segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Crepúsculo da existência

Em princípio, escrevi o texto abaixo para a antiga Revista Portuguesa de Cultura Crítica - ZonaNon, editada em Coimbra.



O CREPÚSCULO DA EXISTÊNCIA: ENTRE A NOSTALGIA E A VIDA

Adelmo Genro Filho, gaúcho de São Borja/Santa Maria, foi um vigoroso intelectual brasileiro que não mediu conseqüências em seu empenhamento político. Em 1988, enquanto era preparado um livro no qual ele tinha responsabilidade directa, reunindo textos de autores como Ernst Bloch e Karl Korsch,1 ocorreu a sua morte. Prestando-lhe uma espécie de homenagem, no final do livro, acrescentou-se uma nota sobre o seu percurso. Nota curta, mas que, a nosso ver, foca com pertinência a temática do presente artigo, influenciando-nos na abordagem que desenvolveremos a seguir, nomeadamente ao assumir a herança da abordagem hegeliana sobre a morte. Desta forma, este artigo também termina por ser uma homenagem a Adelmo.

A morte, como o disse Hegel,2 se quisermos chamar à essa irrealidade, é a coisa mais espantosa, e guardar o que está morto é o que exige uma maior firmeza. Ela é, por um lado, o resultado final do processo de um indivíduo singular, que vive e age numa sociedade universal, e, por outro lado, ela é a negatividade natural do indivíduo que ocorre no tempo, mas que cancela o tempo absoluto do indivíduo que morre. Esta coisa espantosa cancela a existência consciente do indivíduo, indivíduo que só pode existir no espaço e no tempo, na história. A morte faz o indivíduo sair da universalidade quieta, da negatividade abstracta. À esta universalidade quieta, o morto é remetido como originalidade natural, como ente que, assim sendo, deixa de ser uma diferença, deixa de ser uma alteridade e um outro. Ele, volta ao Mesmo, ao Nada. Pelo que, na morte natural, como cancelamento da alteridade existente, não se pode encontrar nenhum consolo e nem reconciliação.

O indivíduo, ao morrer, regressa à indiferencialidade da natureza, cancelando-se a sua extensividade activa e consciente. Cindindo-se o ser individual do agir no morto, ele torna-se uma singularidade vazia e passiva. Passa a ser lembrança de um nome carente de realidade. Este nome é somente nome para os outros que o lembram. Ele deixou de ser nome para si mesmo, ele deixou de ser auto-referência. Por isto, a maioria dos mortos permanece como uma lembrança quieta na sombra das famílias, e então assim pode-se dizer que esta visão sobre a morte constitui o lado morto do morto ou a morte do indivíduo propriamente natural.

Se o indivíduo for pensado somente como indivíduo até ao fim, e é necessário – por um momento – que assim ele o seja, o indivíduo pensado será um indivíduo natural. Então, dessa maneira, o fim é trágico. Não há saída. Para a universal pergunta Para onde vamos?, só existe uma resposta: "Para lado nenhum".

Mas, e que pensamentos e sentimentos experimentamos em relação ao desaparecimento de um ente querido? Aqui parece que é possível estabelecer uma analogia em relação àquilo que Hegel expressou no que concerne à contemplação das ruínas históricas. A morte e as ruínas históricas evocam necessariamente uma reflexão sobre a degradação temporal, sobre o irrecorrível desaparecimento dos indivíduos e das coisas. Os sentimentos que experimentamos perante este tribunal do tempo nos provocam uma deprimente tristeza. Constatamos que uma vitalidade consciente, um indivíduo estimado e querido, teve de morrer e nos atormentamos no desconsolo das lembranças.

Assim é a morte. Ela nos proporciona uma pergunta sem resposta: "Por quê?". Por não termos resposta, emerge uma dor profunda e, diante desta instância incontrolável, a melancolia que se apodera de nós, ora nos oprime na sensação do desaparecimento total e ora nos indaga sobre o significado e a validade das vidas individuais. Se a sensação vazia do desaparecimento que sentimos, diante do túmulo nos provoca o luto e nos aprisiona à passividade, é na indagação sobre o significado e validade das vidas individuais onde podemos encontrar o caminho que nos conduz a superar as reflexões sentimentais, para devolver-nos a nós mesmos, ao mundo activo da história.

Perante o morto não há consolo, pois ele pertence ao domínio do desaparecimento e da finitude. Somente com o nosso retorno ao mundo activo da história dos seres humanos vivos, podemos nos  reconciliar com a universalidade da vida. Quer dizer, é na reconciliação com a vida, que nos nega consolo, que temos o lugar onde poderemos encontrar a valorização do desaparecido. Contudo, não como desaparecido, mas na expressão de sua universalidade vivida, no produto de sua actividade, que se apresenta como legado, e na significação exemplificativa de sua vida.

Isto é, o que sobrevive é a produção consciente e socialmente significativa dos indivíduos. Donde decorre que quanto mais universal for esta produção, mais sobrevive. Apenas os seres individuais conscientes podem ter uma história singular socialmente significativa. Só os seres humanos podem ter uma biografia. Quanto mais significativa e universal for a vida de um indivíduo, mais significativas e universais serão sua história singular e sua biografia. E, assim sendo, cabe dizer que uma das lições que a experiência negativa da morte nos ensina, cancelando a existência concreta, é que somente o espírito, a consciência, é imortal - ele é eterna-mente. Novamente com Hegel, aqui deve dizer-se que a vida do espírito não é a vida que se ausenta diante da morte e se mantém pura da desolação, mas é a vida que sabe afrontar a morte e manter-se vida.

É tanto mais significativa a história/biografia do indivíduo quanto mais ele toma conhecimento e tira todo o proveito possível de uma das constatações de Sartre: A contingência do mundo aparece à realidade humana na medida em que a realidade humana se estabeleceu a si mesma sobre o nada; o mundo está suspenso no nada – o nada jaz encolhido no ventre do ser, como um verme.3

Na tentativa de universalizar a individualidade, parece que se pode conviver com uma das definições de religião formulada pelo italiano António Gramsci,4 que se afirmou como um renovador do pensamento marxista, na medida em que superou o determinismo instrumentalista do marxismo dogmático, consubstanciado, por exemplo, no dualismo infra-estrutura & superestrutura, sendo esta última tão-somente um reflexo da primeira, quer dizer, a base económica determinando a política, a cultura, as ideias. Concebendo ideologia de modo distinto do "velho marxismo", Gramsci, embora critique o filósofo Benedetto Croce – por confundir religião e filosofia -, parte da seguinte definição do mesmo para o fenómeno religioso: A religião é uma concepção da realidade, com uma moral adequada a esta concepção, apresentada em forma mitológica; pelo que é religião toda a filosofia - isto é, toda a concepção de mundo -, enquanto se tornou "fé", ou seja, enquanto é considerada não como actividade teórica – de criação de um novo pensamento -, mas sim como estímulo à acção (actividade ético-política concreta, de criação da história).

Em Gramsci, a conclusão é que a religião é uma forma de ideologia – que, diferente do que está em Marx, não é entendida como falsa consciência -, com influência política na sociedade. Ele entende que as religiões apresentam-se, originalmente, como formulações mitológicas de determinadas concepções de mundo, ou filosóficas, que se expressam também na linguagem e no senso comum dentro duma área cultural; tendo-se que todos os seres humanos, como seres sociais, estão ligados a uma concepção de mundo e, por isso, são sempre "homens-massa" ou "homens colectivos". E tudo isto ocorre na esfera da história. Esfera esta onde se encontram os indivíduos que tiveram a existência concreta cancelada. Hegelianamente falando, quer dizer, entendendo que o indivíduo torna-se indivíduo pelo seu agir, pela sua actividade, na qual o indivíduo não é um indivíduo simplesmente porque é um ser humano existente, mas sim pela dignificação e actividades universais em que traduz a sua vida, então, mesmo que a morte natural cancele a extensividade consciente e activa dos indivíduos, pode falar-se de um lado vivo de determinados indivíduos mortos. Isto significa pensar os indivíduos – no caso, os desaparecidos – como seres que viveram num determinado tempo e espaço, que integraram uma sociedade, que agiram e buscaram afirmar e desenvolver a sua individualidade como exemplos significativos para os outros, como uma lição de vida e de existência para os outros. Estes deram-se a si mesmos uma perspectiva universal, da qual eles são a realidade.

Tal fio condutor nos permite pensar a historicidade dos indivíduos e a historicidade humana. A história é o único terreno no qual pode haver reconciliação com o passado, visto que, nela, dialogamos com os nossos antepassados como seres iguais a nós, pois dialogamos na dimensão espiritual e consciente, falamos de consciência histórica. A nossa historicidade nos permite falar do passado, trazê-lo para o "aqui e agora". Traz para uma realidade presente e viva, uma realidade passada e morta.

NOTAS
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1 - O livro era Filosofia e Práxis Revolucionária, sendo também responsável por ele Cássia Coríntha Pinto e Jefferson Goulart; São Paulo: Brasil Debates Editora, 1988.

2 - As referências a Hegel, ao longo do artigo, tem como fonte o conjunto de textos reunidos num volume da colecção brasileira Os Pensadores, sendo a tradução de responsabilidade de Orlando Vitorino; São Paulo: Nova Cultural, 1996. 
3 - Ver Sartre, volume da colecção os Pensadores, tradução de Rita Correia Guedes, Luiz Roberto Salinas Forte, Bento Prado Júnior; São Paulo: Nova Cultural, 1987. 
4 - As referências a Gramsci são feitas a partir das obras Concepção Dialética da História, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1981; e Os Intelectuais e a Organização da Cultura, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1979.


Um comentário:

  1. Após ler o texto, comecei a refletir sobre a morte, e só então pude compreender que meu pai ainda se mantém vivo para mim. O texto reflete profundamente o significado da morte...

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