Mais um dos meus textos publicados na antiga Revista Portuguesa ZonaNon, reproduzido no Brasil na Revista Espaço Livre, que esteve sendo editada por Nildo Viana. A versão abaixo, contudo, diferencia-se da anterior.
DA INQUIETAÇÃO À MELANCOLIA: RISCO DE VIDA OU A INTROSPECÇÃO DE WALTER BENJAMIN
Por Ivonaldo Leite
“Quando uma luz se apaga, fica mais escuro do que se jamais ela tivesse brilhado”. Com esta frase, tomada de empréstimo à peça shakespereana Ricardo III, o romancista norte-americano John Steinbeck quis marcar o tom de desencanto de uma época. O “inverno da nossa desesperança”, disse ele. Desencanto com o tempo do declínio ético, e onde a felicidade é apartada da simplicidade, pelo que raramente é achada nos encontros e nas surpresas da vida cotidiana.
Qualquer coisa que, de alguma forma, nos faz lembrar o personagem de Al Pacino em scent of a woman (numa tradução directa, “perfume de mulher”). Entre a luz e a escuridão. No papel de um cego, Al Pacino transita entre o mundo pretérito e o presente, vivendo este pela imaginação que, sabemos, produz desejos precisamente por os desejos resultarem da curiosidade e da intrínseca necessidade humana de saciar a subjetividade. Já tendo um mundo vivido, o tempo a viver de Frank Slade – personagem interpretado por Al Pacino - é breve. Brevidade à qual ele procura lhe atribuir sentido a partir da amizade com um jovem que, nesta condição, ainda tem um mundo a viver e, por conseguinte, tem no seu horizonte a busca de significado para a existência. “Num momento, vive-se uma vida”. Com esta frase, Slade atenuou a reacção da jovem que ficou surpreendida com o convite que ele lhe dirigiu para dançar, alegando que o seu noivo estava a chegar. Temporalidade que, mesmo sendo breve, não finda.
Mas, as luzes apagadas. No mundo do conhecimento, há, contudo, aquelas que, mesmo após o seu crepúsculo, continuam a iluminar caminhos. Esse é o caso do pensador social judaico-alemão Walter Benjamin.
Pelas sendas de um pensamento trágico e dilacerado, procurou ele incansavelmente uma via de salvação para o seu próximo. Era um dos melhores de nós. Um irmão, talvez. Não estando este ensaio ao abrigo do universo teológico-metafísico, possivelmente não seja aqui o sítio para categorizar esta perturbadora impressão. Todavia, enquanto teço o texto, dou uma vista de olhos nalgumas fotografias suas, e então sou tomado por um profundo sentimento de incógnita e mistério para sempre encerrados neste mundo. Benjamin viveu e amou, teve muitos sonhos e se viu perseguido pela lacinante dor, pela tristeza, angústia, enfim, os olhos secos. Até tudo ter fim na fuga apressada.
Foi assim. Num dia qualquer de 1940, algures no lado espanhol da fronteira entre França e Espanha, um grupo de intelectuais alemães fugia da Gestapo, a terrível polícia nazista. Entre eles, estava Walter Benjamin. Ao ver-se impedido de seguir o seu percurso, num misto de desespero (diante da possibilidade de cair nas garras dos militares hitleristas) e de negação a submeter à tortura, ele não resistiu a tensão psicológica e lançou mão do acto que tanto pode ser considerado um absurdo como também é passível de racionalização: o suicídio. Foi deste modo que Benjamin pôs termo à sua própria vida e, ao mesmo tempo, com a sua atitude, mostrou quão inesperados são os abismos dessa coisa chamada condição humana.
Como bem nos diz o seu contemporâneo Adorno Horkheimer, Benjamin era uma pessoa de personalidade enigmática, com uma conduta que oscilava entre a firmeza quase rígida e a polidez oriental. Uma maneira de ser que aparentava mais o temperamento vibrante dum artista, do que a frieza do cientista, e ele, todavia, não rejeitava a racionalidade. Seu pensamento parecia nascer dum impulso de natureza artística que, transformado em teoria, liberta-se da aparência e anuncia a promessa da felicidade. E, entretanto, como relatou o seu amigo Gerschom Scholem, após o conhecer na Primavera de 1915, metia impressão a profunda sensação de melancolia de que ele parecia estar permanentemente possuído. Assim era Walter Benjamin. Não menos real para mim é a sua imagem de poeta e místico heresiarca.
De forma sintética, penso que não se pode senão destacar que o que motivava Benjamin era, por exemplo, o impulso para romper com a lógica que aborda limitativamente o universal e o individual. Dos escritos benjaminianos, há o soar de um pensamento que recolhe as promessas dos contos infantis, em vez de as recusar por conta de uma presumível e depreciativa maturidade do adulto. Isto é assumido tão literalmente que torna até perceptível o pleno cumprimento real do conhecimento. E desde o início a sua topografia filosófica diz-nos o que não assimila: a renúncia. O que nos faz sentir como a criança que vislumbra, pelas frestas da porta, as luzes da árvore de Natal. Mas não estamos diante de um pensamento surgido do nada. Não. Ele é uma oferta a partir da plenitude. É daí que advém a sua interpretação do quadro de Paul Klee, que, denunciando a destruição causada pelo progresso, serve de inspiração à ecologia social.
Diz a interpretação benjaminiana: “há um quadro de Klee chamado Angelus Novus. Representa um anjo que parece a ponto de afastar-se para longe daquilo a que está olhando fixamente. Seus olhos estão arregalados, sua boca aberta, suas asas estendidas. O anjo da história deve ter este aspecto. Seu rosto está voltado para o passado. Onde diante de nós aparece um encadeamento de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que vai empilhando incessantemente escombros sobre escombros, lançando-os diante de seus pés. O anjo bem que gostaria de se deter, despertar os mortos e recompor o que foi feito em pedaços. Mas uma tempestade sopra e prende suas asas com tal força, que o anjo já não as pode fechar. A tempestade irresistivelmente o impele ao futuro, para o qual ele dá as costas, enquanto o monte de escombros cresce até o céu diante dele. Esta tempestade é aquilo que nós chamamos progresso”.
Dessa interpretação, pode-se inferir que os problemas ambientais, os prenúncios da crise ecológica que actualmente vivemos, são decorrências do modo de desenvolvimento prevalecente no mundo, onde a acumulação dos grandes grupos econômicos, a complacência de governos e o consumismo parvo geram o “progresso” destrutivo. “Progresso” que, no entanto, extasia, acomoda, mas não tem potencialidades para efetivar a realização dos sentidos da ontologia humana, e, como prova disso, pode-se mencionar o aumento das chamadas “doenças da alma” nas sociedades modernas.
No mundo confuso e desequilibrado em que vivemos, a herança benjaminiana impulsiona-nos à busca da satisfação e da realização sócio-emotiva, as quais a adaptação e a auto-conservação nos impedem de ter. Impulsiona-nos ao prazer em que se articulam os sentidos e o espírito, na convicção de que o nome das coisas e dos seres humanos é o protótipo de toda a esperança. Lições para uma ecologia social da felicidade.
Da luz que se “apaga” aos raios inspiradores que continua a emitir. A iluminar as frestas do tempo. Walter Benjamin continua a nos falar. E nisso confirma a perspectiva hegeliana sobre a morte, pois, conforme Hegel, por um lado, ela é o resultado final do processo de um indivíduo singular, que vive e age numa sociedade universal, e, por outro lado, é a negatividade natural do indivíduo que ocorre no tempo, mas que cancela o tempo absoluto do indivíduo que morre. A morte faz o indivíduo sair da universalidade quieta, da negatividade abstracta. À esta universalidade quieta, o morto é remetido como originalidade natural, como ente que, assim sendo, deixa de ser uma diferença, deixa de ser uma alteridade e um outro.
Assim é a morte. Ela nos proporciona uma pergunta sem resposta: "Por quê?". Por não termos resposta, emerge uma dor profunda e, diante desta instância incontrolável, a melancolia que se nos apodera, ora nos oprime na sensação do desaparecimento total e ora nos indaga sobre o significado e a validade das vidas individuais. Se a sensação vazia do desaparecimento que sentimos, diante do túmulo, nos provoca o luto e nos aprisiona à passividade, é na indagação sobre o significado e a validade das vidas individuais onde podemos encontrar o caminho que nos conduz a superar as reflexões sentimentais, para devolvermo-nos, a nós mesmos, ao mundo activo da história.
Somente com o nosso retorno ao mundo activo da história dos seres humanos vivos, podemos nos reconciliar com a universalidade da vida. Quer dizer, é na reconciliação com a vida, que nos nega consolo, que temos o lugar onde poderemos encontrar a valorização do desaparecido. Porém, não como desaparecido, mas na expressão de sua universalidade vivida, no produto de sua actividade (no que ele fez), que se apresenta como legado e como exemplo a inspirar ações no mundo dos vivos, pois o que sobrevive é a produção consciente e socialmente significativa do indivíduo. Ela é eterna-mente, ou seja, ficará para sempre na mente das outras pessoas.
Isso é o que se passa com Walter Benjamin, inspirando, a meu ver, a ecologia social. Por certo, ele desagradou “clubes intelectuais” nos “arrumados” em que estes são especialistas, e ele se sentia atraído pela academia com a ironia análoga à de Franz Kafka na sua atração pelas empresas de seguro. Super-talento, foi-lhe uma divisa endereçada, e um bonzo existencial o condenou “por não se enquadrar em padrões”, como se o sofrimento de quem é possuído pelo espírito transbordante tivesse de condenar a sua obra à morte apenas pelo facto de perturbar a simples relação tu-eu. Contudo, e talvez possa até parecer paradoxal, Benjamin evitava a violência com as palavras. Se despertava insatisfação era porque, sem querer, desprovido de qualquer intencionalidade polêmica, o seu olhar introspectivo, oscilando da inquietação à melancolia, mostrava sempre o mundo usual no eclipse que é a sua luz permanente.
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