quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Poulantzas e o tempo fora dos eixos

O texto a seguir insere-se no contexto de reabilitação de Poulantzas. 


Um inquietante silêncio: Poulantzas e o ocaso da penumbra incontida 

Poulantzas 1968 in Paris
Poulantzas, ao microfone, numa das manifestações universitárias de 1968 em Paris

Por Ivonaldo Leite 
Conhecido como um intelectual marxista de marcante inteligência, com uma ponta de rigidez provocadora, elegante e ferina no seu staccato argumentativo, Nicos Poulantzas nasceu na Grécia, mas, exilado em França, foi em Paris que alcançou notoriedade com trabalhos de significativa originalidade, construídos com finura e imponência teórica. Para aqueles que, como eu, em algum momento, foram tocados pelo modo de ser intelectual do autor de  L'Etat, le Pouvoir et le Socialisme, a sua influência transcendeu os limites estritos da esfera acadêmica. Poulantzas, contudo, era um ser frágil, perseguido por uma exigência absoluta de serenidade, utopia e generosidade. Tomado, de quando em quando, por um imenso sentimento de tristeza, dele serviu-se e descortinou uma via singular nos corredores e cafés darive gauche. Em 03 de outubro de 1979, cometeu suicídio, lançando-se do vigésimo-segundo andar de uma torre no 13º arrondissement, na capital francesa. Últimas lágrimas choradas diante de uma situação sem esperança e nem recurso.
Teria sido ele acometido por aquela desesperada idéia de que “o futuro dura muito tempo”, idéia que, após a tragédia com a qual Althusser se envolveu no ano seguinte, serviu-lhe de título para as suas desesperançosas notas autobiográficas (L’avenir dure longtemps)? Não sabemos, não sabemos. Talvez nunca saibamos.
Do que nos é dados a saber é que Poulantzas enfrentou muitos e temerários desafios, em alguns momentos com ferocidade, em outros tantos cedendo à vertigem da aversão e do horror a si próprio. Na introspecção que o acompanhava, uma inquietação intelectual permanente. Da sua opção inicial pelo existencialismo, aportou no estruturalismo que brotou na rua d’Ulm, onde um intermitente Althusser animava jovens cabeças com a tese do corte epistemológico, alegadamente operado por Marx, e tecia considerações sobre o nebuloso mundo da ideologia. Por lá, muitos passaram, mesmo que depois tenham tomado outros caminhos. Dentre eles, podem ser contados Michel Pécheux, Bourdieu, Foucault, Alain Badiou, Roger Establet e Étiene Balibar. Seja como for, da rua d’Ulm partiu porventura uma das mais extensas correntes do chamado marxismo ocidental, para a qual Poulantzas contribuiu de modo significativo.
Contudo, diferente do que apregoam determinadas críticas que lhe foram dirigidas, rotulando-o como mero reprodutor do estruturalismo althusseriano, Poulantzas não ficou por aí. Naquilo que pode ser definido como uma terceira fase do seu pensamento, os seus escritos buscaram dialogar criticamente, por exemplo, com a obra de Foucault.
O pensador do “tempo fora dos eixos”, como tem sido dito. De uma prosa genial e intempestiva. Por quê?
Ora, ele teve a ousadia de assumir que a teoria possui desvios não acompanháveis pela prática. Ao dizer assim, fazendo uma desvinculação entre instâncias de correspondência da teoria do conhecimento, Poulantzas funda um novo modo, no marxismo, de abordagem dos fenômenos, levando-o a descer da sempre presente garupa da imposição empírica. Pôs então o tempo fora dos eixos, com laços de intempestiva genialidade. Da minha parte, a lição é clara: o tempo está fora dos eixos porque o discurso poderia ser recolocado em novas bases, mas, por alguma razão, a recuperação desta linha discursiva cansa os ouvidos, pois se sente que o tempo passou. Esta descoincidência entre a instância lógica e a instância empírica, no entanto, não terá que necessariamente invalidar a teoria.
O diálogo do pensador do “tempo fora dos eixos” com Foucault ocorre em duplo movimento, isto é, ora na intensa divergência, ora na convergência com formulações suas. Conforme tem sido bastante repisado, em seu diagrama do poder, Foucault - a partir de elaborações como micropoderes e saber/poder - assinala que o poder não está localizado num único lugar, mas existe de forma capilar no conjunto da sociedade, pelo que ele se coloca então para além da esfera do Estado. Poulantzas aponta a fragilidade da teoria do poder de Foucault, e atribui isso ao fato de ela subestimar o papel da lei na organização do poder e negligenciar o papel da violência no funcionamento do Estado contemporâneo. Porém, adémarche poulantzasiana assimila elaborações do autor de Microfísica do Poder, no sentido de estruturar uma definição da materialidade do Estado, donde resulta o conceito de Estado entendido como condensação material de forças, permeado de conflitos, contradições e de micropoderes. 
Três décadas se passaram daquele dia 03 de outubro de 1979. Sobre despojos e ruínas, o turvo travo do tempo. Um imenso silêncio, desde então, se fez sobre a obra de Nicos Poulantzas. Silêncio inexplicável, quando se considera, por exemplo, a pertinência do diálogo crítico que ele mantém com as teses de Foucault sobre o poder, teses estas sempre tão recorrentes na retórica acadêmica. Mas, quando é inexplicável, o silêncio torna-se inquietante. Resistência da penumbra ao ocaso. A meia-luz que não se contém. O lume volta a se intensificar a busca de fazer claro sobre o que se passa.
Por assim ser, nos últimos tempos, na literatura estrangeira, Poulantzas voltou à cena. Da pena de Aranowitz e Bratsis, por exemplo, saiu o Paradigm Lost: State Theory Reconsidered, enquanto da escrita de James Martin surgiu The Poulantzas Leader: Marxism, Law and the State. Durante anos, o pensador do “tempo fora dos eixos” foi ora infundadamente atacado, ora sistematicamente desconsiderado. Tranquilidade, agora, ao descanso do Nicos. Shanti, shanti, shanti. A sua memória reaviva-se como fonte de iluminação perante o sofrimento abrigado na grande insônia do mundo. 


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