Disse Andre Breton que o Surrealismo é a cauda do cometa da visão romântica do mundo. Como pode ser conhecida a luz? Responde uma convicção surrealista: por via da poesia, da liberdade e do amor. Michael Löwy se ocupou do tema, produzindo o "A Estrela da Manhã: Marxismo e Surrealismo", publicado em inglês como Morning Star. Gustavo Bernardo comenta o livro na resenha abaixo.
SURREALISMO:
a cauda do cometa ainda brilha
a cauda do cometa ainda brilha
Gustavo Bernardo
O surrealismo não é bem uma escola literária. É melhor defini-lo como uma tentativa subversiva de re-encantamento do mundo. Sua matriz é romântica, entendendo-se o romantismo como um protesto de dentro do capitalismo contra ele mesmo: no dizer de Breton, o surrealismo é a cauda do cometa da visão romântica do mundo. Costuma-se datar seu começo em 1924 e seu final em 1969, mas o autor desse livro discorda veementemente que a aventura surrealista já tenha se encerrado. Como continuamos vivendo em um mundo transformado numa gaiola de aço (ou seja, numa estrutura alienante que nos coisifica e assim nos encarcera), o surrealismo continuaria sendo necessário para romper as grades da gaiola.
Isso é o que Michael Löwy procura demonstrar nos ensaios do seu livro. O livro foi escrito originalmente em francês, porque Löwy trabalha em Paris como diretor de pesquisa do Centre National de la Recherche Scientifique – mas seu autor nasceu no Brasil em 1938. Estudou ciências sociais na USP e doutorou-se na Sorbonne. Crítico feroz da globalização, aqui ele estuda as afinidades eletivas dos fundadores do movimento, particularmente André Breton e Benjamin Péret, com os marxistas e os anarquistas, que de modo diferente mas complementar também contestam a ordem burguesa estabelecida. Para reafirmar a continuidade do movimento, o livro é ilustrado com várias obras recentes de surrealistas de diversos países do mundo. O volume conta ainda com a história do surrealismo no Brasil, da década de 20 aos dias de hoje, escrita pelo poeta Sergio Lima. O anexo é importante porque, ao lado de Paris, Praga, Estocolmo, Madri e Chicago, a cidade de São Paulo mantém um grupo surrealista ativo.
O título do livro remete a uma alegoria de Breton: a estrela da manhã, caída da fronte de Lúcifer, seria a expressão suprema do pensamento romântico, representando a insubmissão. A revolta e somente a revolta poderia ser criadora de luz, luz esta que não pode ser conhecida senão por três vias: a poesia, a liberdade e o amor. O apoio na luz de Lúcifer não é casual: o surrealismo procura o mito para voltá-lo contra as religiões estabelecidas, cujos dogmas ajudam a prender os arames daquela gaiola de aço. Rimbaud, Lautréamont e Apollinaire começaram a engendrar o surrealismo a partir de uma revolta amarga e apaixonada contra o catolicismo. Nesse sentido o surrealismo estaria mais próximo do anarquismo do que do marxismo, como demonstra a emoção que Breton sentiu quando criança ao descobrir no cemitério um túmulo com uma inscrição simples e corajosa (levando em conta o lugar em que estava): “Nem Deus nem Mestre”.
Além de Breton e Péret (que teve passagem significativa pelo Brasil), Löwy estuda o pensamento de Walter Benjamin, Pierre Naville, Vicent Bounoure e Guy Debord, buscando estreitar as relações entre surrealismo e marxismo pela ótica da revolta legítima. As “orelhas” do livro, assinadas por Leandro Konder, reforçam este objetivo, mostrando a necessidade da arte para a luta política (e vice versa). A leitura atesta a generosidade desse pensamento, mostrando corretamente a relação do romantismo não apenas com o surrealismo mas também com o marxismo.
No entanto, as contradições inerentes ao romantismo afetam todos esses campos. Assim como a revolta romântica contra o capitalismo de que nasce traveste-se muitas vezes da saudade de um passado idílico e honroso que talvez nunca tenha existido, a revolta marxista contra o mesmo capitalismo de que também nasceu traveste-se outras tantas vezes de apegos passadistas que dificultam a própria luta política, como o mostraram os acontecimentos do socialismo “real”. A teoria marxista é apta para lidar bem com essas contradições, como mostra a obra de Löwy e, no Brasil, de Leandro Konder, mas cabe assinalá-las para passar à crítica do trabalho do sociólogo franco-brasileiro.
Os ensaios de A estrela da manhã demonstram empolgação irrestrita com aquilo de que tratam, mas isso pode ser tanto qualidade quanto defeito. Por um lado a empolgação autêntica e generosa é um refresco muito bem-vindo nos tempos da fria racionalidade instrumental, em que o cinismo oportunista (bem diferente do cinismo de Diógenes) se tornou estratégia de sobrevivência que torna o viver apenas isso: um mero sobreviver. Por outro lado, porém, a empolgação tende a vestir antolhos e considerar a si mesma absolutamente genial, desprezando todas as outras maneiras de estar no mundo – a arrogância de Guy Debord (que se considerava o único indivíduo livre em uma sociedade de escravos ) e dos apocalípticos que o seguiram exemplifica esta situação.
Falta muitas vezes aos movimentos de revolta (política, estética ou religiosa) um mínimo de ironia que os proteja ao menos de si mesmos. A ironia também está presente no romantismo, é verdade – mas principalmente no romantismo alemão, não no francês. Sem ironia e auto-ironia, a revolta transforma-se em indignação santa que por sua vez provoca cruzadas santas contra não apenas os inimigos do povo e da arte mas também contra os amigos que tenham preservado um pouco de ironia e de desconfiança quanto aos grandes combates.
Löwy sabe disso quando recorre a uma expressão paradoxal para aproximar Walter Benjamin de Pierre Naville: “pessimismo revolucionário”. A expressão é paradoxal porque pessimismo implica uma certa inércia que não combina com revolução. Nesse sentido a expressão é muito boa; ela rejeita a confiança irrestrita no curso natural da história que levaria irrevogavelmente à vitória da revolução. Na bela frase de Löwy: “não é a crença teleológica em um triunfo rápido e certo que motiva o revolucionário, mas a convicção profundamente enraizada de que não se pode viver como um ser humano digno desse nome sem combater com pertinácia e vontade inabalável a ordem estabelecida” (p.16).
Sim, a frase é bela e no fundamental correta, mas contém um adjetivo mal encaixado: dizer que a vontade deve ser “inabalável” (e que não se é digno se a vontade não for “inabalável”) implica retornar a uma concepção heróica da existência que se encontra a um pequeno passo de concepções totalitárias e excludentes de política e de estética. Não à toa os surrealistas são comparados, no último parágrafo de Löwy, aos cangaceiros, “os bandidos de honra dos sertões brasileiros” (p.104). Como os cangaceiros, inclusive Riobaldo, o narrador de Grande sertão: veredas, foram, além de honrados, assassinos e estupradores, não fazendo nada tão diferente assim das milícias que os perseguiam, talvez tenhamos alguma razão em ter medo de qualquer tipo de herói.
Adjetivos e verbos grandiloqüentes como aquele (por exemplo, a obra dos surrealistas sempre “resplandece”) infelizmente se multiplicam nos ensaios do sociólogo, enfraquecendo sua argumentação. Mas como o livro é de fato muito importante, pelas informações que traz e pela empolgação que demonstra, cabe uma leitura seletiva, relevando esses termos com um sorriso enquanto se usufrui do pensamento generoso de Michael Löwy.
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