Há textos que escrevemos carregados pelo lugar onde nos encontramos. O que abaixo segue, por exemplo, escrevi-o na cidade do Porto, à beira do mar... na Praia da Foz do Douro, num café sugestivamente chamado homem do leme.
EXISTÊNCIA E QUOTIDIANO: PESO E LEVEZA
Por Ivonaldo Leite
Ecoando Nietszche, disse Milan Kundera, em A Insustentável Leveza do Ser, que, no mundo do eterno retorno, todos os gestos têm o peso de uma insustentável responsabilidade. A ideia do eterno retorno é o fardo mais pesado.
Se assim o é, então sobre tal pano de fundo, as nossas vidas podem recortar-se em toda a sua esplêndida leveza, afirma Kundera. O fardo mais pesado esmaga-nos, verga-nos, comprime-nos ao solo. Quanto mais pesado for o fardo, mais próxima da terra se encontra a nossa vida, mais real e verdadeira ela é. Por outro lado, a ausência total de fardo faz com que o ser humano se torne mais leve do que o ar, fá-lo voar, afastar-se da terra, do ser terrestre. Por um percurso mais musical, o brasileiro Belchior também chegou a algo semelhante: “A minha alucinação é suportar o dia-a-dia, e o meu delírio é a experiência com coisas reais”.
O peso do quotidiano. Liberdade versus determinismo. O padrão de comportamento esperado, os factos sociais, dir-se-á em linguagem sociológica. Efemeridade e evanescência contrastando com a possibilidade de permanência. A fulgacidade de cada momento não elimina a possibilidade de ele ser captado e guardado. Mas, e a leveza? Aqui o que importa é entregar-se à práxis. O que não significa apenas uma experiência que serve de base para toda a vida teórica e prática do ser humano, mas algo que emerge do próprio questionamento da vida. A experiência originária é a experiência de constituição, onde o ser humano surge como ser contrário do ente simplesmente dado. Eis a práxis: a forma própria de um ente que cria o seu próprio ser a partir da sua realidade primeira, buscando autosatisfazer-se.
O ser humano é um ser que se experimenta a si próprio como um ser a se construir, histórico, e a história é o espaço e o tempo do possível. Para se realizar, ele precisa sair de si, pois, em si, é necessidade e carência. Um ser sofredor. Que por ser inquieto, tem uma necessidade permanente de vida. O sair de si, contudo, não implica entender o espaço como conceito empírico abstraído de experiências externas e nem o tempo como conceito abstraído de qualquer experiência.
À maneira kantiana, pode dizer-se que a representação do espaço já tem que estar subjacente para certas sensações se referirem a “algo fora de mim” (isto é, a algo num lugar do espaço diverso daquele em que me encontro), e igualmente para “eu poder representá-las como fora de mim” e uma ao lado da outra e, por conseguinte, não simplesmente como diferentes, mas como situadas em lugares diferentes. Assim, a representação do espaço não pode ser tomada emprestada, mediante a experiência, das relações do fenómeno externo, mas esta própria experiência externa é primeiramente possível só mediante a referida representação. O espaço é condição da possibilidade dos fenómenos, e não uma determinação dependente destes; é uma representação a priori que subjaz necessariamente os fenómenos externos. Por sua vez, o tempo é uma representação necessária a todas as intuições. No que concerne aos fenómenos em geral, não se pode suprimir o próprio tempo, apesar de se poder, do tempo, eliminar os fenómenos. O tempo é um dado a priori. Só nele é possível toda a realidade dos fenómenos. Estes podem, todos em conjunto, desaparecer, mas o tempo – como condição da sua possibilidade – não pode ser suprimido.
Enfim, apagam-se os acontecimentos (ou tenta-se), mas o tempo em que eles tiveram lugar não desaparece. E assim ficam as sombras do que ocorreu. “Nas paredes da memória, essa lembrança é o quadro que dói mais”, canta o Belchior. Sombras a perambularem pelo quotidiano, a perpassar a existência. No horizonte, peso e leveza.
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