundamental ontology's reduction of the object to the structures of Dasein, neo-Kantianism's overt formalism, irrationalism's desire for sensuous immediacy and mystical experience, and positivism's scientific proceduralism, which fails to give the object its due and which cannot reflect on itself. While, in Adorno's eyes, Heideggerian existential phenomenology and neo-Kantianism overestimate the powers of constitutive subjectivity and underestimate the role of the object in determining experience, in bracketing the subject, paradoxically, both [End Page 174] irrationalism and positivism let objectivity slip through their fingers. For Adorno, subject and object must be reconciled.
Throughout Adorno's Negative Dialectic, O'Connor's guiding presupposition is that such reconciliation is only possible through a principle of moderation. Grant too much subjectivity, and one lands in idealism and reification; too much objectivity, and one falls upon immediacy and yields to the status quo. In his first three chapters, O'Connor reconstructs Adorno's theory of subject-object mediation by working through Kant and Hegel, playing the former off the latter. Kant's influence on Adorno is apparent in two ways. First, O'Connor shows, the purpose of Kant's transcendental idealism is to surmount a) empiricism, which assumes the passive reception of objects, and b) rationalism, which asserts that subjective activity wholly constitutes the natural world. It does so by holding a) that the mind has two faculties, sensibility and understanding, which participate in knowledge claims, and b) that the natural world is not reducible to our apprehension of it. In this manner, Kant makes room for materialism and for the priority of the object. Because he posits the existence of noumena, O'Connor holds that "the activity of the subject is circumscribed by the determinate independence of the object" (20). Second, Adorno develops a transcendental strategy of immanent critique from Kant's antinomial logic. In O'Connor's reading, every position but Adorno's — Kant's, Hegel's, Husserl's, and Heidegger's—falls victim to irresolvable inconsistencies.
By foregrounding the need for what he calls Hegel's "conceptual adjustments" (17), O'Connor makes clear the extent to which Hegel's phenomenology has also deeply impacted Adorno's thought. O'Connor maintains that the "ongoing interaction" (29) between subject and object, the conceptual nature of the subject's encounter with objects, and the "particular and irreducible role of subjectivity" (29) are the notions most central to Adorno's philosophy. In particular, Hegel's theory of judgment, gleaned primarily from the introduction to his Phenomenology of Spirit, involves a dynamic notion of experience as a total transformation of the horizon of one's understanding. O'Connor explains: "If my concept fails to agree with its object, and is inadequate to judgment, then the concept must be revised…. Altering knowledge, as Hegel puts it, means adjusting the concepts by which we judge the object" (36). It is in this sense that there is an immanent combustion—that is, an experience—when judgment cannot predicate an object. Nonidentity in Adorno thus owes its existence to the Kantian noumenon, and its awareness to Hegelian reflection. [End Page 175]
The shape of O'Connor's reconstruction of Adorno's notion of experience should now be coming into view. In chapter two, which focuses on the priority of the object, O'Connor attempts to effect a reversal—but not a complete abandonment—of idealism in Adorno's thought. How, asks O'Connor, can Adorno maintain the activity and agency of critical subjectivity without liquidating the singularity of the object? O'Connor's move is to illustrate that there is a qualitative difference between subject and object: the object is independent of the subject, but the subject is dependent upon the object. For the object being what there is, the subject only exists so long as she interacts with the "what." Yet the object's independence is only relative since it initially appears to us as that which is subsumable under a concept. Nevertheless, the nonconceptual moment of the object comes on the scene as that which is irreducible to conceptualization—that is, as surprising, wholly unpredictable, and often shocking events. If, however, the object (relatively independent, conceptually grasped, and nonconceptually felt) and the subject (dependent, judgmental, and unwound) are two poles of experience, then for O'Connor, they cannot be hypostasized. On the contrary, the structure of experience is the structure of their mediation, that is, their relative, mutually interacting separate-but-togetherness.
Though the scope of subjectivity has just been greatly curtailed, in chapter three the critical potentiality of subjectivity has been retained. While the mind may no longer be identical to the transcendental unity of apperception, O'Connor shows that, for Adorno, "there is an irreducibly active role for the subject in experience" (72). In a dramatic turn, however, O'Connor claims that Adorno endorses subject determinacy: it is not simply the case that the object is independent of the subject, even that the post-Cartesian subject is dependent upon the object, but that the object determines the subject. But subject determinacy does not lead Adorno to abandon his concept of the subject, but rather to broaden it: his "material subject" (81) responds to his surroundings, is integrated back into nature, and has somatic experiences that are not states of mind, but sensations "within the structure of the subject-object relation" (90, O'Connor's emphasis). Within the structure of experience, the Adornian subject is neither dirempted from nature, nor master of inner and outer nature.
O'Connor's provocative claim that Adorno is a transcendental philosopher is not the only topic of interest in this book; his discussions of Adorno's critical strategies in the latter half of the book will also be of considerable interest to those who are committed to an Adorno who submits all claims to rational standards. For Adorno, Hegel and Kant [End Page 176] amplify an already inflated idealism: neither Hegel's conceptualist orientation nor Kant's removal of the subject from the subject-object relation can provide a serviceable materialism. Whereas Hegel and Kant sacrifice the object in order to salvage a critical subject, Husserl and Heidegger suffer the opposite fate. Elucidating Adorno's metacritical strategy, which challenges any stance that claims to detach genesis completely from validity, O'Connor shows how Husserl's elimination of the subject results in an untenable objectivity. What's worse, Heidegger's transcendental phenomenology is doomed either to a blind irrationalism or an empty idealism. In sum, without the priority of the object, experience is not possible. Without a critical subjectivity, there can be no objectivity. In neither case can idealism be overcome.
Adorno's transcendental strategy and his anthropologico-materialist strategy are most evident and most elegantly discussed in O'Connor's chapter on Kant. Here he contends that Adorno's strategy is to show that Kant fails to maintain a distinction between the contributions of the object and those of the subject. Because constitution creeps into forms of intuition, because spontaneity saturates receptivity, in reality, the Transcendental Aesthetic, succumbing to antinomies, illuminates the "ideality of experience" (111). Thus, the Transcendental Aesthetic and the Transcendental Analytic are not expositions of object and subject but are two kinds of constitution. Consequently, the transcendental strategy offers, as it were, an indirect proof of Adorno's theory of experience. Likewise, according to O'Connor, the anthropologico-materialist strategy makes it clear that so long as the "I think" is spirited away or abstracted from its material context, it winds up in antinomies. Within Kant's problematic, if the "I think" is purely empirical, then it cannot be constitutive; if it is purely transcendental, then its existence cannot be justified (124).
In his conclusion, O'Connor shields Adorno from Habermas, for whom Adorno is just another modern philosopher of consciousness, and from the linguistic turn in general. Yet O'Connor fails to consider two perhaps more devastating criticisms. First, although O'Connor's version of Adorno's negative dialectic "provides an account of how we might criticize the irrationality of contemporary society" (167), it does not include reflections upon its own social conditions of possibility. By bracketing the social world from Adorno's account of non-reified experience, O'Connor maintains an undialectical separation between actuality and normativity, genesis and validity. Second, although O'Connor is well aware of the abstract nature of Adorno's negative dialectics (e.g., xi, 167), he makes no forays into Adorno's Aesthetic Theory, [End Page 177] where a more concrete understanding of experience is illuminated. If the truth of experience remains an abstraction, then it risks repeating the reifying gestures that Adorno and Benjamin worried about in Kant and, of course, in the social world.
1. See Peter Hohendahl, "Introduction: Adorno Studies Today," New German Critique 56 (Spring – Summer 1992): 3-15.
2. Robert Hullot-Kentor, "Back to Adorno," Telos 81 (Fall 1989): 13.
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terça-feira, 29 de maio de 2012

Sobre a Sociologia da Infância: Perspectivas e Implicações

Não obstante Florestan Fernandes tenha realizado um intenso trabalho com crianças em São Paulo, ainda nos 1940, a abordagem sociológica sobre a infância foi praticamente posta de parte no Brasil. Ora porque a produção sociológica se esquivou deste "objeto", ficando-se pelas metas abordagens da Sociologia da Educação, ora porque a infância tornou-se um terreno quase exclusivo do enfoque psicológico ou, em outros casos, de uma determinada redução pedagógica (incidência de métodos, dinâmicas, etc.). O clássico trabalho historiográfico de Philippe Airiès, contudo, foi, aos poucos, mudando o panorama. E nesta "esteira", foi ganhando forma a chamada Sociologia da Infância. Mas, em nosso meio, e sobretudo nos Cursos de Pedagogia, ainda é um corpo ausente. Uma das referências na área é o norte-americano William Corsaro, da Universidade de Indiana. E uma boa notícia: por aqui, já foi publicado o seu Sociologia da Infância (Artmed). A seguir, uma entrevista dele, realizada pela Profa. Fernanda Müller (UFRGS). 


Entrevista com Willian Corsaro


Fernanda Müller
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisadora-visitante do Centro de Estudos da Família da Universidade de Cambridge.


Conhecido por seus alunos, colegas e informantes como Bill, William Arnold Corsaro é professor titular da cátedra "Robert H. Shaffer class of 1967", da Faculdade de Sociologia, Universidade de Indiana, Bloomington, Estados Unidos. Bill obteve seu bacharelado em sociologia pela Universidade de Indiana, em 1970, e seu doutorado pela Universidade da Carolina do Norte, em 1974. Entre seus principais interesses de pesquisa estão a sociologia da infância, as culturas de pares, as relações entre adultos e crianças e entre crianças, os métodos etnográficos e o processo de socialização. Há mais de 30 anos, Bill vem realizando pesquisas transculturais sobre as culturas de pares e a educação inicial das crianças na Itália, na Noruega e nos Estados Unidos.
Bill é o autor de Friendship and peer culture in the early years (1985) (Amizade e cultura de pares nos primeiros anos), co-organizador de Children's worlds and children's language (1986) (Mundos e linguagem das crianças), eInterpretative approaches to children's socialization (1992) (Abordagens interpretativas da socialização das crianças). The sociology of childhood (1997, 2005a – segunda edição) (A sociologia da infância) foi o primeiro texto nesta área a apresentar uma análise teórica baseada em dados produzidos com crianças, e não apenas sobre elas. As mais recentes publicações de Bill, We're friends, right?: inside kids' cultures (2003) (Somos amigos, né?: no interior das culturas das crianças), e I compagni: understanding children's transition from preschool to elementary school (2005c) (Os companheiros: entendendo a transição das crianças da pré-escola para a escola primária), escrito com Luisa Molinari, reúne um extraordinário conjunto de idéias teóricas e pesquisas empíricas sobre e com as crianças, oriundo de uma pesquisa longitudinal.
Bill ainda vem sendo um importante colaborador no desenvolvimento de projetos de pesquisa no Brasil sobre a infância, a sociologia e as metodologias de pesquisa com crianças. Visitei Bill em Bloomington, em 2005, e conversamos sobre as semelhanças e diferenças da infância no Brasil, na Itália e nos EUA. Recentemente, ele publicou um importante artigo no Brasil (Corsaro, 2005b) e espero que seja apenas um início, pois poderemos escutar suas idéias ao vivo quando ele visitar o Brasil, em maio de 2007.
Entrevistadora: Bill, existem alguns grupos no Brasil que vêm realizando pesquisas com crianças, mas ainda é um campo relativamente novo. Embora Florestan Fernandes, um sociólogo brasileiro de renome, tenha realizado um trabalho impressionante com crianças em São Paulo, nos anos de 1940, esse tipo de pesquisa sociológica foi abandonado por quase 60 anos. Embora tendo iniciado pesquisas com crianças há mais de 30 anos, seu trabalho é muito inovador e você têm uma abordagem teórica e experiências únicas para compartilhar conosco. Primeiro, por que você decidiu fazer pesquisas sobre e com crianças?
Bill: Decidi fazer pesquisa com crianças pequenas porque estava interessado em estudar a aquisição da linguagem. No começo dos anos de 1970, as pesquisas sobre aquisição da linguagem estavam desafiando seriamente as teorias comportamentalistas de desenvolvimento e aprendizagem das crianças, as quais, para mim, sempre foram simplistas e subestimaram as ações das crianças. Essas pesquisas motivaram o meu interesse pelas teorias construtivistas de Piaget e Vigotski. Influenciado por esses teóricos, quis ir além da aquisição da linguagem e estudar o desenvolvimento social e cultural das crianças de um modo mais geral. Ao contrário de Piaget, acreditava que as crianças pequenas eram capazes de manter uma interação contínua entre si e que seu desenvolvimento social era influenciado por interações com pares. Em 1974-75, realizei um estudo de um ano sobre crianças numa pré-escola em Berkeley, Califórnia, o qual serviu de base para meu primeiro livro, Friendship and peer culture in the early years (1985) (Amizade e cultura de pares nos primeiros anos). Tanto nesse livro como em outros artigos, eu discuti meus achados, ou seja, que as crianças não apenas contribuíam para sua própria socialização, mas que criavam e participavam de suas próprias culturas de pares. Esse primeiro trabalho também serviu de base para a minha abordagem alternativa do conceito de socialização, que eu chamei de reprodução interpretativa.
Entrevistadora: Você poderia me explicar como as crianças vêm sendo estudadas nos EUA a partir de um ponto de vista sociológico?
Bill: Embora a maioria das pesquisas sobre crianças nos EUA seja realizada por psicólogos, existem cada vez mais estudos sociológicos. Nos anos de 1970 e 1980 meus trabalhos sobre crianças pequenas foram os primeiros feitos por um sociólogo, mas os sociólogos vêm estudando os adolescentes já há algum tempo. Hoje em dia existem muito mais trabalhos de sociólogos sobre crianças pequenas também. Temos até uma sessão na American Sociological Association1 (Associação Sociológica Americana) sobre crianças e jovens, e, hoje em dia, muitos cursos são ministrados sobre a sociologia da infância. Meu livro The sociology of childhood está na sua segunda edição e é amplamente citado e utilizado em cursos. Então essa situação tem mudado drasticamente. Contudo, a sociologia da infância continua recebendo muito menos atenção que a dos adultos, aos quais se dedica um imenso leque de trabalhos sociológicos. Assim como aconteceu com as mulheres durante muitos anos, a sociologia não apresentava interesse pelas crianças. Contudo, com o desenvolvimento das teorias feministas, as mulheres e seu lugar na sociedade atual acabaram ficando no cerne das atenções. Logo, pode-se esperar que uma mesma atenção seja finalmente dada aos trabalhos sobre e com as crianças.
Entrevistadora: Que trabalhos atuais você considera importantes na área das pesquisas sobre crianças e infância?
Bill: Considero alguns dos melhores trabalhos sobre crianças e infância dos eua e do mundo inteiro no meu livro,The sociology of childhood. Outro livro muito importante é o de Barrie Thorne, Gender play (Jogos de gênero) e o livro Theorizing childhood (Teorizando a infância), dos autores britânicos Alison James, Alan Prout e Christopher Jenks. Meu livro We're friends, right?: inside kid's cultures traz uma revisão dos meus trabalhos nesses 30 últimos anos. Ainda existem trabalhos muitos importantes do sociólogo dinamarquês Jens Qvortrup e dos sociólogos britânicos Berry Mayall, Alison James, Alan Prout e Chris Jenks. Também considero o trabalho da socióloga finlandesa Leena Alanen muito importante. Em suma, existem muitos trabalhos importantes sobre crianças e jovens na Europa (especialmente na Grã-Bretanha, na Alemanha e na Escandinávia). Neste momento, estou co-escrevendo Handbook of child studies (Manual de estudos das crianças) com Jens Qvortrup, Michael-Sebastian Honig e Gill Valentine. Jens é o organizador responsável e o livro abrangerá um imenso conjunto de assuntos sobre estudos das crianças escritos por autores do mundo inteiro. Ele será provavelmente publicado pela Palgrave Press, em 2008.
Entrevistadora: Tanto em seminários na UFRGS como no grupo de pesquisa CIC (Crianças, Infância e Cultura), estive envolvida em intensas discussões sobre alguns de seus livros. Em The sociology of childhood nos concentramos em conceitos como reprodução interpretativa, culturas de pares e questões metodológicas. Nossas discussões serão obviamente enriquecidas com as suas respostas. Em The sociology of childhood, você apresentou e criticou certas teorias sobre socialização. Embora eu concorde com os seus argumentos, gostaria que você explicasse um pouco melhor o orb web model (modelo de teia circular). Ele parece bastante restritivo e, com base na minha pesquisa, venho entendendo que existem complexas interações entre gerações a partir do momento em que uma criança nasce. O que você pensa a respeito?
Bill: O modelo de teia circular serve como metáfora para substituir os "modelos de estágios" do desenvolvimento das crianças. Ele representa um modelo reprodutivo. Ele não nega que existam relações importantes entre gerações. Na realidade, os raios do modelo representam os muitos campos institucionais onde as crianças, em suas culturas de pares, são influenciadas por e influenciam as informações do mundo adulto. Contudo, cabe salientar que o "modelo redondo" é apenas um modelo para ajudar a diferenciar minha abordagem das teorias do desenvolvimento individual e não deveria ser tomado literalmente, como capturando todos os aspectos da minha teoria da reprodução interpretativa e da importância das culturas de pares das crianças. Se está pensando no conceito de atores sociais de geração em vários pontos do ciclo de vida e diferentes pontos históricos, então entendo geração e idéias sobre crescer, experiências, e contribuição ao mundo social e cultural como partes de diferentes gerações. Com cultura de pares, estou falando de crianças que produzem e criam seus próprios mundos coletivos num sentido genérico. Embora sejam afetadas pelo mundo adulto (que também afetam), as culturas de pares das crianças têm sua própria autonomia. Qualquer grupo de pares particular (que é um grupo coletivo de crianças que produz culturas de pares locais) representará uma geração particular num período histórico particular. Então estamos falando de níveis de análise e de abstração diferentes. Contudo, mais uma vez, tenho de ressaltar a autonomia das culturas de pares das crianças e dos jovens, mesmo que essas culturas de pares particulares tenham de ser colocadas num contexto histórico e cultural.
Entrevistadora: Você poderia falar sobre as vantagens e as desvantagens dos estudos longitudinais? E qual a sua opinião sobre os estudos comparativos?
Bill: Entendo que para compreender realmente os processos de reprodução interpretativa e as culturas de pares das crianças, uma meta ideal seria estudar ambos longitudinal e comparativamente. Isso nem sempre é possível, mas deveríamos fazer o máximo para consegui-lo. A maioria dos trabalhos da sociologia da infância é longitudinal e neles grupos de crianças e jovens são estudados num período de pelo menos um ano. Contudo, acredito que precisamos estudar crianças e jovens por períodos mais longos, e em transições importantes como a da família para a pré-escola, da pré-escola para a escola primária e assim por diante. Acabo de publicar um livro com minha colega italiana, Luisa Molinari, I compagni: understanding children's transition from preschool to elementary school, onde estudamos um grupo de crianças italianas durante sua transição da pré-escola para a escola primária até sua transição da escola primária para a escola de Ensino Médio, ou seja, num período de sete anos. Entendo que mais estudos longitudinais são necessários. Infelizmente, esse estudo não foi comparativo, mas comparações de achados podem ser feitas com transições de crianças nesse mesmo período em outras culturas. Não vejo qualquer fraqueza em estudos longitudinais e comparativos, mas eles são um ideal difícil de se alcançar. Precisamos de mais cooperação e trabalho colaborativo internacional e interdisciplinar para rumarmos nessa direção.
Entrevistadora: No Brasil, existem muitos materiais traduzidos de estudos italianos em educação, antropologia, psicologia, e assim por diante. Também existem filmes que nos mostram o quanto as abordagens pedagógicas nas pré-escolas italianas são inovadoras. Obviamente, isso está relacionado ao conceito de crianças como atores sociais e seres humanos capazes. Por que você escolheu fazer pesquisa na Itália?
Bill: Optei pela Itália por razões pessoais e teóricas. Por parte do meu pai, sou descendente de italianos e sempre quis aprender italiano e viver na Itália. Em teoria, queria aprofundar a idéia de que alguns aspectos da cultura de pares podem ser universais, e logo precisava fazer pesquisa fora dos EUA. A Itália era um bom lugar para começar, pois é uma sociedade industrializada, como a dos EUA, mas muito diferente em sua política sobre educação inicial da infância. A Itália tem alguns dos programas e das políticas em educação inicial mais progressistas do mundo, que atendem quase todas as crianças de 3 a 5 anos em pré-escolas mantidas pelo governo. Portanto, a Itália era uma boa escolha. Além do mais tinha alguns colegas lá e uma das doutorandas dos meus colegas Italianos, Luisa Molinari, tornou-se hoje em dia professora titular e é uma das minhas principais colegas. Também escrevi um artigo sobre o sistema pré-escolar italiano com Francesca Emiliani. E tenho relações de trabalho com outros colegas italianos, embora não tenhamos publicado juntos. Além disso, a abordagem etnográfica para estudar crianças e jovens na Itália ainda é algo muito novo e muito menos desenvolvido que em outros países europeus.
Entrevistadora: Em sua opinião, quais são as diferenças entre a educação inicial da infância americana e italiana?
Bill: Essas diferenças são muito grandes, pois, nos EUA, a educação precoce é basicamente privada e muitas pessoas acreditam que não é necessariamente a melhor coisa para as crianças, e que elas ficariam muito melhor em casa com um dos pais até começarem o jardim-de-infância no sistema escolar público, com 5 anos. De fato, o governo americano gasta milhões de dólares por ano em estudos sobre possíveis efeitos negativos do cuidado às crianças e da educação inicial das crianças com menos de 5 anos nos EUA. Essas verbas de pesquisa pareceriam absurdas para os italianos, que têm um sistema pré-escolar plenamente desenvolvido que atende quase a maioria das crianças entre 3 e 5 anos, além de uma pedagogia desenvolvida e coerente, o que é conhecido como a abordagem de Reggio-Emília. Luisa e eu falamos com mais detalhes a respeito do sistema pré-escolar e primário na Itália em nosso livro, I compagni... A Itália também tem um sistema educativo bastante desenvolvido para crianças de 18 meses a 3 anos que é bem descrito no livro Bambini: the Italian approach to infant/toddler care, organizado por Lella Gandini e Carolyn Pope Edwards (Teachers College Press, 2001). Os EUA estão muito longe atrás da Itália e de toda a Europa no que diz respeito à licença parental, aos cuidados com as crianças e à educação inicial. Os EUA vêem esses processos como responsabilidade individual da família e não do Estado.
Entrevistadora: Sei que você está interessado em começar um novo projeto sobre as festividades para crianças. Pode me dizer algo sobre seus objetivos e métodos, o tempo previsto e os países onde pretende fazer essa pesquisa?
Bill: Esse projeto ainda é muito recente e no momento estou focando principalmente no dia da Constituição na Noruega, 17 de maio, que é um dia especialmente dedicado às crianças de diversas idades. Esse feriado nacional, que tem uma longa história e celebra a independência da Suécia, foi transformado em um dia especial para as crianças e os jovens. Já que existem poucos estudos que realmente envolveram crianças e jovens sobre esse feriado, meu colega Berit O. Johannesen conduziu entrevistas com crianças e jovens com uma colega norueguesa em Trondheim, em maio de 2006. Estamos atualmente traduzindo as entrevistas e trabalhando em um artigo relacionado a esse estudo. Esperamos ampliá-lo a outras cidades norueguesas no futuro. Também estou muito interessado nas informações que você me mandou sobre o 12 de outubro (Schueler, Delgado & Müller, 2006), como sendo o Dia das Crianças no Brasil, e espero visitar o Brasil nesse dia e começar um estudo num futuro próximo. A meta geral seria obter uma ampla amostra internacional de festividades e dias das crianças nos próximos dez anos aproximadamente.

Referências bibliográficas
CORSARO, W.A. Friendship and peer culture in the early years. Norwood, N.J.: Ablex, 1985. (Reimpresso em: HANDEL, G. (Ed.). Childhood socialization. New York: Aldine, 1989, 2001).
COOK-GUMPERZ, J.; CORSARO, W.A.; Streeck, J. (Ed.). Children's worlds and children's language. Berlin: Mouton, 1986.
CORSARO, W.A.; Miller, P.J. (Ed.). Interpretive approaches to children's socialization. New Directions for Child Development, San Francisco, n. 58, p. 5-23, 1992.
CORSARO, W.A. The sociology of childhood. Thousand Oaks, California: Pine Forge Press, 1997. (Reimpresso em dinamarquês como Barndommens sociologi. Copenhague, Dinamarca: Glydendalske Boghandel, 2002. Reimpresso em italiano como Le culture dei bambini. Bolonha, Itália: il Mulino, 2003).
CORSARO, W.A. We're friends, right?: inside kids' cultures. Washington, dc: Joseph Henry Press, 2003.
CORSARO, W.A. The sociology of childhood. 2. ed. Thousand Oaks, California: Pine Forge Press, 2005a.
CORSARO, W.A. Entrada no campo, aceitação e natureza da participação nos estudos etnográficos com crianças pequenas. Educação & Sociedade, Campinas, v. 26, n. 91, p. 443-464, maio-ago. 2005b.
CORSARO, W.A.; Molinari, L. I compagni: understanding children's transition from preschool to elementary school. New York: Teachers College Press, 2005c.
QVORTRUP, J. et al. (Ed.). Handbook of child studies. London: Palgrave Press. (No prelo).
SCHUELER, A.F.M.; DELGADO, A.C.; MÜLLER, F. Festivities for children in Brazil. Porto Alegre, 2006. 20p. (Relatório).
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* Tradução de Alain François e revisão técnica de Fernanda Müller. 
1. Informações podem ser acessadas no site <http://www.asanet.org>.

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segunda-feira, 28 de maio de 2012

Paragens de uma filosofia política da sociologia do trabalho: qual sindicato?


Bem, o texto abaixo é de já algum tempo. Alguns mails pedem-me uma apreciação sobre o sindicalismo brasileiro. Respondo então por via da reprodução desse texto, escrito em parceria com o meu amigo gaúcho Carlos Machado. 

Robert Michels y los sindicatos: polémica y actualidad

Ivonaldo Leite, Universidad Federal de Paraíba, Brasil  
Carlos Machado, Universidad Federal del Río Grande/RS, Brasil 

Robert Michels es un clásico desconocido del pensamiento sociopolítico inscrito en la gran corriente crítica europea de los movimientos iniciales del siglo XX. Alemán por nacimiento, durante toda su vida mantuvo contacto con los ambientes francés y belga, lo cual lo acercó, después de algunas incursiones en el pensamiento inglés de avanzada y en ciertos círculos estadounidenses, al mundo ítalo, donde encontró su auténtica filiación espiritual, al grado de convertirse en ciudadano italiano.
Si bien su obra no alcanza la altura de la de Marx, Durkheim y Weber, entre otros clásicos del pensamiento social, ella es todavía bastante original. A originalidad deMichels, consistente en haber estudiado de cerca de las tendencias oligárquicas de las organizaciones sociales, lo sitúa en un lugar especial dentro del vertiginoso mundo de las corrientes ideológicas europeas que sacudieron y redefinieron el orden mundial. Su obra guarda relación con figuras de la talla de Gaetano Mosca o Georges Sorel, quienes gozaron de la controvertida consideración de los simpatizantes del socialismo libertario. Pero la polémica es algo mucho presente en la obra de Michels, y por causa de algunos de sus argumentos él manifestó apoyo à la derecha italiana. No obstante, como nosotros sabemos, en algunos momentos, no es correcto condenar una obra por causa de las opciones personales de su autor.
La obra clásica de Michels es Sociología de los Partidos Políticos, publicada en 1915, en Basilea, en plena Primera Guerra Mundial. Él analiza partidos y organizaciones de trabajadores, como los sindicatos, y muestra los límites para la vivencia de la democracia en ese contexto. Conforme el autor, existe una tendencia hacia la formación de un grupo cuantitativamente pequeño con cualidades de liderazgo y clara hegemonía en sus ideas en los partidos, sindicatos, otras organizaciones y, de modo general, en la democracia moderna. Ese grupo transformarse en un grupo oligárquico y pone serios obstáculos al mantenimiento de la democracia en las organizaciones. El dicho grupo impone lo que Michels llamó ley de hierro de la oligarquía. No obstante en la tesis de Michels exista alguna semejanza con la idea de aristocracia obrera, ella todavía es portadora de un background diferente.
La tesis de Michels tienen así fuertes implicaciones para los sindicatos. Según ella, hay siempre una tendencia para la formación de grupos oligárquicos en el interior de estas organizaciones. En este mismo campo, Lipset desarrolló una investigación que afirmó otros resultados, pero su conclusión no negó la formulación de Michels. Al contrario, la su conclusión era que su investigación constituía apenas una “desviación” en el tocante la ley de hierro de la oligarquía1. Edelstein y Warner todavía piensan diferente2.
Elles no aceptan la idea de que los sindicatos presenten una tendencia inevitable hacia la “oligarquización”. Estos autores desarrollaron el “modelo electoral”, modelo que permite hacer un diagnóstico del grado de democracia y/o oligarquía que existe en los sindicatos de trabajadores. De acuerdo con elles, existe una continuidad entre democracia y oligarquía y, en ciertos contextos, es casi imposible precisar si un determinado sindicato es democrático o oligárquico3. Al centrar su atención sobre los mecanismos electorales, Edelstein y Warner establecieron ciertos indicadores que permiten conocer el grado de democracia y/o oligarquía en un sindicato. Primero, la efectividad de un grupo opositor es una clara condición dentro de esta concepción de democracia. Esta efectividad es representada por la existencia de elecciones, disputas al menos por dos planillas, lo cual es una segunda condición para existencia de democracia. Además, como tercera condición, la oposición debe tener la posibilidad de derrotar al grupo en el poder por la vía legal. Este indicador podría ser establecido como la habilidad de la oposición para recibir un número significativo de votos. Esto significa que, cuanto más apretado sea el resultado de las elecciones, más democrático será el sindicato. Finalmente, se la oposición es lo suficientemente fuerte para vencer en las elecciones, el grado de sustitución de los líderes es un factor importante para medir el grado de democracia existente en un dado sindicato.
Sin negar la importancia de estas formulaciones teóricas, es necesario todavía tener en cuenta que la política tiene que ver con el poder y no simplemente con las elecciones. Parece mismo una cierta ingenuidad acreditar que los procesos electorales son razón suficiente para indicar la existencia de una vida democrática y libre en lo interior de los sindicatos, predominando las aspiraciones independientes de los trabajadores. Es por eso, nosotros hacemos hincapié, que algunas formulaciones de Michels son de extrema actualidad para el debate analítico contemporáneo sobre sindicalismo.
Es difícil, en un enfoque analítico serio sobre los sindicatos actualmente, no constatar el aumento de la burocratización y del personalismo en sus direcciones. Son pocos los sindicatos en situación diferente de esta. Elles son minorías que, como ha afirmado Kim Moody, hacen un sindicalismo de movimiento social4Apenas minorías.
Mismo en realidades adonde se desarrolló experiencias sindicales nuevas, como en el Brasil con la CUT (Central Única de los Trabajadores), actualmente constatase una especie de degeneración de los aparéelos sindicales. El sindicalismo fundado por Lula quedó en un conjunto de impasses, que en buena parte no son diferentes de las contradicciones que tomaran cuenta de su PT (Partido de los Trabajadores). Existe manifestaciones oligárquicas en ambos.
Es por eso y por otros factores que, aproximadamente un siglo después de su producción, la obra de Michels continua polémica y actual. Alias, para nuestra sorpresa, de vez en cuando, la ley de hierro es imposta hasta mismo por sectores que nacieran negándola.
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1 - Lipset, S. M., Union Democracy: the Inside Politics of the International Typographical Union. Nueva York: Free Press.
2 - Edelstein, J. D. y Warner, M., Comparative Union Democracy: Organisation and Opposition in British and American Unions. Londres: Allen & Unwin.
3 - Morais, Jorge Ventura de & Medeiros, Rejane, “Dinámica de la política interna del “nuevo” sindicalismo brasileño, in Revista Mexicana de Sociologia, vol 59, num. 1, enero-marzo, 1997, pp. 205-227.
4 - Moody, Kim, Workers in a Lean World, Londres: Verso, 1997.


domingo, 27 de maio de 2012

Bolsas de Estudo Erasmus Mundus Brasil

Aos interessados em bolsas de estudo e formação no estrangeiro, cabe conhecer o Erasmus Mundus Brasil. Programa oriundo da União Europeia, o Erasmus Mundus revelou-se uma inciativa de relevância no plano do intercâmbio e da mobilidade universitária (infelizmente, pouco conhecido e divulgado pelos serviços de relações internacionais de universidades brasileirias). Informações sobre o Programa, no Brasil, abaixo.


O QUE É O PROGRAMA ERASMUS MUNDUS?


O Erasmus Mundus (EM) é um programa de mobilidade criado e financiado pela União Européia (UE). As atividades do programa têm como objetivo promover a excelência da educação superior e pesquisa dos países europeus e ao mesmo tempo reforçar os laços acadêmicos com países de todo o mundo.
As bolsas de estudos integrais concedidas para os cursos de mestrado e doutorado pertencentes ao EM são amplamente conhecidas, no entanto, o programa também oferece oportunidades para professores e instituições de educação superior.
O EM foi criado em 2004 e se desenvolve em fases segundo a disponibilidade de fundos da UE:
Fase 1 (2004-2008): que se baseou principalmente em bolsas para alunos não-europeus cursar mestrados conjuntos oferecidos por 3 ou mais universidades européias. É importante lembrar que esses mestrados são especificamente concebidos e oferecidos pelos consórcios de universidades européias dentro do programa Erasmus Mundus.
Fase 2 (2009-2013): devido ao sucesso da primeira fase o programa foi renovado e suas ações ampliadas. O EM agora se estrutura em 3 eixos (ações). A participação brasileira pode se encaixar nas seguintes modalidades:


 - Açao 1: bolsas de mestrado e doutorado de alto nível para cursos conjuntos EM


 - Açao 2: redes em disciplinas específicas formadas por instituições brasileiras e européias (incluindo bolsas)


- Açao 3: consórcios institucionais para a promoção do ensino superior europeu
Se você é um estudante em busca de um curso de mestrado ou doutorado visite a seção “Os Cursos” no menu superior.
Se você representa uma instituição de educação superior interessada em participar em uma rede acadêmica visite este site.
Se você é um membro da comunidade acadêmica (professor ou gestor) interessado em um auxílio para professores visitantes na Europa, verifique se sua instituição é membro de uma rede ativa na sua área acadêmica específica e entre em contato diretamente com o ponto de contato na sua instituição. 
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University and Higher Education (Universidade e Educação Superior)

O misto de historiador e sociólogo, Immanuel Wallerstein dispensa apresentações. Autor de trabalhos clássicos, como O Moderno Sistema Mundial, tem, a partir da prestigiosa Binghamton University, defendido uma perspectiva alternativa para as Ciências Humanas, cujas linhas gerais, em língua portuguesa, podem  ser encontradas no livro Para Abrir as Ciências Sociais (Editora Cortez). Exerceu influência significativa na escola (parece que já se pode dizer assim) de ciência social propugnada por Boaventura de Sousa Santos. Pois bem, Wallerstein também tem levado a cabo atiladas abordagens sobre a universidade. O breve texto abaixo bem demonstra isto. 


"Higher Education Under Attack"

by Immanuel Wallerstein

For a very long time there were only a few universities in the world. The total student body in these institutions was very small. This small group of students was drawn largely from the upper classes. Attending the university conferred great prestige and reflected great privilege.

This picture began to change radically after 1945. The number of universities began to expand considerably, and the percentage of persons in the age range that attended universities began to expand. Furthermore, this was not merely a question of expansion in those countries that had already had universities of note. University education was launched in a large number of countries that had few or no university institutions before 1945. Higher education became worldwide.

The pressure for expansion came from above and below. From above, governments felt an important need for more university graduates to ensure their capacity to compete in the more complex technologies that were required in the exploding expansion of the world-economy. And from below, large numbers of the middle strata and even of the lower strata of the world's populations were insistent that they have access to higher education in order to improve considerably their economic and social prospects.

The expansion of the universities, which was remarkable in size, was made possible by the enormous upward expansion of the world-economy after 1945, the biggest in the history of the modern world-system. There was plenty of money available for the universities, and they were happy to make use of it.

Of course, this changed the university systems somewhat. Individual universities became much larger and began to lose the quality of intimacy that smaller structures provided. The class composition of the student body, and then of the professorate, evolved. In many countries, expansion not only meant a reduction in the monopoly of upper strata persons as students, professors, and administrators, but it often meant that "minority" groups and women began to have wider access, which had previously been totally or at least partially denied.

This rosy picture came into difficulty after about 1970. For one thing, the world-economy entered its long stagnation. And little by little, the amount of money that universities received, largely from the states, began to diminish. At the same time, the costs of university education continued to rise, and the pressures from below for continued expansion grew even stronger. The story ever since has been that of the two curves going in opposite directions - less money and increased expenses.

By the time we arrived at the twenty-first century, this situation became dire. How have universities coped? One major way was what we have come to call “privatization.” Most universities before 1945, and even before 1970, were state institutions. The one significant exception was the United States, which had a large number of non-state institutions, most of which had evolved from religiously-based institutions. But even in these U.S. private institutions, the universities were run as non-profit structures.

What privatization began to mean throughout the world was several things: One, there began to be institutions of higher education that were established as businesses for profit. Two, public institutions began to seek and obtain money from corporate donors, which began to intrude in the internal governance of the universities. And three, universities began to seek patents for work that researchers at the university had discovered or invented, and thereupon entered as operators in the economy, that is, as businesses.

In a situation in which money was scarce, or at least seemed scarce, universities began to transform themselves into more business-like institutions. This could be seen in two major ways. The top administrative positions of universities and their faculties, which had traditionally been occupied by academics, now began to be occupied by persons whose background was in business and not university life. They raised the money, but they also began to set the criteria of allocation of the money.

There began to be evaluations of whole universities and of departments within universities in terms of their output for the money invested. This might be measured by how many students wished to pursue particular studies, or how esteemed was the research output of given universities or departments. Intellectual life was being judged by pseudo-market criteria. Even student recruitment was being measured by how much money was brought in via alternative methods of recruitment.

And, if this weren't enough, the universities began to come under attack from a basically anti-intellectual far right current that saw the universities as secular, anti-religious institutions. The university as a critical institution - critical of dominant groups and dominant ideologies - had always met with resistance and repression by the states and the elites. But their powers of survival had always been rooted in their relative financial autonomy based on the low real cost of operation. This was the university of yesteryear, not of today - and tomorrow.

One can write this off as simply one more aspect of the global chaos in which we are now living. Except that the universities were supposed to play the role of one major locus (not of course the only one) of analysis of the realities of our world-system. It is such analyses that may make possible the successful navigation of the chaotic transition towards a new, and hopefully better, world order. At the moment, the turmoil within the universities seems no easier to resolve than the turmoil in the world-economy. And even less attention is being paid to it.
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sábado, 26 de maio de 2012

O Professor hoje: um 'trabalhador da contradição'

Teórico das Ciências da Educação, designadamente da Sociologia da Educação, o francês Bernard Charlot, por razões familiares, deixou a França e se estabeleceu no Brasil. Decerto, com a sua boa verve, tem dado uma significativa contribuição ao árido pensamento educacional brasileiro - sempre tão previsível na mera citação de autores e no oba-oba em torno de determinadas ideias. O texto dele que a seguir reproduzo é um exemplo da sua argúcia analítica na abordagem da problemática educacional contemporânea. 

O PROFESSOR NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA: UM TRABALHADOR DA CONTRADIÇÃO
Bernard Charlot [1]

Fonte: Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 17, n. 30, p. 17-31, jul./dez. 2008

RESUMO
O artigo pretende confrontar as injunções da sociedade contemporânea com o que está vivendo o professor “normal”, isto é, a professora que atua a cada dia numa dessas salas de aula que constituem a realidade educacional brasileira. O professor enfrenta contradições que decorrem da contemporaneidade econômica, social e cultural: deve ensinar a todos os alunos em uma escola e uma sociedade regidas pela lei da concorrência, transmitir saberes a alunos cuja maioria quer, antes de tudo, “passar de ano” etc. Essas contradições, porém, não são um simples reflexo das contradições sociais; arraigam-se, também, nas tensões inerentes ao próprio ato de ensino/aprendizagem. O artigo analisa como essas tensões tornam-se contradições na sociedade contemporânea. Destaca seis pontos. O professor é herói ou vítima? É “culpa” do aluno ou do professor? O professor deve ser tradicional ou construtivista? Ser universalista ou respeitar as diferenças? Restaurar a autoridade ou amar os alunos? A escola deve vincular-se à comunidade ou afirmar-se como lugar específico?

Palavras-chaves: Professor – Ensino – Contemporaneidade – Contradições

ABSTRACT
THE TEACHER IN CONTEMPORARY SOCIETY: A WORKER OF CONTRADICTION

The article intends to confront the injunctions of the contemporary society with what the normal professor is living, that is, the teacher who acts every day in one of these classrooms that constitute the Brazilian educational reality. The professor faces contradictions that follow from the economic, social and cultural contemporaneousness: he must teach to all the pupils in a school and a society dominated by the rule or competition, transmit knowledges to pupils whose majority wants, more than everything, to be promoted to the next grade, etc. These contradictions, however, are not simples consequences of the social contradictions; they are rooted, also, in the peculiar tensions between teaching and learning. The paper analyzes how these tensions become contradictions in the contemporary society. It emphasizes six questions. Is the professor hero or victim? Who is guilty, pupil or professor? Must the professor be traditional or constructivist? Must he/she be universalist or respect differences? Must he/she demonstrate authority or must he/she love pupils? Must school be linked with the community or must school be emphasized as a specific place?

Keywords: Teacher – Teaching – Contemporaneousness – Contradictions

Em 1999, António Nóvoa publicou um artigo intitulado “Os Professores na Virada do Milênio: do excesso dos discursos à pobreza das práticas”. No resumo do artigo, ressaltou os seguintes pontos.
A chave de leitura do artigo é a lógica excesso-pobreza,aplicada ao exame da situação dos professores:

do excesso da retórica política e dos mass-media à pobreza das políticas educativas; do excesso das linguagens dos especialistas internacionais à pobreza dos programas de formação de professores; do excesso  do discurso científico-educacional à pobreza das práticas pedagógicas e do excesso das “vozes” dos professores à pobreza das práticas associativas docentes. Não recusando um pensamento “utópico”, o autor critica as análises “prospectivas” que revelam um “excesso de futuro” que é, ao mesmo tempo, um “déficit de presente” (NÓVOA, 1999).

Quando se reflete sobre os desafios encarados pelos professores na sociedade contemporânea, é
preciso não esquecer a advertência: ao acumular palavras ou expressões como “globalização”, “inovações”, “sociedade do saber”, “novas tecnologias de informação e comunicação”, corre-se o risco de sacrificar a análise do presente à visão profética do futuro. Contudo, em uma sociedade cujo projeto é o “desenvolvimento” e que está vivendo uma fase de transformações rápidas e profundas e em se tratando da formação das crianças, é difícil evitar a perspectiva do futuro quando se fala da educação. Parece-me possível superar a dificuldade analisando as contradições que o professor contemporâneo deve enfrentar. Elas decorrem do choque entre as práticas do professor atual e as injunções dirigidas ao futuro professor ideal. São elas, a meu ver, que levam ao “excesso dos discursos”. Essa é a chave de leitura deste artigo, que pretende confrontar as injunções da sociedade contemporânea com o que está vivendo o professor “normal”, isto é, a professora que atua a cada dia numa dessas salas de aula que constituem a realidade educacional brasileira.

1. A escola e o professor na encruzilhada das contradições econômicas, sociais e culturais
 Até a década de 50 do século XX, a escola primária cumpre funções de alfabetização, transmissão de conhecimentos elementares e, como diziam no século XIX, “moralização do povo pela educação”. Poucas crianças seguem estudando além desse nível primário. Aliás, no Brasil, uma grande parte da população nem é alfabetizada, por não entrar na escola primária ou nela permanecer pouco tempo. Quanto aos jovens das classes populares, saem da escola para trabalhar na roça, numa loja, etc., sejam eles bem-sucedidos ou fracassados.
Para as crianças do povo, a escola não abre perspectivas profissionais e não promete ascensão social, com exceção de uma pequena minoria que, muitas vezes, passa a ensinar na escola primária. Os jovens oriundos da classe média continuam estudando além da escola primária, mas, na maioria das vezes, esses estudos os levam às posições sociais a que já eram destinados.
Portanto, a escola não cumpre um papel importante na distribuição das posições sociais e no futuro da criança e, conseqüentemente, a vida dentro da escola fica calma, sem fortes turbulências. Alunos fracassam, mas esse fracasso é apenas um problema pedagógico, não acarreta conseqüências dramáticas e, sendo assim, não é objeto de debate social. Não se fala sobre a “violência escolar”; decerto, há atos de indisciplina e pequenas violências entre as crianças, mas estão na “ordem das coisas” e não preocupam a opinião pública e os professores. Isso não significa dizer que não haja debates sobre a escola, por exemplo, na década de 30 no Brasil. Não se discute, porém, o que está acontecendo dentro da escola; debate-se o acesso à escola e a contribuição do ensino para a modernização do país. As contradições relativas à escola são contradições sociais a respeito da escola e não contradições dentro da escola. Em tal configuração socioescolar, a posição social dos professores, a sua imagem na opinião pública, o seu trabalho na sala de aula são claramente definidos e estáveis. O professor é mal pago, mas é respeitado e sabe qual é a sua função social e quais devem ser as suas práticas na sala de aula. Essa configuração histórica muda por inteiro a partir dos anos 60 e 70 do século XX. Na maioria dos países do mundo, a escola passa a ser pensada na perspectiva do desenvolvimento econômico e social; é o caso nos Estados-Unidos, na França, no Japão e nos países do Sudeste Asiático, no Brasil, nos países africanos, etc. Essa nova perspectiva leva a um esforço para universalizar a escola primária e, a seguir, o ensino fundamental. Dessa época para cá, aos poucos ingressam na escola, em níveis cada vez mais avançados, rapazes e moças pertencentes a camadas sociais que, outrora, não tinham acesso à escola ou apenas cursavam as primeiras séries. Esse movimento de expansão escolar é organizado e pilotado, antes de tudo, pelo Estado.
Doravante, o fato de ter ido à escola, ter estudado até certo nível de escolaridade, ter obtido um diploma abre perspectivas de inserção profissional e ascensão social. Com efeito, estudos e diplomas permitem conseguir empregos gerados pelo desenvolvimento econômico e social e pela expansão da própria escola. Começa a se impor um novo modelo de ingresso na vida adulta, modelo esse que articula nível de estudos a posição profissional e social. Apesar das taxas elevadas de desemprego e da importância da economia informal, esse modelo já predomina no Brasil: a história escolar de uma criança acarreta conseqüências importantes, efetivas ou potenciais, para sua vida futura. Em tal configuração socioescolar, a contradição entra para a escola. Primeiro, porque, doravante, importa muito o fato de ter sido bem-sucedido na escola ou, ao contrário, fracassado, o que torna mais angustiada a relação dos alunos e dos pais com a escola e mais tensa a sua relação com os professores. A nota e o diploma medem o valor da pessoa e prenunciam o futuro do filho. Não basta tirar uma nota boa e obter um bom diploma, é preciso conseguir notas e diplomas superiores aos dos demais alunos para conquistar as melhores vagas no mercado de trabalho e ocupar as posições sociais mais lucrativas e prestigiosas. A escola vira espaço de concorrência entre crianças. Em segundo lugar, as novas camadas sociais que ingressam para a escola, em particular para o último segmento do ensino fundamental, importam para o universo escolar comportamentos, atitudes, relações com a escola e com o que nela se estuda, que não combinam com a tradição e até com a função da escola. Esses “novos alunos” encontram dificuldades para atender às exigências da escola no que diz respeito às aprendizagens e à disciplina. Ademais, já se desenvolvem novas fontes de informação e de conhecimento, em especial a televisão, mais atraentes para os alunos do que a escola. Em terceiro lugar, os professores sofrem novas pressões sociais. Já que os resultados escolares dos alunos são importantes para as famílias e para “o futuro do país”, os professores são vigiados, criticados. Vão se multiplicando os discursos sobre a escola, mas também sobre os professores. No entanto, os salários dos professores permanecem baixos e, no Brasil, até muito baixos. Com efeito, o salário auferido por uma categoria profissional não depende apenas da importância social da sua função e da competência requerida para cumpri-la, mas, também, da raridade das pessoas aptas a ocupar a mesma vaga. Ora, com a expansão da escola, em particular nas camadas sociais populares, desprovidas das redes relacionais que possibilitam conseguir os empregos mais cobiçados, são cada vez mais numerosas as pessoas diplomadas e aptas a ensinar. Por todas essas razões, a contradição entra na escola e desestabiliza a função docente. A sociedade tende a imputar aos próprios professores a responsabilidade dessas contradições. Até as práticas pedagógicas, cuja eficácia parecia comprovada pela tradição, são questionadas e criticadas: começa a ser desprezado o professor “tradicional”. Perduram até os dias atuais as funções conferidas à escola nos anos 60 e 70, os pedidos a ela endereçados, as contradições que ela deve enfrentar e, portanto, a desestabilização da função docente. Nessa base, contudo, dá-se uma nova guinada nas décadas de 80 e 90. Esta é geralmente atribuída à “globalização”, fenômeno bastante escuro nas mentes, mas percebido como ameaça e exigência inelutável. Na verdade, a própria globalização, isto é, o desenvolvimento de redes transnacionais
pelas quais transitam fluxos de mercadorias, serviços, capitais, informações, imagens, etc., até agora surtiu poucos efeitos diretos em países como o Brasil (CHARLOT, 2007). As mudanças, incluídas aquelas que dizem respeito à escola, decorrem das novas lógicas neoliberais, impondo
a sua versão da modernização econômica e social. Essas lógicas são ligadas à globalização, mas
constituem um fenômeno mais amplo. Podem ser resumidas da seguinte forma. Primeiro, tornam-se predominantes as exigências de eficácia e qualidade da ação e da produção social, inclusive quando se trata de educação. Em segundo lugar, essas exigências levam a considerar o fim do ensino médio como o nível desejável de formação da população em um país que ambiciona enfrentar a concorrência internacional e a abrir as portas do ensino superior a uma parte maior da juventude. Por um efeito de feedback, crescem as exigências atinentes à qualidade do ensino fundamental. Em terceiro lugar, a ideologia neoliberal impõe a idéia de que a “lei do mercado” é o melhor meio, e até o único, para alcançar eficácia e qualidade. Multiplicam-se as privatizações, inclusive, em alguns países, em especial no Brasil, as do ensino, quer fundamental, quer médio, quer superior ainda mais. De modo geral, a esfera na qual o Estado atua diretamente reduz-se. O Estado recua, em proveito do “global” e, ainda, do “local”, beneficiado pelo recuo do Estado. Por fim, desenvolvem-se em ritmo rápido novas tecnologias de informação e comunicação: computador, Internet, CD-ROM, celular. Dessa
forma, nascem e crescem espaços de comunicação e informação que escapam ao controle da escola e da família e que fascinam particularmente os jovens: MSM, Orkut etc. Todas essas transformações têm conseqüências sobre a profissão docente, desestabilizada não apenas pelas exigências crescentes dos pais e da opinião pública, mas também na sua posição profissional (nas escolas particulares), na sua posição diante de seus alunos, nas suas práticas. Hoje em dia, o professor já não é um funcionário que deve aplicar regras predefinidas, cuja execução é controlada pela sua hierarquia; é, sim, um profissional que deve resolver os problemas. A injunção passou a ser: “faça o que quiser, mas resolva aquele problema”. O professor ganhou uma autonomia profissional mais ampla, mas, agora, é responsabilizado pelos resultados, em particular pelo fracasso dos alunos. Vigia-se menos a conformidade da atuação do professor com as normas oficiais, mas avaliam-se cada vez mais os alunos, sendo a avaliação o  contrapeso lógico da autonomia profissional do docente. Essa mudança de política implica numa transformação identitária do professor. Para resolver os problemas, o professor é convidado a adaptar sua ação ao contexto. A escola e os professores devem elaborar um projeto político-pedagógico, levando em conta as características do bairro e dos alunos, mobilizar recursos culturais e financeiros que possibilitem melhorar a eficácia e a qualidade da formação, tecer parcerias, desenvolver projetos com os alunos etc. Essas novas exigências requerem uma cultura profissional que não é a cultura tradicional do universo docente; o professor, que não foi e ainda não é formado para tanto, fica um pouco perdido. O professor deve, agora, pensar de modo, ao mesmo tempo, “global” e “local”. Há de preparar os seus alunos para uma sociedade globalizada e, também, de “ligar a escola à comunidade”. Esse global, o professor encontra-o, sobretudo, sob forma da cultura informática. Esta o coloca face a uma tripla dificuldade. Primeiro, o acesso fácil a inumeráveis informações, graças à Internet, faz com que o docente já
não seja para o aluno, como foi outrora, a única, nem sequer a principal fonte de informações sobre o mundo. Sendo assim, é preciso redefinir a função do professor, para que este não seja desvalorizado. Mas esse trabalho de redefinição ainda não foi esboçado. Ademais, o interesse dos alunos pela comunicação por Internet e por celular faz com que eles leiam cada vez menos textos impressos, enquanto esse tipo de textos permanece a base da aprendizagem escolar da língua e da cultura escolar, e inventam novas formas lingüísticas em uma comunicação “pingue-pongue”. Por fim, o professor é convidado a utilizar essas novas tecnologias no seu ensino e as escolas recebem computadores. O professor alega que não foi formado para tanto. É verdade, mas há dois obstáculos ainda maiores ao uso pedagógico dessas novas tecnologias. Primeiro, existe uma diferença entre “informação” e “saber”: como usar as informações disponibilizadas pela Internet para transmitir ou construir saberes? Se não for desenvolvida uma reflexão fundamental sobre esse assunto, os computadores permanecerão nos armários das escolas, ou numa sala trancada. Segundo, a “forma escolar”, isto é, as estruturas de espaço e tempo das escolas, a forma como os alunos são distribuídos em turmas, os modos de avaliar não combinam com o uso pedagógico do computador e da Internet. Como já mencionado, o professor defronta-se, ainda, com novos tipos de alunos, cujos modos de pensamento pouco condizem com o que requer o sucesso escolar. Ao levar à idéia de uma construção, ou reconstrução, do saber pelo aluno, de forma ativa, em um processo de mobilização intelectual, as pesquisas em Psicologia, Sociologia, Epistemologia, Educação propõem ao professor uma solução, amplamente difundida pelos centros de formação. Contudo, a proposta “construtivista”, por valiosa que seja em si, implica formas de organização e de avaliação escolares diferentes das que estruturam a escola atual. Resta o construtivismo como injunção endereçada ao professor, vara mágica que poderia resolver os problemas atuais da escola, dos professores e dos alunos. Por fim, o professor sofre os efeitos de uma contradição radical da sociedade capitalista contemporânea.
Por um lado, esta precisa de trabalhadores cada vez mais reflexivos, criativos, responsáveis, autônomos – e, também, de consumidores cada vez mais informados e críticos. Por outro lado, porém, ela promove uma concorrência generalizada, em todas as áreas da vida, trate-se de produção, de serviço, de lazer e até de beleza.  Sendo assim, uma formação cada vez mais ambiciosa é proposta a alunos visando cada vez mais à nota e não ao saber. As avaliações nacionais (SAEB, ENEM, no Brasil) e internacionais (PISA) e o vestibular brasileiro, que norteia o ensino médio e, de forma indireta, o ensino fundamental e, às vezes, a educação infantil, acentuam essa focalização dos alunos e dos professores sobre a nota. O próprio professor encarna essa contradição radical: sonha em transmitir saberes e formar jovens, mas vive dando notas a alunos. De forma mais ampla, o professor trabalha emaranhado em tensões e contradições arraigadas nas contradições econômicas, sociais e culturais da sociedade contemporânea.


2. As contradições no cotidiano: a professora na escola e na sala de aula
 O professor é uma figura simbólica sobre a qual são projetadas muitas contradições econômicas, sociais e culturais. Contudo, seria um erro considerar que as contradições enfrentadas pela professora[2] , no cotidiano, são um simples reflexo das ras que se sentem vítimas da sociedade, dos pais, dos alunos, das Secretarias de Educação etc. Do mesmo modo, para quem falam os professores universitários e demais formadores de docentes? Para professoras que encarnam o patrimônio universal do saber, que entendem tudo de Piaget, Vygotsky, Freud, Marx e mais alguns, que adoram se comunicar com os jovens e, ainda, redigir planejamentos detalhados, que amam todas as crianças, até as mais violentas e chatas e, além disso, que não pedem “receitas” para conseguirem ser heroínas e santas. O que é essa profissão em que, para ser um bom profissional, deve-se ser santo ou militante? No discurso pedagogicamente correto, cadê a professora “normal”, isto é, a professora que prefere ir à praia ou namorar a dar aula de matemática? Isso não significa dizer que não seja uma boa professora. Qual é exatamente a função daquele discurso heróico? A esse respeito, vale refletir sobre a função desempenhada, nos debates sobre a escola, pelos exemplos de escolas famosas, que se tornaram radicalmente diferentes das escolas triviais – como, nos dias atuais, a escola portuguesa da Ponte, cuja história é divulgada pelo Brasil, com talento, por José Pacheco, um dos seus atores (PACHECO, 2003; 2006). Não há dúvida alguma de que essa escola seja interessante, como é a sua apresentação por José Pacheco. O problema é outro: por que esse exemplo comove tanto professoras que nunca tentaram fazer o mesmo e, na sua maioria, iriam recusar tal aventura se lhes fosse proposta? Avanço a hipótese de que tais exemplos e, de forma mais geral, os discursos heróicos sobre a educação e a escola, satisfazem a “parte do sonho” que subsiste nas professoras, por mais difíceis e afastadas do ideal que sejam as suas condições reais de trabalho. O professor herói é o Eu Ideal coletivo que possibilita às professoras agüentarem o seu trabalho cotidiano. Do lado da Instituição de formação, ele é a prova de que “isso é possível”, que quem quer mesmo mudar, pode. Desse ponto de vista, existe uma convergência implícita entre os propagadores de exemplos famosos e o discurso universitário pedagogicamente correto, apesar do desprezo explícito para com a universidade manifestado, muitas vezes, por esses propagadores. Os discursos são iguais: quem quiser, pode. O discurso é certo, mas incompleto: quem quiser, pode, contanto que assuma a postura de herói, santo, militante. O problema é que há, no Brasil, cerca de 2,4 milhões de “funções docentes”[3] . Será que teremos de esperar que tanta gente se converta ao heroísmo para mudar a escola brasileira? Os docentes têm consciência dessa injunção heróica e reclamam. Recentemente, após uma palestra em que tinha explicado que os alunos se queixam da rotina escolar e avançado a idéia da escola como lugar de aventura intelectual, recebi, por escrito, a seguinte “pergunta”, que foi bastante aplaudida pela platéia de professores.

O professor está sempre errado.
* é jovem: não tem experiência
* é velho: está superado
* chama atenção: é grosso
* não chama atenção: não tem moral
* usa a língua portuguesa corretamente: ninguém entende
* fala a linguagem do aluno: não tem vocabulário
* tem carro: chora de barriga cheia
* anda de ônibus: é coitado
* o aluno é aprovado: deu mole
* o aluno é reprovado: perseguição.
Como implementar uma aventura intelectual nas escolas, marcadas por transformações sociais?

Esse texto evidencia três fenômenos. Primeiro: o professor tem consciência de estar preso em discursos contraditórios. Segundo: ele interpreta essas contradições em termos pessoais, ainda que entenda que são ligadas a transformações sociais. Terceiro fenômeno: essa situação gera vitimização, indignação e desmobilização profissional. Por um lado, o herói da Pedagogia. Por outro, a vítima, mal paga e sempre criticada. Falta o professor normal, que trabalha para ganhar um salário e sustentar sua família, que vive situações esgotantes e, também, prazeres dos quais pouco fala, que se sente objeto de críticas, mas, afinal de contas, orgulha-se do trabalho feito, que ensina com rotinas provadas, mas, às vezes, abre parênteses construtivistas. Ao silenciar, o professor normal conforta-se, o que Peter Woods (1990) chama de “estratégias de sobrevivência”. O primeiro objetivo do professor, explica ele, é sobreviver, profissional e psicologicamente, e só a seguir vêm os objetivos de formação dos alunos. Quanto mais difíceis as condições de trabalho, mais predominam as estratégias de sobrevivência. Avanço a hipótese de que são essas estratégias de sobrevivência, e não uma misteriosa “resistência à mudança”, que freiam as tentativas de reforma ou inovação pedagógica. Quem propõe uma mudança significativa desestabiliza as estratégias de sobrevivência do professor e este não recusa a mudança, mas a reinterpreta na lógica de suas estratégias de sobrevivência – o que, muitas vezes, acaba por esvaziar o sentido da inovação. Esse balanço do professor, entre herói e vítima, é um efeito estrutural, inerente à própria situação de ensino, como será explicitado na próxima seção deste artigo. Entretanto, pode ser mais ou menos amplo. Quando o professor se sente amparado pela sociedade e pela Instituição escolar, trata-se apenas de um balanço de pouca amplitude, que se manifesta quando ocorrem dificuldades profissionais particulares. Mas quando a sociedade e a própria Instituição escolar abandonam o professor e até o criticam, como fazem hoje em dia, esse balanço torna-se um marco da identidade profissional e social do professor. contradições sociais. A situação é mais complexa. Existem tensões inerentes ao próprio ato de educar e ensinar. Quando são mal geridas, essas tensões viram contradições, sofridas pelos docentes e pelos alunos. Os modos como se gerem as tensões e as formas que tomam as contradições dependem da prática da professora e, também, da organização da escola, do funcionamento da Instituição escolar, do que a sociedade espera dela e lhe pede. Portanto, as contradições são, ao mesmo tempo, estruturais, isto é, ligadas à própria atividade docente, e sócio-históricas, uma vez que são moldadas pelas condições sociais do ensino em certa época. São essas tensões e contradições, na sua dupla dimensão, que tentarei analisar aqui.
   
2.2. “Culpa” do aluno ou “culpa” do professor?
 Só pode aprender quem desenvolve uma atividade intelectual para isso e, portanto, ninguém  pode aprender no lugar do outro. Às vezes, quando um aluno não entende as explicações da professora, esta gostaria de poder entrar no seu cérebro para fazer o trabalho. Mas não pode: por mais semelhantes que sejam os seres humanos, são também singulares e, logo, diferentes. Quem aprende é o aluno. Se não quiser, recusando-se a entrar na atividade intelectual, não aprenderá, seja qual for o método pedagógico da professora. Nesse caso, quem será cobrado pelo fracasso? O próprio aluno, mas igualmente a professora. Em outras palavras, o aluno depende da professora, mas, também, esta depende daquele. Sendo assim, permanentemente, ela deve pressionar o aluno, negociar, procurar novas abordagens dos conteúdos ensinados, adaptar o nível da sua aula, sem por isso renunciar à transmissão do saber. Existe, portanto, uma tensão inerente ao ato de ensino/aprendizagem. Quando o aluno não consegue aprender, sempre chega um momento em que é difícil não levantar a questão de saber de quem é a culpa. Do aluno, que é burro, ou da professora, que não sabe ensinar? Não é apenas um problema pedagógico; é o valor pessoal e a dignidade de cada um que está em jogo. Trata-se de uma tensão, e não de uma contradição, as sempre a tensão pode gerar contradição e conflito. Com efeito, em tal situação, logo a professora ultrapassa os limites da pressão pedagógica legítima e, irritada, recorre a meios que ferem o direito do aluno a ser respeitado. O aluno, por sua vez, não deixa de se vingar da humilhação provocada pelos xingamentos e castigos e pelo próprio fracassoem aprender. Esse deslize da tensão para o conflito é rápido na sociedade contemporânea. Como foi mencionado, o sucesso e o fracasso escolar já não são somente assuntos pedagógicos, uma vez que acarretam conseqüências importantes para o futuro profissional e social da criança. Logo, a relação pedagógica torna-se mais tensa do que outrora. Pior ainda: enquanto o sucesso escolar requer uma mobilização intelectual do aluno, este vive a escola cada vez mais na lógica da nota e da concorrência e cada vez menos na da atividade intelectual. Não vai à escola para aprender, mas para tirar boas notas e passar de ano, sejam quais forem os meios utilizados, às vezes, com o respaldo dos pais. As minhas pesquisas sobre a relação com a escola e com o saber evidenciaram uma crescente defasagem entre nota esperada e mobilização intelectual do aluno. Para este, quem é ativo no ato de ensino/ aprendizagem é, antes de tudo, o professor (CHARLOT, 2005). Nessa lógica, cabe ao aluno ir à escola e escutar o professor, sem bagunçar,
brincar nem brigar. Posto isso, o que ocorrerá depende do professor: se este explicar bem, o aluno aprenderá e obterá uma boa nota. Se a nota for ruim, será porque o professor não explicou bem. O aluno que escutou o professor se sente injustiçado quando tira uma nota ruim: quem deveria ter essa nota é o próprio professor, aquele que, para cúmulo da injustiça, deu-lhe essa nota! Professor é quem aceita essa dinâmica, negocia, gere a contradição, não desiste de ensinar e, apesar de tudo, mas nem sempre, consegue formar os seus alunos.
  
2.3. Tradicional ou construtivista?
As professoras brasileiras, como a maioria dos docentes, no mundo inteiro, são basicamente tradicionais. Entretanto, essas professoras tradicionais sentem-se obrigadas a dizer que são construtivistas! Têm práticas tradicionais porque a escola é organizada para tais práticas e, ainda que seja indiretamente, impõe-nas. Declaram-se construtivistas para atenderem à injunção axiológica: para ser valorizado, o docente brasileiro deve dar-se por construtivista. A contradição permanece suportável, haja vista que, por um lado, trata-se das práticas e, por outro, de simples rótulos. No entanto, ela entretém certo mal-estar ou até cinismo entre os professores e tende a ocultar, atrás daquela oposição entre “tradicional” e “construtivista”, as verdadeiras dificuldades e contradições que enfrenta a professora brasileira. “Tradicional” passou a ser um insulto, evocando a poeira das antigas casas e as lixeiras da pedagogia. Além do insulto, de que se trata exatamente? Descartemos a hipótese de que esse adjetivo remete à transmissão de um patrimônio. Esta é uma das funções fundamentais da educação e da escola e, nesse sentido, seja qual for o seu funcionamento e sua pedagogia, uma escola não pode deixar de ser tradicional. A representação do professor considerado “tradicional”, ainda que permaneça um tanto vaga, ajunta certo feitio e supostos métodos. É rotulado como tradicional o professor que confere uma grande importância à disciplina, ao respeito, à polidez, o que lhe vale a fama de ser severo. Desprezar essa postura pedagógica é um pouco paradoxal, uma vez que a sociedade contemporânea reclama da escola que já não educa as crianças, não ensina a polidez aos alunos, não consegue conter a violência, impor a sua autoridade etc. Mais ainda: o que é assim apontado como atitude do professor é, na verdade, o fundamento filosófico da pedagogia tradicional. Para esta, educar é, antes de tudo, obter que a Razão controle e domine as emoções e paixões. Muitas vezes, objeta- se à pedagogia tradicional que ela exige das crianças comportamentos que não condizem com a natureza destas. Mas é precisamente porque são contrários à natureza que a escola os requer. A pedagogia tradicional visa a emancipar a Razão humana das cadeias da emoção, do corpo, da natureza. “Soma sema”, diz Platão: o corpo é um túmulo e a educação é ascensão do mundo sensível para o mundo inteligível das Idéias (PLATÃO, 2002). Nos séculos XVI e XVII, considera-se que a natureza infantil é corrupta e que o papel da educação é livrar a criança da corrupção. Bérulle fala “do estado da infância, estado mais vil e abjeto da natureza humana, depois do da morte” e os pedagogos de Port-Royal declaram: “O diabo ataca as crianças e elas não o combatem” (CHARLOT, 1979, p.117). Ainda no século XVIII, Kant escreve:  “A disciplina transforma a animalidade em humanidade (...). É assim, por exemplo, que se enviam logo de início as crianças à escola, não com a intenção de que lá aprendam alguma coisa, mas a fim de que se habituem a permanecer tranqüilamente sentadas e a observar o que se lhes ordena” (CHARLOT, 1979, p. 73). Mudou por inteiro a nossa representação da criança, com Rousseau, com o advento da burguesia e, mais ainda, no século XX, com a legitimação do desejo e a valorização de tudo quanto é “natural”. Portanto, o discurso histórico da pedagogia tradicional é ultrapassado, claro está. Todavia, será que se pode considerar resolvida a questão que ela levanta,  isto é, a da estruturação do sujeito humano por normas éticas e sociais? Não seria este o problema fundamental enfrentado por muitas professoras, na sala de aula contemporânea: disciplinar e estruturar crianças que vivem na cultura do prazer imediato e já não agüentam qualquer frustração? O professor é, também, rotulado como tradicional, quando utiliza os mesmos métodos pedagógicos dos professores das gerações anteriores. Vale refletir sobre esse argumento. Primeiro, não corresponde à realidade atual: nenhum professor ensina  como faziam outrora. Muitos gostariam de fazê-lo, mas isso se tornou impossível, já que tantas coisas mudaram. Segundo, o argumento não corresponde à realidade histórica. Acredita-se que é tradicional o professor que ministra aulas expositivas a alunos passivos. Na verdade, esse método não é tradicional, é um desvio ocorrido no século XX. A pedagogia tradicional solicita muito a atividade do aluno, que, no ensino primário, faz exercícios e, no ensino secundário, redige versões, temas, dissertações, etc. Alain, melhor representante da pedagogia tradicional no século XX, escreve, a respeito das salas de aula onde o professor sempre fala: “odeio essas pequenas sorbonnes” (ALAIN, 1969). A característica do método tradicional é outra: o professor explica o conteúdo da aula e as regras da atividade e o aluno aplica o que lhe foi ensinado. Primeiro vêm o saber e as regras e, a seguir, a atividade do aluno. Desse ponto de vista, o construtivismo opera, de fato, uma ruptura fundamental. Ser construtivista não significa, como se pensa muitas vezes, ou, melhor, como se fala sem pensar, ser moderno, dinâmico, inovador. Como se toda e qualquer inovação fosse boa... Ser construtivista é opor ao modelo tradicional da aula seguida por exercícios de aplicação um modelo em que a atividade vem primeiro: ao tentar resolver problemas, a mente do aluno mobiliza-se e constrói respostas, que são vias de acesso ao saber. Piaget, um dos pais do construtivismo, mostrou que as estruturas intelectuais, desde as mais simples, isto é, as da percepção, até as mais complexas, isto é, as do pensamento operatório formal, são construídas e transformadas pela atividade da criança e do adolescente (PIAGET, 1976). Bachelard, outro pai do construtivismo, evidenciou que, na história da ciência, o saber nasce do questionamento e se constrói por retificações sucessivas (BACHELARD, 1996; SILVA, 2007). A importância desses achados, em particular na esfera pedagógica, é grande: hoje, ninguém pode negar que a atividade de quem aprende é o fundamento da aprendizagem. Entretanto, o construtivismo não fecha o debate sobre os métodos, ao contrário do que se pensa, às vezes. Deve-se, também, levar em consideração os aportes de Vygotsky – que está tanto na moda quanto o construtivismo, sem que se preocupe muito com a coerência entre as duas abordagens... Primeiro, Vygotsky ressalta que a criança nasce num mundo onde lhe preexistem significações (palavras-conceitos), que devem ser transmitidas à criança e apropriadas por ela (VYGOTSKY, 1987). Disso, podemos deduzir que a função do professor não é apenas acompanhar os alunos em processos construtivistas, mas também, de forma mais “tradicional”, pôr em circulação significações desconhecidas pelo aluno. Segundo, Vygotsky explica que o “saber científico”, no qual ele inclui o saber escolar, difere do “saber comum”, ou “cotidiano”, por possuir três características: é consciente, voluntário, sistemático. Cabe salientar que Piaget e Bachelard, por mais “construtivistas” que sejam, consideram também a sistematicidade como um marco da cientificidade. Ora, a questão da sistematização é o principal obstáculo em que esbarram os métodos de ensino construtivistas. Por si só, a atividade intelectual dos alunos não os leva aos saberes sistematizados e institucionalizados e  às palavras que os acompanham. Sempre chega um momento em que a professora deve substituir as palavras criadas pelos alunos por aquelas que são admitidas pela comunidade científica. E sempre chega um momento em que a professora deve propor, ou completar, uma síntese do que foi construído pelos alunos; estes constroem paredes, não edificam casas, muito menos aqueles palácios e catedrais que se chamam Ciências. Posto isso, faz-se claro que a questão fundamental não é saber se a professora é “tradicional” ou “construtivista”, mas como ela resolve duas tensões inerentes ao ato de ensino e ao de educar. Ensinar é, ao mesmo tempo, mobilizar a atividade dos alunos para que construam saberes e transmitir- lhes um patrimônio de saberes sistematizados legado pelas gerações anteriores de seres humanos. Conforme os aportes de Bachelard, o mais importante é entender que a aprendizagem nasce do questionamento e leva a sistemas constituídos. É essa viagem intelectual que importa. Ela implica em que o docente não seja apenas professor de conteúdos, isto é, de respostas, mas também, e em primeiro lugar, professor de questionamento.  Quanto aos alunos, às vezes, andarão sozinhos, com discreto acompanhamento da professora e, outras vezes, caminharão com a professora de mãos dadas. O mais importante é que saibam de onde vêm, por que andam e, ainda, que cheguem a algum lugar que valha a pena ter feito a viagem. Essa tensão entre construir saberes e herdar um patrimônio é inerente ao ato de ensinar, mas, como já mencionado, a força da tensão e as formas que ela toma dependem das configurações sócio-históricas. As professoras ensinam em escolas cuja forma básica foi definida nos séculos XVI e XVII: um espaço segmentado, um tempo fragmentado, uma avaliação que diz o valor da pessoa do aluno. Essa forma escolar condiz com a pedagogia tradicional. É nela que a professora é convidada a ser construtivista e a usar o computador e a Internet.. Imaginemos uma professora que leve a sério a injunção construtivista: mobiliza os seus alunos em pesquisas, desenvolve projetos, pratica uma avaliação formadora, diagnóstica e reguladora. E, no final do mês, do semestre ou do ano, a sua diretora lhe pede... a nota dos alunos! Aliás, essa própria diretora sofre a pressão dos pais e da Instituição escolar, pública ou particular, que querem notas. O que pode fazer aquela professora? Atribuir a mesma nota a todos os alunos? “Deu mole”, como diz o professor cujo texto citei. Atribuir-lhes notas diferentes? Neste caso, os alunos não estudarão mais para levar a cabo a pesquisa e o projeto, mas para tirar a melhor nota possível. De forma mais geral, a injunção construtivista, por mais fundamentada que seja do ponto de vista teórico, negligencia muitos dados atinentes ao exercício da função docente na sociedade contemporânea. Destacarei aqui dois obstáculos que a professora há de ultrapassar se quiser ser mesmo construtivista ou introduzir momentos construtivistas na sua prática pedagógica. Primeiro obstáculo: os próprios alunos não são construtivistas. A injunção construtivista supõe alunos prestes a se investirem numa atividade intelectual. Mas o maior problema que a professora atual encontra é, precisamente, conseguir mobilizar os seus alunos numa atividade intelectual. Como já foi mencionado, eles vão à escola para, antes de tudo, tirar notas boas e passar de ano e, ademais, consideram que é a professora quem é ativa no ato de ensino/ aprendizagem. Quanto maior a pressão exercida pela nota, mais os alunos desenvolvem estratégias de sobrevivência: frear o professor, colar, decorar os conteúdos sem entendê-los etc. Isso não significa que os alunos sejam idiotas ou não gostem de refletir; significa, sim, que tentam sobreviver numa escola que os coloca em situações que contradizem os objetivos de espírito crítico e autonomia proclamados por ela. Numa situação dessas, os momentos construtivistas constituem conquistas da professora, conforme a inteligência epistemológica e pedagógica, mas à contracorrente da ordem socioinstitucional da escola contemporânea. Em segundo lugar, a injunção construtivista negligencia o fato de que a professora trabalha em uma instituição. Ser construtivista implica em despertar nos alunos um desejo de aprender, acompanhá-los numa caminhada cheia de obstáculos superados, de erros retificados, de problemas resolvidos, de angústias, de mal-entendidos, de incompreensões. Ser construtivista é trabalhar num mundo afetiva e intelectualmente turvo. Ora, o que quer a instituição? Definir, delimitar, organizar, gerir racionalmente, controlar. Qualquer instituição carrega no seu DNA um fantasma de domínio e de transparência: pretende assinar os objetivos, determinar os processos, avaliar os resultados. Decerto, as instituições da sociedade contemporânea, por razões que explicitamos, houveram de delegar responsabilidades aos atores sociais e, assim, abriram espaços de autonomia. Mas a instituição escolar da sociedade contemporânea continua, mais do que nunca, a avaliar, avaliar, avaliar e a pedir notas, notas, notas. Aliás, nos países onde existe o vestibular, a instituição nem precisa insistir: o professor e o próprio aluno interiorizaram a notação como função central do ensino. Em tal situação, o que pode fazer a professora? O que ela faz: ter práticas tradicionais, que nem precisa esconder, e, às vezes, abrir parênteses construtivistas, que a instituição e a própria professora realçam logo que aparece um debate pedagógico. Uma estudante universitária, que chamarei aqui de Maria, me contou a seguinte história. Quando cursava a licenciatura de pedagogia, tinha uma professora doida pelo construtivismo e Maria, que já ensinava, teve de preparar e experimentar, numa sala com quarenta alunos, em um bairro popular, uma aula construtivista. Colocou os alunos em pequenos grupos, bateu fotografias e, a seguir, voltou a sua aula normal, de tipo tradicional participativo. Na universidade, mostrou as fotografias e narrou, como se tivesse ocorrido, o que teria acontecido se tivesse feito a aula construtivista ideal ansiada pela sua professora universitária. Esta adorou. Os demais estudantes que já tinham uma experiência de ensino entenderam de imediato o jeitinho que Maria tinha utilizado e parabenizaram-na depois da aula: “Maria, você deveria fazer teatro”. Será que conseguiremos mudar as escolas brasileiras com tais práticas universitárias de formação dos professores?
  
2.4. Ser universalista ou respeitar as diferenças?
 A escola é universalista, pelo menos nas sociedades democráticas, e não pode deixar de sê-lo. Por duas razões. Primeiro, porque a educabilidade de todos os seres humanos é, ou deveria ser, o princípio básico do professor: qualquer ser humano sempre vale mais do que fez e do que parece ser. Segundo, a escola não pode deixar de ser universalista porque a sua especificidade é a de divulgar saberes universais e sistematizados, ou seja, saberes cuja verdade depende da relação entre elementos em um sistema, e não da sensibilidade pessoal e da interpretação de cada um. Não significa dizer que a escola seja puro espaço da Razão e desconheça a sensibilidade, o corpo, a imaginação. Mas, até quando ela cuida destes, ela introduz regras, normas. Inventar uma história requer imaginação, mas é necessário, também, escrever um texto e isso não se faz de qualquer jeito. Uma pintura de criança, por mais bonita que seja, não é um quadro de Picasso. A luta que o professor de Educação Física ensina é diferente da briga de rua com socos e pontapés. Mas, na sociedade contemporânea, o professor, trabalhador do universal e da norma, deve também ensinar às crianças respeitarem as diferenças culturais. Essa idéia é simpática e não contradiz diretamente a vocação universal da escola: todos os seres humanos participam de uma cultura, mas sempre se trata de uma cultura particular. O problema é outro: quais são aquelas diferenças culturais que se deve respeitar? A cultura africana do antepassado remoto da criança preta de Salvador? A cultura alemã, italiana, polonesa do antepassado do jovem gaúcho – o qual, ademais, tem também alguns portugueses entre os seus antepassados? Qual diferença cultural se deve respeitar no filho de índio saído da tribo? E de qual cultura se trata, da dos homens ou das mulheres? O que fazer, ainda, quando essa diferença cultural transmite formas de dominação? A professora do Rio Grande do Sul deve mesmo educar jovens gaúchos “machos”? Qual é o conteúdo do imperativo “respeitar as diferenças culturais” e quem explica ao docente o que significa exatamente? Na escola contemporânea, o professor deve, também, respeitar as diferenças dos seus alunos e individualizar o seu ensino. Mais uma vez, a idéia é simpática, mas qual é o seu significado exato? “Colocar o aluno no centro”, disse o Ministério francês da educação. Concordo, desde que me digam o centro do quê... Se se tratar de dizer, sob outra forma, que a escola foi criada para que os alunos aprendam e não para que os docentes ensinem, o conselho é pertinente. Mas não resolve o problema: o que significa “individualizar” o ensino de princípios e saberes universais e das normas estruturando a atividade intelectual? Quem o explica à professora? A professora que se vire... Mais ainda: a escola contemporânea não deve apenas respeitar as diferenças, ela deve, também, fazer aparecer e registrar diferenças entre os alunos. Voltemos à questão da nota, central em uma instituição que deve produzir uma hierarquia escolar prenunciando e legitimando a hierarquia social.  Imaginemos, novamente, a situação da professora cujos alunos obtivessem 10 a cada prova. O que vai lhe dizer a sua diretora? “Parabéns, colega, você é uma boa professora”? Ou: “deu mole”? No entanto, o discurso oficial afirma que todos os alunos devem ser bem-sucedidos e que a professora deve ensinar para todos. E o discurso pedagógico proclama que a Razão é universal e que qualquer ser humano pode ser educado e ensinado. Mas, apesar desses discursos lindos, que todos os alunos tirem a nota 10 parece um exagero e a professora que ousasse fazer isso não ganharia parabéns e boa fama... De fato, existe, no imaginário da instituição, a idéia de que, em toda turma, há alunos preguiçosos, fracos, dedicados, talentosos e até, quando a safra é boa, geniais e que, portanto, uma professora séria não pode deixar de atribuir notas diferenciadas. Mas a instituição segue discursando sobre a educabilidade do ser humano, a Razão universal e a escola democrática.
  
2.5. Restaurar a autoridade ou amar os alunos?
Não há educação sem exigências, normas, autoridade. Educar é possibilitar que advenha um ser humano, membro de uma sociedade e de uma cultura, sujeito singular e insubstituível. Queira-se ou não, isso implica em uma disciplina do desejo e numa estruturação do sujeito por normas – o princípio de realidade, diria Freud; o “Nome-do-Pai”, diria Lacan. Deste ponto de vista, o objetivo da pedagogia tradicional permanece legítimo e válido, mesmo que os recursos que ela usa, isto é, o recalque do desejo e a imposição da norma, sejam ultrapassados, na sociedade contemporânea em particular. Não há educação sem simpatia antropológica dos adultos para com os jovens da espécie humana, aquela simpatia espontânea que nos leva a amimar e afagar os “bebezinhos” e demais “fofinhos” que têm a sorte ou o azar de cruzarem os nossos caminhos.
Esse balanço entre autoridade e mimo e, de modo mais geral, a ambivalência é uma característica inerente à relação dos adultos com os jovens. Na escola da sociedade contemporânea, ele toma a forma da dupla injunção para resgatar a autoridade perdida e para amar os alunos. Comecemos pela questão da autoridade. A “violência escolar” é um dos maiores problemas que os professores devem enfrentar hoje em dia. De fato, essa expressão genérica remete a fenômenos bastante diferentes: agressões físicas, ameaças graves, pequenas brigas, assédio, palavras racistas, indisciplina escolar, indiferença ostentatória para com o ensino e a vida escolar oficial, incivilidades etc. Mas não se pode negar que a transgressão das normas esteja acometendo a escola contemporânea, bem como a família e, de modo mais amplo, a sociedade. Em face desse problema, multiplicam-se os apelos para restaurar a autoridade (versão de direita) ou para educar os jovens à cidadania (versão de esquerda). Os professores gostariam de restaurar a autoridade. Mas resta saber como... No Brasil, historicamente, a autoridade foi definida pelas relações de força impostas pela escravidão, o coronelismo, a ditadura populista ou militar. Nos dias atuais, para muitos jovens, ela toma a forma da arbitrariedade e da violência policial. Não se trata, evidentemente, de promover esse tipo de autoridade, mas uma autoridade legítima. Qual pode ser, ao ver dos jovens, o fundamento de tal autoridade? A idade? Claro que não. A sociedade contemporânea valoriza a juventude, que os adultos procuram prolongar a todo custo, e não gosta dos jovens, a quem ela fecha as portas do mercado de trabalho e culpa por todos os males do mundo. Não há pior mistura para desvalorizar os adultos e, portanto, a autoridade adulta, aos olhos dos jovens. Será que o saber pode ser fundamento da autoridade legítima? Se fosse o caso, os professores não teriam tantos problemas nas suas salas. Além disso, como uma sociedade que elege o dinheiro como medida universal de qualquer coisa, incluídos o esporte e a arte, e que paga muito mal aos seus professores pode esperar que estes restaurem a autoridade? Resta a cidadania, de que tanto se fala nos diais atuais. O problema é que, muitas vezes, confundem- se cidadania e vínculo social. A noção de vínculo social remete ao conjunto de relações que estabelecemos com pessoas com quem compartilhamos um espaço de vida: conversas, interesses comuns, ações coletivas, respeito mútuo etc. O conceito de cidadania diz respeito à esfera política: ela exprime o fato de que os membros de uma determinada sociedade têm direitos e deveres definidos por leis, que foram elaboradas em um processo coletivo e valem para todos. Ensinar alunos a tecerem vínculos sociais de reciprocidade é, claro está, um objetivo educacional. Mas essa ambição esbarra na existência das desigualdades, dos fenômenos de dominação e, no Brasil, daquele cinismo social escancarado cotidianamente pelas notícias sobre a corrupção política. Sendo assim, o discurso sobre a “cidadania”, que, na verdade, trata do vínculo social, tende, por bem intencionado que seja, a cumprir uma função ideológica: pobres, sejam bem comportadinhos, não incomodem a classe média com seus comportamentos. Ao contrário, o conceito de cidadania tem um valor crítico, haja vista que destaca a igualdade de direitos e deveres, o interesse geral, a preeminência da lei. Mas é preciso levar a sério esse conceito quando se quiser educar os alunos à cidadania. Isto requer a existência de uma comunidade escolar regida pela lei e não pela vontade do mais forte e pela arbitrariedade. Ora, a escola vivenciada pelo aluno, aquela que pretende educá-lo à cidadania, não é uma comunidade de cidadãos. Primeiro, o seu Regimento interno não é uma lei, mas um diktat imposto pelos poderosos. Não passa de um conjunto de regras ditando deveres dos alunos e silenciando os seus direitos – salvo o direito de estudar e ser educado, que, convenhamos, não é muito atraente para os alunos. Uma lei define direitos e deveres. O Regimento das escolas só lista proibições, incluídas, às vezes, as mais estranhas. Por que as escolas proíbem tatuagens, piercings, brincos nas orelhas dos rapazes? Sem, por isso, deixar de falar de direito à diferença e igualdade de gênero... O ponto não é saber se são práticas feias ou lindas, é interrogar a legitimidade da escola em se meter em tais assuntos. Até que se saiba, nenhum brinco impede ao aluno escutar a professora – que, por sinal, usa brincos. Essa não é uma questão de pedagogia ou educação escolar; é, sim, um “arbitrário cultural” e uma “violência simbólica”, como diria Bourdieu; arbitrário e violência inscritos no Regimento da escola. Segundo, uma lei vale para todos, incluídos aqueles a quem incumbe aplicar a lei. Ora, o Regimento interior da escola nada diz sobre os direitos e deveres do pessoal da escola. Não se trata de cair na demagogia: os direitos e deveres dos professores não podem ser semelhantes aos dos alunos, uma vez que existem funções diferentes na escola. Mas há de se definir também direitos e deveres dos professores, do diretor, da merendeira, do porteiro etc. Quando um aluno falta ou chega atrasado, deve justificar a falta ou o atraso. E a professora? Os alunos não têm de se meter nisso? Neste caso, o Regimento não é uma lei e a escola não é um espaço de cidadania. Por fim, a escola não respeita os Direitos do Homem e do Cidadão, aqueles que a Carta da ONU e a Constituição Federal brasileira enunciam. “Ninguém pode ser juiz e parte, no mesmo processo”: esse é um princípio básico do Direito. Na escola, o professor briga com um aluno, julga e castiga. A Constituição brasileira de 1988 diz: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (artigo LV). Na escola, o aluno acusado não tem direito ao contraditório, à ampla defesa, nem a um processo. O Direito é para adultos e não para crianças? Neste caso, a cidadania também é para adultos e não para crianças. Além de ser emaranhado em todas essas contradições, o professor considera que deve “amar os alunos”. Amar os alunos que nem fingem escutar o professor e até, às vezes, o insultam e ameaçam? Amar os alunos que batem uns nos outros e se injuriam com palavras racistas? Desta vez, trata- se mesmo de heroísmo. Novamente, é preciso recorrer à análise. Já evoquei a simpatia antropológica dos adultos para com os jovens da espécie humana. É claro que quem não sente essa simpatia não deve ensinar. Se “amar os alunos” significa isso, tudo bem. Mas esse “amor” é, por natureza, diferente do que sentimos por nossas próprias crianças. É o sentimento que une as gerações que se sucedem. Deste ponto de vista, o uso na escola das palavras “tio” e “tia”, que remetem a uma relação entre gerações, é pertinente, ainda que “professor” e “professora” sejam preferíveis, por serem mais específicas.  Além dessa relação antropológica, quem leu Freud sabe que se desenvolvem, também, relações afetivas entre professores e alunos, inclusive relações implicitamente e, na maioria das vezes, inconscientemente, sexualizadas. Vale notar, por sinal, que as professoras, sustentando a idéia de que “se deve amar os alunos”, silenciam essa dimensão da relação. Essas relações afetivas, porém, podem ser positivas ou negativas. Além disso, constituem um fato, e não uma obrigação. Um professor não tem obrigação afetiva alguma para com os alunos. Deve respeitar a sua dignidade, deve fazer tudo o que puder para formá-los; não é obrigado a “amá-los”. Não se pode assentar a escola democrática sobre sentimentos. A escola democrática é aquela onde o professor ensina e educa todos os alunos, incluídos os de quem não gosta e os que não gostam dele. Claro que a situação é melhor quando professor e aluno gostam um do outro, mas isto não é obrigação nenhuma, nem fundamento da escola. A escola não é lugar de sentimento, mas lugar de direitos e deveres. Essa escola é que pode ensinar a cidadania. Se uma professora, além de ter de gerir e superar todas as tensões e contradições que mencionei, tiver, ainda, de lidar com as ambivalências do sentimento, tornar-se-á, sim, heroína ou vítima.
  
2.6. A escola vinculada à comunidade ou a escola lugar específico?
A escola é um lugar específico, como já comecei a explicar quando falei de universalismo versus respeito às diferenças. A escola é um lugar que requer uma forma de distanciamento para com a experiência cotidiana. O que, nesta, é situação vivenciada e contextualizada, objeto do meio ambiente, torna-se, na escola, objeto de pensamento, de discurso, de texto. Ademais, a escola fala aos alunos de objetos que não se encontram no mundo cotidiano deles e, às vezes, em nenhum mundo sensível e leva-os para universos que apenas existem no pensamento e na linguagem. Sendo assim, a escola é fundamentalmente um espaço de palavras que possibilitam a objetivação do mundo e o distanciamento para com ele e que abrem janelas para outros espaços e tempos, para o imaginário e o ideal. Além disso, a escola é um lugar onde a própria linguagem vira objeto de linguagem, de segundo nível: na escola, fala-se sobre a fala. Essa especificidade estende-se aos comportamentos e às relações. Não se pode comportar-se  na escola como se faz fora dela; é um mundo diferente. Em particular, os conflitos, que não podem deixar de surgir na escola, como nos demais lugares, já que ela é lugar de vida e encontro entre seres humanos, devem ser geridos pela palavra, em determinados limites, e não pela pancada e pelo insulto. Essa especificidade diz respeito, também, ao professor e à professora. Aos olhos dos alunos, ainda nos dias atuais, é um pouco esquisito encontrar a sua professora no supermercado, sem sequer falar daquela que dança ou namora. Tudo o que evoca o corpo do professor e, mais ainda, da professora, segue sendo objeto de mal-estar, brincadeira ou desejo. Os próprios professores interiorizam essa especificidade da figura docente, em particular na sua relação com o dinheiro. Por causa da sua atividade profissional, tendem a colocar o saber no topo da escala de valores e o dinheiro no mais baixo escalão. Ainda hoje, os professores de Filosofia, funcionários assalariados, criticam os Sofistas, que vendiam o seu saber, e identificam-se com  Sócrates que, por mais genial que fosse, só podia espalhar de graça as suas idéias porque, ocioso, vivia às custas de sua mulher. Entretanto, na sociedade contemporânea, o dinheiro mede o valor de tudo e os professores, considerando que o salário deve corresponder ao nível de estudo, julgam que deveriam ser muito mais pagos do que são. Fazem greve. Greve dos trabalhadores do espírito e dos educadores da juventude? Fica mal... Portanto, quando os professores fazem greve, não é apenas para ganhar mais dinheiro, como é o caso quando se trata de outros trabalhadores; é, explicam os professores, para poderem estudar, comprar livros e, afinal de contas, proporcionar aos alunos uma melhor formação. Lugar específico, a escola não ensina o que se pode aprender na família e na comunidade, não ensina do mesmo modo que a família e a comunidade. Se o fizesse, não serviria para nada. Entretanto, a escola deve ser “vinculada à comunidade”. Para um francês, essa injunção (mais uma...) soa estranha. Com efeito, na história da França, a “comunidade” foi lugar de influência dos nobres e dos padres e, hoje em dia, ela é percebida como espaço de propaganda do fundamentalismo islâmico. Na cultura francesa, “comunidade” opõe-se a “República” e a escola comunitária é a negação da escola republicana. Mas a história do Brasil é outra e, portanto, outros também são o sentido e o valor da palavra “comunidade”. No Brasil, a comunidade foi, historicamente, lugar de resistência à colonização (os índios), à estrutura escravista (os quilombos), às várias formas de dominação, exploração e desvalorização e espaço de auto-organização dos migrantes. A comunidade é lugar de  resistência, de memória, de dignidade. Sendo assim, é socialmente legítimo preconizar o vínculo entre a escola e a comunidade. Vinculada à comunidade, a escola é “nossa” escola e não “a escola deles”, dos dominantes. Essa ligação é legítima, também, do ponto de vista pedagógico. Com efeito, por importante que seja a especificidade da escola, qual seria o seu valor se o que se aprende na escola fizesse sentido apenas dentro da escola? Conhecer novos mundos, ter acesso a formas ideais, objetivar o mundo e distanciar-se da experiência cotidiana, perceber-se a si mesmo como ser de Razão e de Imaginação, tudo isso só vale quando diz algo, indiretamente, a respeito da minha vida, do meu mundo, da minha experiência, de quem eu sou e posso vir a ser. O universalismo e a especificidade da escola são legítimos à medida que contribuem para esclarecer o mundo particular da criança singular e ampliá-lo. Legítimos, o universalismo da escola e a defesa da sua especificidade. Legítimo, também, o projeto de vincular a escola à comunidade que a rodeia. Ademais, é possível a conciliação entre as duas ambições. Mas não é nada fácil, sobretudo na sociedade contemporânea. Porque, em um país urbanizado como é o Brasil, cada vez menos a professora compartilha o espaço de vida dos seus alunos, em especial o dos seus alunos pobres, aqueles que encontram mais dificuldades na escola. A conciliação é difícil, ainda, porque se espera cada
vez menos da professora que ela leve os alunos ao encontro do universal e que ela lhes proporcione as chaves de compreensão da sua vida, e cada vez mais que ela possibilite aos nossos filhos serem aprovados no vestibular. Herói, o professor brasileiro? Vítima? A meu ver, na sociedade contemporânea, ele é, antes de tudo, um trabalhador da contradição. Como o policial, o médico, a assistente social e alguns outros trabalhadores, ele consta daqueles cuja função é manter um mínimo de coerência, por mais tensa que seja, em uma sociedade rasgada por múltiplas contradições. São trabalhadores cujo profissionalismo inclui uma postura ética. E, se possível for, o senso de humor.

REFERENCIAS
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[1] * Doutor e Livre-Docente em Ciências da Educação. Professor Emérito da Universidade de Paris 8. Professor-Visitante no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe, membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Educação e Contemporaneidade (EDUCON). Endereço para correspondência: Universidade Federal de Sergipe, Núcleo de Pós-Graduação em Educação (NPGED), Cidade Universitária Prof. “José Aloísio de Campos”, Av. Marechal Rondon, s/n Jardim Rosa Elze – 49100-000 São Cristóvão/SE.
[2] Uso a palavra professor quando se trata da figura simbólica que encarna a função docente e as palavras professor ou professora quando penso na pessoa singular que cumpre essa função, no cotidiano.
[3] 2 É difícil conhecer o número exato de docentes, uma vez que muitos têm dois empregos ou até três. Por isso, contabilizam-se as “funções docentes”.