sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Amores fáceis

Seria o amor romântico uma forma de comunicação particular que destaca e separa os amantes de seu entorno? A ser assim, o que define a interação amorosa não é o consumo de rituais românticos, como sustentam a teoria crítica e os estudos culturais, mas o sentido singular que os amantes conferem à sua relação e às atividades conjuntas. Mais a este respeito no artigo abaixo,de Sérgio Costa (CEBRAP), publicado pelos Novos Estudos CEBRAP, nº 73. 




Amores fáceis:

Romantismo e consumo na modernidade tardia


Sérgio Costa

Es hielo abrasador, es fuego helado,
es herida que duele y no se siente,
es un soñado bien, un mal presente,
es un breve descanso muy cansado
Quevedo, "Soneto amoroso definiendo el amor"

As tensões entre um suposto "amor verdadeiro", movido por ideais nobres e sentimentos sublimes, e o "amor interesseiro", fundado nas motivações egoísticas das partes, não são fonte de inspiração apenas dos folhetins românticos e livros de auto-ajuda. Pelo menos desde as primeiras décadas do século XX, o tema também é objeto de atenção das ciências sociais. O que as interessa porém não são os enredos sentimentais nos quais os amantes vivem seus prazeres, auto-enganos e ilusões, mas as lógicas ou padrões de ação que imperam ou deveriam imperar nas diferentes esferas sociais. Assim, nas ciências sociais as fricções entre amor verdadeiro e amor interesseiro tomam a forma de tensões entre a lógica instrumental que vige na economia ou na política e a natureza das relações amorosas.
Conforme o grosso da bibliografia especializada, as tensões entre interesses instrumentais e relações amorosas são levadas ao paroxismo na modernidade tardia. Trata-se aqui genericamente das sociedades modernas contemporâneas, marcadas pela compressão sem precedentes do tempo e do espaço, pela racionalização, impessoalização e desterritorialização das relações sociais e, do ponto de vista dos indivíduos, por uma radicalização do princípio da auto-responsabilidade em relação ao próprio presente e ao futuro. Dessa forma, as comunidades tradicionais — a grande família, a localidade de origem etc. — se rarefazem e as referências coletivas modernas — a família nuclear, o sindicato, a nação etc. — vêem obliterada sua capacidade de recosturar os laços de proximidade e solidariedade desfeitos pela modernização.
Nesse contexto o indivíduo se torna ele próprio processador de pressões de todas as ordens que caem sem anteparos sobre seu colo: espera-se dele não só desempenho profissional e competência social, mas também um cultivo intelectual e estético que o destaque em seu grupo social1. É em meio a esses constrangimentos que se idealizam e se constroem as relações amorosas, e a questão que se coloca é se de fato é possível conciliar lógicas de ação e padrões de relação social tão diversos como aqueles que imperam na esfera íntima e nos sistemas funcionais da modernidade tardia. Pois, enquanto no mercado prevalecem relações impessoais e instrumentais e o que conta é a qualificação, o desempenho técnico ou o dinheiro que se tem no bolso, esperando-se de cada indivíduo disciplina, capacidade de seguir regras aprendidas e previsibilidade de comportamento, nas relações amorosas, conforme a idealização romântica, deveria supostamente contar o oposto: a espontaneidade, a imprevisibilidade, a transgressão de regras e convenções. Ademais, se no mercado os indivíduos são avaliados segundo critérios generalizáveis e se tornam, por isso, intercambiáveis, nas relações amorosas o critério de seleção é subjetivo e inacessível à cognição, o que torna a pessoa amada única e insubstituível aos olhos do amante.
No debate das ciências sociais essas naturezas distintas do mercado e do amor foram tradicionalmente vistas como antinômicas e irreconciliáveis. Nessa discussão confere-se particular atenção à questão da crescente mercantilização dos contextos em que o amor é vivido e idealizado. O que se questiona é se o amor romântico, construído na história social moderna como o último refúgio do aconchego e da espontaneidade, da entrega altruísta e da suspensão das relações instrumentais, pode subsistir à comercialização capitalista — sem medidas nem fronteiras — dos espaços sociais e de lazer nos quais as experiências amorosas são vivenciadas.
Esse debate prosperou de forma particularmente intensa no interior da teoria crítica e recentemente vem sendo revivificado no âmbito do intercâmbio entre a "terceira geração" da Escola de Frankfurt e os estudos culturais. Tal diálogo se encontra refletido no trabalho da socióloga Eva Illouz, da Universidade de Jerusalém, acolhido e discutido com entusiasmo entre os teóricos críticos contemporâneos. Seu livro Consumindo a utopia romântica, de 1997, que analisa as transformações do amor romântico ao longo do século XX nos Estados Unidos, foi agraciado pela Associação Americana de Sociologia com o prêmio para contribuições destacadas e em 2003 teve sua tradução para o alemão publicada pelo Instituto de Pesquisas Sociais (Institut für Sozialforschung), sendo prefaciado por seu diretor, Axel Honneth2. O debate com a autora vem tendo continuidade em seminários e colóquios, e recentemente mereceu um número especial da revista WestEnd, o novo periódico do Instituto.
Em linhas gerais, o trabalho da autora busca enfatizar a relação de complementaridade entre amor romântico e mercado na modernidade tardia. Para ela, a comercialização dos contextos românticos não causa danos à subjetividade nem produz patologias sociais. Ao contrário, amor romântico e capitalismo constituem um par bem resolvido. Segundo a autora, o consumo massivo de rituais amorosos constitui o núcleo do amor romântico contemporâneo, revigorando tanto o capitalismo quanto os amantes.
Recorrendo à teoria sistêmica e mais especificamente a trabalho canônico sobre o tema, o livro Amor como paixão, de Niklas Luhmann3, o presente artigo busca recuperar as tensões entre o amor romântico e o mercado. Como será detalhado mais adiante, o que nos interessa no tratamento do amor pela teoria sistêmica não é a história da constituição da semântica amorosa na Europa, como a descreve Luhmann, mas um subproduto das investigações do autor, a descrição da comunicação romântica, recuperada aqui como uma microssociologia da interação amorosa4. Assim, o artigo busca primeiro abordar conceitualmente diferentes dimensões do amor romântico. Em seguida reconstrói o debate entre os estudos culturais e a teoria crítica para finalmente desenvolver o argumento microssociológico anunciado, de sorte a recolocar e qualificar as fronteiras entre amor romântico e mercado.

DIMENSÕES DO AMOR ROMÂNTICO
Não se encontra na bibliografia sociológica contemporânea uma definição adequada para o amor romântico. Isso se deve em parte ao fato de que a orientação cognitivo-normativa — a preocupação com a racionalidade e a ordem — que predominou nas ciências sociais do pós-guerra relegou o tema das emoções e do amor a segundo plano. Só mesmo a partir dos anos 1980 é que esse temário é retomado e reconstruído como questão relevante para a sociologia5. Ainda assim, quando se trata especificamente do amor, a bibliografia tende a privilegiar aspectos da história social e da história das idéias.
Isso contrasta com os trabalhos dos fundadores da sociologia, empenhados em não perder de vista a multidimensionalidade do amor. Assim, Max Weber destaca a "seriedade mortal do amor sexual", que segundo ele contraria "da forma mais radical possível" tudo que seja objetivo, racional e generalizável6. De forma mais ampla e consistente, Georg Simmel buscou estudar o "amor sexual" como "categoria primária injustificada" que se encarna em formas de construção histórica e individual variadas7. A partir dessa idéia norteadora, o autor produz uma vasta gama de estudos sobre o amor e as relações amorosas, os quais mantiveram sua atualidade através dos tempos8.
Com o intuito de aludir à amplitude analítica inerente ao tema, gostaria de definir o amor romântico aqui como um modelo histórico-cultural que se desdobra (pelo menos) em cinco dimensões, como segue.
No campo das emoções, o amor romântico se expressa como "um vínculo com o outro que não conhece desejo mais ardente que a vontade de conduzir a própria vida no corpo da pessoa amada", conforme a precisa definição de Dux9. É preciso dizer que aqui "emoção" não se refere a uma constante pré-cultural ou a uma mera manifestação neurofisiológica10. Trata-se, ao contrário, de fenômeno situado na interface entre corpo e cultura, refletindo portanto os legados culturais, as características de personalidade individuais e os determinantes de um contexto social específico11.
Como idealização, o amor romântico promete ao indivíduo o reconhecimento pleno de sua singularidade, incluídas aí todas as dimensões, particularidades e mesmo idiossincrasias pessoais. Por isso mesmo, o amor romântico reivindica e absorve as pessoas de forma total, fazendo com que outras referências do entorno social percam sua importância12. O processo de constituição histórica do ideal romântico ocidental se encontra bem estudado e documentado na bibliografia13. Em tais reconstruções o amor romântico aparece como uma síntese dos ideais espirituais e sensuais de amor, fundindo, por um lado, o amor platônico, a mística cristã e o amor cortesão e, por outro, a ars erotica, o hedonismo renascentista e a galanteria14. Nas sociedades contemporâneas, "o ideal romântico, a despeito de perder sua plausibilidade, mantém uma enorme importância"15, constituindo ainda matriz de referência relevante para escolhas e comportamentos individuais.
Como modelo de relação, condensam-se historicamente no amor romântico a unidade entre paixão sexual e afeição emocional, a unidade de amor e matrimônio e, freqüentemente, os planos de constituição de uma prole16.
Como prática cultural, o amor romântico corresponde a um repertório de discursos, ações e rituais mediante os quais as emoções amorosas, observadas as devidas diferenças culturais, são evocadas, percebidas, transmitidas e intensificadas17.
No campo das interações sociais, o amor romântico corresponde a uma forma radicalizada do que Luhmann qualificou como "interpenetração interpessoal": uma interação que se destaca do mundo social anônimo, levando os amantes a se valer de modelos de significação e interpretação e de símbolos comunicativos que, de tão diferenciados, muitas vezes se tornam herméticos a quem esteja fora da relação18.

DA INCOMPATIBILIDADE À SIMBIOSE
Em sua avaliação do tratamento conferido ao amor pela teoria crítica, Eva Illouz mostra que os diagnósticos de época desenvolvidos por essa escola destacam recorrentemente que a proliferação da oferta e do consumo em massa de rituais amorosos é sintoma das patologias sociais modernas. Do ponto de vista normativo, afirma a autora, as diferentes gerações da Escola de Frankfurt buscaram sublinhar a necessidade de manter as relações amorosas protegidas da lógica econômico-utilitarista.
Formulada com tal nível de generalidade, a interpretação de Illouz efetivamente resume o tom geral da crítica cultural frankfurtiana em diferentes momentos. Já em Minima moralia, de 1951, Adorno externa seu ceticismo quanto às possibilidades do amor no mundo dominado pelo utilitarismo: "Amar significa ser capaz de não deixar a espontaneidade ser seqüestrada pela pressão onipresente da intermediação da economia; em tal fidelidade o amor é transmitido em si próprio"19. Poucos anos depois Marcuse também se voltaria contra o comércio e a tecnicização das fantasias românticas, que levariam à produção de falsas necessidades e à obliteração de qualquer possibilidade emancipatória. Para ele, a mercantilização do amor só poderia produzir cerceamento da liberdade individual; o grande operador da máquina de produção dos sonhos românticos no capitalismo não seria Eros, mas Tânatos20.
Diferentemente de Marcuse, Erich Fromm não acreditava haver obstáculos estruturais intransponíveis para uma relação amorosa "não-patológica" nas sociedades capitalistas: a "arte de amar" pode ser aprendida por todos os que busquem estudá-la com engajamento e pertinácia. Não obstante, o diagnóstico do autor aponta que nas sociedades capitalistas o universo das relações amorosas foi tomado pelos interesses utilitaristas e mercantis, opostos à lógica do amor. Nesse sentido, para vivenciar o amor, a "mais profunda e real necessidade de qualquer ser humano", as pessoas precisariam reconquistar sua autonomia:
Os seres humanos são motivados pelo sugestionamento massificado; seu objetivo é produzir e consumir cada vez mais como um objetivo em si mesmo. Todas as atividades são subordinadas a esses objetivos econômicos, os meios se tornaram fins; o homem é um autômato bem-vestido e bem-alimentado [...]. Se o ser humano quer ser capaz de amar, precisa se colocar em primeiro lugar. O aparato econômico deve servi-lo, e não o contrário21.
A extensa obra de Habermas não resolve a dificuldade da teoria crítica em apreender analiticamente (vale dizer: fora do registro moral) as relações entre amor e mercado. A rigor, Habermas pouco se refere ao tema. Nem mesmo o ensaio em que ele mergulha na obra de George Bataille constitui exceção, já que ali não se faz qualquer alusão a amor e erotismo22. De todo modo, cumpre ressaltar que a comunicação amorosa não pode ser plenamente entendida a partir da teoria da ação comunicativa. Afinal, trata-se iniludivelmente de uma forma de comunicação afeita ao mundo da vida, mas que não pode ser tratada como uma forma de comunicação voltada para o entendimento, como se deveria depreender da teoria. Como se destaca mais adiante, a comunicação romântica não busca produzir entendimento e acordos: ao contrário, busca enfatizar as diferenças individuais.
Ainda que Habermas não se ocupe diretamente do problema, a aplicação de sua teoria à discussão das relações entre mercado e amor confirma o diagnóstico da primeira geração frankfurtiana. Assim, se partíssemos do modelo de dois níveis de sociedade postulado por Habermas — a esfera dos sistemas e o mundo da vida — seríamos levados a considerar que quando estímulos românticos fabricados com propósitos comerciais se infiltram na vida cotidiana dos amantes produzir-se-ia a indesejada colonização do mundo da vida, reafirmando-se assim a contradição irredutível entre economia e amor.
Buscando promover o diálogo entre os estudos culturais e a tradição crítica, Eva Illouz recupera as muitas conexões entre o mercado capitalista e o amor romântico e afirma não haver entre eles contradição, e sim uma perfeita simbiose23. Essencialmente, a autora argumenta que o amor romântico constitui a última fonte geradora das utopias de transformação e ruptura da ordem cotidiana, necessárias à reprodução simbólica e material do capitalismo. Para ela, amantes se vêem tomados por grande energia criativa e transformadora, de modo que quem ama se sente como um revolucionário estimulado a transgredir a normalidade, vivendo com a pessoa amada experiências que escapam ao registro da ordem estabelecida. No entanto, do ponto de vista político a revolução promovida pelos amantes é pífia, uma vez que a suposta ruptura com a normalidade projeta os amantes para dentro do universo de ofertas e possibilidades do consumo romântico. Dessa forma, a pretendida ruptura com a ordem experienciada pelos amantes representa uma mera migração entre esferas de sociabilidade: eles abandonam o cotidiano para penetrar no mundo mágico do consumo romântico. Ambos os universos, contudo, são subordinados ao regime de produção e distribuição de bens e serviços próprio ao capitalismo.
A partir de pesquisa histórico-empírica sobre a trajetória do amor romântico nos Estados Unidos, Illouz identifica pelo menos três grandes interfaces que assegurariam a convergência entre a produção e circulação de bens e serviços e o amor romântico na modernidade tardia.
A primeira conexão é estabelecida pela geração e difusão dos significados culturais associados ao amor romântico. A excitação corporal sentida ao se atrair por alguém é decodificada como amor a partir dos repertórios culturais disponíveis, que estão materializados em valores e redes de significações mas também num acervo material de imagens, produtos, livros, obras de arte etc. É esse conjunto de referências que permite reconhecer, interpretar e avaliar a natureza e a intensidade do estímulo sentido. Afinal, há que diferenciar em cada caso se se trata de um ardor passageiro ou de algo que vai virar a vida dos amantes pelo avesso. Os acervos culturais servem também para orientar aquele que ama mediante indicações que lhe permitam interpretar a ação da pessoa amada, de sorte a saber se o amor é correspondido. Orientam ainda a própria ação do amante no sentido de que este module seus gestos e palavras de maneira a fazer o outro compreender-se amado e indique, num código que não faça desmoronar o momento amoroso, mas que seja claro e inconfundível, qual é a natureza desse desejo amoroso: se é algo que sugere itinerários de vida comum ou se apenas promete alguns momentos de prazer.
Se no advento do amor romântico as obras literárias eram responsáveis pela difusão dos modelos de comunicação e ação para os amantes, na modernidade tardia tal função é desempenhada, conforme Illouz, pela indústria cultural e pela publicidade. Para demonstrar seu argumento, a autora primeiramente examina revistas voltadas para públicos diversos nos Estados Unidos dos anos 1920, mostrando por meio desse material como a publicidade, os filmes e a indústria do lazer vão construindo enredos românticos que associam o amor à realização existencial e ao sucesso pessoal. Já o período contemporâneo é estudado a partir de entrevistas com pessoas de diferentes estratos sociais, as quais revelam igualmente que suas próprias definições cognitivas das situações românticas remetem ao processo de aprendizado por intermédio dos meios de comunicação de massa.
Entre os entrevistados mais escolarizados a autora registra um certo pudor crítico na assimilação das imagens românticas divulgadas pelos meios de comunicação de massa e pelos produtos da indústria cultural. No caso dessas pessoas, tais imagens se constituem numa espécie de realidade primária que os amantes imitam de forma consciente e auto-irônica. Lembre-se, como o faz a própria autora, que essa tendência já havia sido constatada por Umberto Eco ao dizer que as declarações de amor entre pessoas com algum cultivo intelectual se transformaram em citações literárias:
A atitude pós-moderna me parece semelhante à do homem que ama uma mulher inteligente e cultivada e sabe portanto que não pode dizer a ela: "Eu te amo ardentemente", já que ele sabe que ela sabe (e ela sabe que ele sabe) que precisamente essas mesmas palavras já foram escritas, digamos, por Liala24. Há no entanto uma solução. Ele pode dizer: "Como diria agora Liala, eu te amo ardentemente". Nesse momento, depois de ter evitado a falsa inocência, depois de ter expressado que não se pode usar as palavras ingenuamente, ele acaba dizendo o que queria dizer, ou seja, que a ama, mas que a ama numa era em que a inocência foi perdida25.
A segunda interseção entre mercado e amor identificada por Illouz encontra-se no desenvolvimento, ao longo do século XX, de um cenário público para o desenrolar do enredo amoroso. Nos Estados Unidos isso se dá a partir da instituição do "dating", o encontro a dois que liberta o amor da esfera sufocante da família para permitir que o par apaixonado possa vivenciar suas emoções românticas nos novos espaços comerciais de lazer: o escurinho do cinema, o bar, o jantar à luz de velas etc. Mais contemporaneamente vão sendo incorporados ao cotidiano dos amantes novos roteiros e cenários para seus enredos amorosos: o passeio de carro, a viagem à praia e até o giro pela Europa. Registre-se que não apenas os jovens casais apaixonados se valem dos espaços e enredos românticos para desfrutar os momentos a dois em seus primeiros encontros: também os casais maduros, envolvidos em relações duradouras, recorrem à indústria de rituais românticos, buscando operar o milagre de reacender as fantasias amorosas arrefecidas pelos rigores da cotidianidade conjugal26.
Para caracterizar as situações carregadas de emoção romântica, Illouz recorre à antropologia da religião de Victor Turner, e mais especificamente à sua descrição de rituais religiosos que culminam num estado liminar. Segundo a autora, também o amor romântico apresenta seus rituais liminares, nos quais se rompem as ordens e hierarquias cotidianas e os amantes, por meio do consumo de mercadorias e serviços etiquetados como românticos, se vêem transportados a um mundo fantástico, no interior do qual os aborrecimentos mundanos, as próprias fragilidades e, com alguma sorte, até mesmo os caprichos mais infames da pessoa amada são temporariamente suspensos. A relação entre o amor romântico e o mercado de bens e serviços para os amantes adquire assim um desenho paradoxal, mas não contraditório: para "escapar" da normalidade enfadonha os amantes recorrem, em seus rituais românticos, àquilo que fazem todos os dias nas sociedades capitalistas, ou seja, consomem bens e serviços, reconciliando o ideal romântico marcado pelo desejo de transcendência com a trivialidade das transações comerciais:
A noção de ritual é o elo entre os bens e símbolos comercializados em massa e as sensações subjetivas de prazer, criatividade, liberdade e distanciamento do comércio de mercadorias. Isso implica, por sua vez, que não há uma dicotomia simples entre o universo das relações intersubjetivas e a esfera do consumo, visto que os significados que sustentam o "mundo da vida" do amor romântico são produzidos dentro e não fora do sistema capitalista27.
A terceira interface entre o cálculo econômico e o amor romântico identificada por Illouz situa-se no âmbito das escolhas amorosas. A despeito das fábulas sobre o amor que ultrapassa todas as fronteiras sociais e físicas, as estatísticas mostram, conforme a autora, que possuir capitais culturais equivalentes é condição sine qua non para o vínculo amoroso. Contrariando sua própria auto-representação, o amor romântico é, portanto, socialmente endogâmico28.
Estudos como o de Illouz, ao buscar elencar e interpretar as práticas culturais associadas ao amor romântico, podem efetivamente renovar a reflexão da teoria crítica sobre o tema, conforme aposta a autora29, uma vez que reconciliam a reflexão intelectual e a crítica cultural com as experiências concretas dos atores. Não obstante, falta à análise da autora algo caro à sociologia pelo menos desde Weber: considerar adequadamente os sentidos construídos e atribuídos pelos próprios amantes à interação amorosa. Com efeito, a análise de Illouz, extremamente útil para a descrição da dimensão institucional do amor na contemporaneidade (os objetos e rituais que envolve), perde de vista, contudo, aquilo que diferencia as relações amorosas das demais interações sociais, que é justamente a atribuição pelos atores de um sentido único, particular, mítico ao amor. Ao se limitar a uma perspectiva externa à relação amorosa e definir o amor como uma prática cultural, a autora acaba tomando o amor por seus rituais, não levando em conta o modo como esses rituais e objetos são integrados à relação amorosa. Ou seja: o mercado de fato oferece os bens que propiciam a vivência do amor romântico e pode até mesmo ter ajudado a projetar o amor romântico como forma moderna de experimentação do sagrado, como sugere Illouz; não obstante, enquanto espaço de construção de sentidos compartilhados o universo a dois permanece resistente ao mercado.
Primeiramente, o mercado não pode gerar a energia amorosa. Dito de forma trivial, o mercado efetivamente coloca à disposição dos amantes uma ampla gama de produtos que podem facilitar e intensificar a interação amorosa, mas não tem o poder de despertar o amor no coração dos amantes. Vale o paralelo com a religião: o impulso último para o encantamento do ritual amoroso não é dado pela presença dos objetos e contextos que o circundam, mas pela convicção, similar àquela do religioso que acredita numa força metafísica superior, de que o amor existe e está sendo partilhado pelo par amoroso. Um agnóstico não se sentirá próximo de Deus nem mesmo no mais rico e expressivo dos templos.
A outra fronteira entre o amor e o mercado é o uso simbólico distintivo que os amantes fazem dos produtos associados ao amor romântico, pois a maneira de significar os rituais é sempre particular e mesmo idiossincrática em cada relação amorosa. Compare-se, por exemplo, duas relações que sejam muito semelhantes do ponto de vista ritualístico: dois casais distintos que freqüentem lugares semelhantes e se presenteiem com os mesmos agrados estabelecerão relações que para cada qual sempre serão distintas, pois o sentido atribuído à relação pelo par que ama é sempre próprio, exclusivo.
A seguir busca-se detalhar teoricamente essa objeção à perspectiva de Illouz, formulada até aqui de forma muito genérica.

O CÓDIGO DO AMOR
O diagnóstico levado a efeito no âmbito da teoria sistêmica aponta para uma correlação positiva entre a multiplicação das relações anônimas e a intensificação das relações pessoais e íntimas nas sociedades complexas. Isso se explica pelo aprofundamento dos processos de diferenciação funcional que levam as sociedades, segundo Luhmann, a "regular melhor as interdependências entre relações sociais de natureza diversa, filtrando mais adequadamente as interferências"30. Tal diferenciação representa uma proteção das relações íntimas, que assim se tornam menos vulneráveis às influências da tradição e de outros sistemas funcionais. Os indivíduos, por sua vez, já não estão mais ancorados num único lugar da topografia social: eles se tornam socialmente desenraizados e ocupam diferentes papéis nos distintos subsistemas sociais, originando-se daí a ampla diversidade das combinações que conformam as características individuais. Nesse contexto, o amor moderno se desenvolve como código de comunicação capaz de mediar o intercâmbio entre duas pessoas muito exclusivas e que manipulam dois mundos de significados singulares, recortados de maneira extremamente individualizada. É por isso que nas sociedades complexas o amor é tão difícil, ou tão improvável ainda que recorrente — "uma improbabilidade bem normal", como formulou Luhmann.
Na comunicação amorosa o que conta não são os temas sobre os quais se conversa, mas a "consideração comum dos mesmos aspectos", já que é dessa maneira que se forma a esfera íntima, diferenciada do "mundo constituído anonimamente"31. Por isso, comunicação aqui não se confunde com o treino verbal-racional, tal como exercitado, por exemplo, nas terapias de casal (às quais Luhmann sempre se refere com desprezo irônico). O umbral da improbabilidade de uma comunicação íntima entre dois indivíduos fortemente diferenciados é em geral superado por formas de comunicação não-discursivas, entre as quais se destacam a troca de olhares, o toque corporal e os diálogos que renunciam a qualquer tipo de mensagem objetivável:
Amantes podem conversar infinitamente sem se dizerem nada. Ou seja, não são necessários ação comunicativa, perguntas ou pedidos do amado para que o amante se sintonize com ele; a vivência do amado deve desencadear a ação do amante sem mediações32.
Esse código amoroso não representa para Luhmann, obviamente, uma dádiva divina ou habilidade antropológica inata: ele é o resultado da diferenciação funcional que leva historicamente ao desenvolvimento da paixão como um medium de comunicação especializado. Assim como todos os demais subsistemas da sociedade são regidos por um código binário — por exemplo, legal/ilegal para o sistema jurídico ou falso/verdadeiro para a ciência —, também o subsistema íntimo é regulado por uma codificação diádica: pessoal/impessoal. A existência da comunicação pessoal — aqui mais especificamente amorosa — define as fronteiras simbólicas que separam ou diferenciam os amantes de todo o resto do mundo: na medida em que se comunicam pessoalmente, os amantes constituem um universo simbólico próprio, distinto do entorno anônimo, impessoal. A constituição exclusivamente simbólico-expressiva do código amoroso o torna fortemente vinculante, já que ele só diz respeito àqueles que se amam, e ao mesmo tempo muito frágil, pois qualquer pequeno mal-entendido pode produzir grandes tremores no subsistema íntimo.
O código do amor penetra uma relação particular de forma contingente; a presença do código é percebida pelos amantes como algo necessário, mas não provocado. Trata-se portanto — para expressá-lo com o lirismo de Octavio Paz — "da aceitação voluntária de uma inevitabilidade"33. Segundo Luhmann, o caráter do amor como um código comunicativo que serve à confirmação das diferenças das pessoas individuais em suas relações singulares exclui a possibilidade da ação orientada tanto pela expectativa de reciprocidade quanto pelo proveito próprio. Assim, o duplo jogo do agir orientado pela vivência do parceiro desmobiliza, na interação amorosa, todas as fontes de motivação para a ação que não as do agir associado ao universo da pessoa amada. Não se pode querer amar agindo, já que o código de comunicação envolvido dita outra regra: viva suas diferenças e oriente seu agir na vivência da pessoa amada. Ipsis verbis:
O amor seria entendido de maneira inteiramente equivocada se se tentasse defini-lo como a reciprocidade de ações voltadas para a satisfação mútua ou como disposição de satisfazer os desejos do outro. O amor marca primeiro o vivenciar da vivência, e com isso modifica o mundo como horizonte da ação e da vivência. O amor é a internalização da referência de mundo subjetivamente organizada de outrem; dessa forma, o amor empresta uma força de persuasão especial àquilo que o outro vivencia ou poderia vivenciar nas coisas e nos acontecimentos. Só num segundo momento o amor motiva o agir. Não contam aqui os efeitos concretos de tal ação, a qual é definida e buscada a partir de seu significado simbólico para exprimir o amor como a materialização do caráter especial daquele mundo que se sabe, juntamente com os amantes (e ninguém mais), tratar-se de um mundo do gosto comum, da história comum, do desvio comum, dos temas discutidos, dos resultados analisados. O que conclama à ação não é o proveito esperado, mas a não-naturalidade de uma concepção de mundo que está inteiramente afinada com a individualidade de uma pessoa e só existe em tal forma. Se se trata aqui de "dar", o que o amor diz é: faculte ao outro a possibilidade de dar algo sendo assim como ele é34.
Da idéia de que a interação amorosa corresponde a uma forma de comunicação exclusiva entre indivíduos fortemente diferenciados depreendem-se objeções importantes às teses de Illouz sobre as relações entre mercado e amor romântico. A rigor, pode-se ratificar as constatações da autora de que a indústria cultural fornece o repertório de modelos para as práticas amorosas na modernidade tardia, de que a indústria de entretenimento provê os bens e serviços necessários aos rituais românticos e de que os amantes buscam seus amados entre pessoas de sua classe social. De fato, é inegável que filmes ou outros artefatos carregados de aura romântica contribuem para o desenvolvimento da liturgia amorosa. Não obstante, o que define a relação amorosa como tal não é o consumo desses rituais, mas o (improvável) estabelecimento de uma comunicação pessoal que sublinhe e confirme as diferenças individuais. É a existência dessa forma particular de comunicação — o código do amor — que define a conformação do mundo especial dos amantes, no qual os rituais e adereços românticos adquirem sentido efetivo, concretizando sua vocação amorosa. É a ativação desse código especial, e não o preço do item escolhido no cardápio, que diferencia aquele casal que no restaurante francês, à luz de velas, vive seus estados amorosos liminares daquele outro casal presente no mesmo restaurante sob a mesma penumbra mas que não se ama, apenas se entretém.
Mesmo a endogamia social constatada por Illouz ganha outra significância quando analisada sob a ótica da interação amorosa como comunicação voltada para a afirmação de diferenças. Em vez de simplesmente representar ação instrumental orientada para a manutenção do status quo, ela pode ser expressão das diferenciações que a semântica amorosa assume nos diversos estratos sociais — fato amplamente confirmado pela investigação empírica de Illouz35.
Antes de passar às conclusões, devo um esclarecimento mais efetivo sobre a maneira como é aqui apropriada a interpretação do amor pela teoria sistêmica. Como já se advertiu, o que nos interessa não é a história social do amor na Europa como tal, mas a descrição da forma como os amantes se comunicam numa interação social singular. A evolução da semântica amorosa, como a define Luhmann, é perpassada por um historicismo que reduz seu sentido teórico, transformando-a num discurso eurocêntrico, cego aos entrelaçamentos da modernidade nas várias regiões do mundo36. Explico-me.
O livro Amor como paixão é parte de um programa de pesquisa em que Luhmann explora as transformações das semânticas político-históricas ao longo da transição européia para a modernidade, entendendo-se "semântica" não apenas como um conjunto de símbolos, mas como o contexto social no qual os símbolos ganham sentido. Visto dessa maneira, o desenvolvimento da semântica amorosa resulta da diferenciação dos sistemas funcionais e envolve complexos processos de transmissão cultural por meio da produção e recepção literária que, na forma descrita, são próprios e exclusivos de sociedades européias ocidentais. Ou seja, quem leva às últimas conseqüências a história de evolução da semântica amorosa descrita por Luhmann vê-se obrigado a conceder à Europa Ocidental a precedência no desenvolvimento da semântica "moderna" do amor, considerando as demais regiões do mundo aprendizes de uma arte inventada pelos europeus.
Essa perspectiva contraria diversas comparações interculturais37, cabendo destaque aqui ao trabalho de Charles Lindholm38, que encontrou em muitas sociedades não-ocidentais formas de amor-paixão muito semelhantes ao amor romântico. Diferentemente de Luhmann, Lindholm associa o anseio por uma interação que absorva as pessoas em sua integralidade não à diferenciação funcional, mas àquilo que ele denomina "sociedades líquidas", entre as quais se contam as sociedades complexas contemporâneas mas também sociedades de caçadores e coletores. O traço comum entre essas "sociedades líquidas" está assente no individualismo da luta pela sobrevivência. Isto é: nessas sociedades as pessoas se sentem existencialmente vulneráveis, já que faltam "grupos ou laços primários" capazes de prover o senso de solidariedade e identidade. Para o autor, é essa insegurança ontológica que promove a busca por um amor intensivo e abrasador, capaz de dar algum sentido, mesmo que provisório e temporário, às suas existências.
Não se trata aqui, é óbvio, de subscrever apressadamente a hipótese de Lindholm. Seus achados, porém, servem de advertência metodológica contra um tipo de sociologia evolucionista que a partir da história social do amor na Europa erige pretensões de validade teórica de alcance geral39. É por essa razão que se recupera aqui a descrição da interação amorosa proposta por Luhmann e ao mesmo tempo se recusa as conseqüências macrossociológicas de sua teoria. Ademais, uma reconstrução eurocêntrica da história do amor moderno, como faz Luhmann, eclipsa desenvolvimentos que são cruciais. Com efeito, em poucos outros campos a história moderna parece ter fundido e entrelaçado de forma tão definitiva as diferentes regiões do mundo quanto na construção do amor romântico. Com a mesma avidez com que os estratos privilegiados mundo afora consumiam e imitavam a literatura romântica produzida na Europa ao longo dos séculos XVIII e XIX, o romantismo europeu se apropriava das imagens, lendas e fantasias amorosas das diversas partes do mundo e que chegavam à Europa por meio dos relatos de viagem e das experiências coloniais40. Hoje, o sucesso global de produtos como o cinema "Bollywood" da Índia ou as telenovelas latino-americanas mostra que os ideais de amor romântico não são difundidos de forma centrífuga, a partir da Europa, mas de maneira descentrada. Mesmo que tais produções retomem enredos e formatos próprios ao romantismo clássico, também difundem modelos de relações de gênero ou de corporalidade que nada têm a ver com as representações "ocidentais".

CONCLUSÃO
Retomo nessa nota conclusiva as cinco dimensões do amor romântico anteriormente destacadas, compreendendo os campos das emoções, dos ideais e das práticas culturais e suas expressões como modelo de relação e forma de interação.
Estudos empíricos mostram que o anseio por uma relação amorosa que envolva plenamente os amantes continua sendo uma aspiração generalizada nas sociedades modernas. Assim, na modernidade tardia o amor romântico segue desempenhando papel central como ideal amoroso e desencadeador das emoções correspondentes. No entanto, esse desejo de intensidade coexiste com mudanças importantes no padrão romântico da relação a dois. Talvez Honneth tenha razão quando constata certa redução de expectativas quanto às relações amorosas. Segundo ele, estas estariam passando de "relação a dois a uma parceria de objetivos"41. Isso pode significar a médio prazo a consolidação daquilo que Burkart chama de relação "pós-romântica"42.
De todo modo, parecem persistir paralelamente dois modelos culturais: o ideal da comunidade a dois acima de tudo e de todos, em geral prevalecente nas primeiras fases do relacionamento ou nos momentos apaixonados das relações duradouras, e um certo pragmatismo amoroso. Enquanto o primeiro modelo é orientado pelos ideais do amor romântico, o pragmatismo se apóia em valores como a igualdade, o entendimento dialógico e a realização pessoal dos parceiros.
Como prática cultural, o amor romântico está incorporado num amplo leque de produtos, objetos, locais e rituais. Assim, nas sociedades contemporâneas a economia está presente em diversas esferas do amor, oferecendo produtos culturais que marcam os ideais e sentimentos amorosos, além de contextos para a vivência dos rituais românticos. Nem mesmo em seus momentos pragmáticos o relacionamento se livra da presença do mercado, que com seus manuais, terapeutas e gestores de crises familiares ensina os termos de uma convivência justa. Só mesmo em uma de suas dimensões o amor romântico parece refratário ao mercado: a de interação mediada por um código especial. Para que se configure a relação romântica é necessária a criação de um âmbito de comunicação (improvável) que destaque e aparte os amantes do entorno social. A presença desse código de comunicação especial distingue consumidores de amantes que utilizam rituais e produtos sob o signo do amor. Nesse sentido simbólico-expressivo, a obliteração das fronteiras entre mercado e interação amorosa significaria o fim do amor romântico.


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[1] Beck, Ulrich e Beck-Gernsheim, Elizabeth. Das ganz normale Chaos der Liebe. Frankfurt/M.: Suhrkamp, 1990;         [ Links ]Featherstone, Mike. "Love and eroticism: an introduction". Theory, Culture & Society, vol. 15, no 3-4, 1998;         [ Links ]Leis, Héctor e Costa, Sérgio. "Dormindo com uma desconhecida". In: Avritzer, Leonardo e Domingues, José Maurício (orgs.). Teoria social e modernidade no Brasil. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000.         [ Links ]
[2] Illouz, Eva. Consuming the romantic utopia. Berkeley: University of California Press, 1997;         [ Links ]DerKonsum der Romantik. Frankfurt/M: Campus, 2003.         [ Links ]
[3] Luhmann, Niklas. Liebe als Passion. Zur Codierung von Intimität. Frankfurt/M.: Suhrkamp, 1994 [1982].         [ Links ]
[4] Pode causar estranhamento o fato de que a contribuição sistêmica, estereotipada por muitos como um modo "frio" e duro de descrever o social, dado o alto nível de abstração e formalização, seja escolhida aqui para recuperar a singularidade das relações amorosas. A sensibilidade da teoria sistêmica para com o amor decorre do esforço de distinguir o sistema íntimo dos demais sistemas, o que obriga a atenção às idiossincrasias do código amoroso. Além disso, o próprio estilo de autores como Luhmann impõe uma tal precisão na descrição do código amoroso que a semântica utilizada, expressiva em seu hermetismo, desperta no leitor um sentimento muito semelhante àquele provocado pela lírica romântica, qual seja, a emoção cúmplice de estar sendo flagrado em seus sentimentos mais recônditos.
[5] Cf. Flam, Helena. Soziologie der Emotionen. Konstanz: UVK, 2002.         [ Links ]
[6] Weber, Max. Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie, vol. 1. Tübingen: Mohr, 1972 [1917].         [ Links ]
[7] Simmel, Georg. Schriften zur Philosophie und Soziologie der Geschlechter. Berlim: Wagenbach, 1983 [1911].         [ Links ]Ver Nord, Ilona. Individualität, Geschlechterverhältnisse und Liebe. Gütersloh: Kaiser, 2001.         [ Links ]
[8] Para exemplificar a extensão do interesse de Simmel pelas práticas culturais do amor, vale recordar seu arguto ensaio sobre a coqueteria. No estudo, a partir da formulação de Platão de que o amor consiste num jogo entre ter e não ter, Simmel constata que "característico da coqueteria, em sua forma mais banal, é o olhar de soslaio, com a cabeça meio tombada. Nesse olhar repousa um retirar-se, associado porém a um entregar-se fugaz [...] que no entanto se nega simbolicamente, ao mesmo tempo e na outra direção com a cabeça e o corpo. Esse olhar não pode durar psicologicamente mais que poucos segundos, de tal sorte que em sua entrega a sua recusa já esteja pré-formada como algo inevitável. Esse olhar tem aquela atração do mistério, do furtivo que não pode existir duradouramente. Por isso, nele se misturam inseparavelmente o sim e o não. O pleno olhar face a face, por mais penetrante e ávido que seja, não tem precisamente esse específico traço coquete. Na classe superior, o efeito coquete do balançar e girar está nos quadris: o andar ‘rebolado’. Não só porque esse andar [...] acentua visualmente as partes do corpo sexualmente estimulantes, persistindo ao mesmo tempo a distância e a reserva, mas também porque sensualiza a entrega e a retirada na rítmica lúdica da alternância ininterrupta" (ibidem, p. 82). Essa e todas as versões para o português de citações do alemão, inglês e espanhol são traduções livres do autor.
[9] Dux, Günther. "Liebe". In: Wulf, Christoph (org.). Vom Menschen. Handbuch Historische Anthropologie. Weinhein/Basiléia: Beltz, 1997, p. 847.         [ Links ]
[10] Vale registrar a importante mudança histórica na "reputação" das emoções amorosas. Nas sociedades contemporâneas é visão corrente que o amor está associado a um impulso criativo único e intenso, sobretudo nas fases mais intensas de sua manifestação. Quem melhor sintetizou essa visão foi o jornalista e sociólogo Francesco Alberoni, que, dialogando com Freud, descarta a associação entre amor romântico e regressão, afirmando que não existe qualquer evidência de que nos enamoramos de alguém que recorda a mãe na primeira infância (Alberoni, Francesco. O mistério do enamoramento. Lisboa: Bertrand, 2003, p. 14).         [ Links ]Tal visão contrasta com a interpretação médica do começo do século XX, como indica uma tese de doutorado apresentada em 1908 em Porto Alegre: "A paixão é uma obsessão e representa, por isso, no conceito dos maiores psicólogos, um estigma da degeneração nervosa hereditária. [...] É comum iniciarem-se as crises por uma opressão pré-cordial, ligeira dispnéia, taquicardia ou movimentos acelerados do coração [...]. Uma superexcitação momentânea ou descargas nervosas repetidas trazem [...] um leve tremor generalizado, quebram o ritmo respiratório ora em excursões torácicas de largos haustos, ora num respirar superficial e sutil [...]. [Os] apaixonados de amor [...] não ignoram os inconvenientes e o absurdo de tal paixão; mas sacrificam por ela [...] seus deveres, suas obrigações, sua riqueza e até a vida." (Porto, Leopoldo P. Da intoxicação pelo amor. 4a ed. Pelotas: Echenique, 1923 [1908], p. 23).         [ Links ]
[11] Cf. Gerhards, Jürgen. Soziologie der Emotionen. Fragestellungen, Systematik, Perspektiven. Munique: Juventa, 1988.         [ Links ]
[12] Cf. Lenz, Karl. "Romantische Liebe. Ende eines Beziehungsideals?". In: Hahn, Kornelia e Burkart, Günter (orgs.). Liebe am Ende des 20. Jahrhunderts. Opladen: Leske + Budrich, 1998.         [ Links ]
[13] Ver Elias, Norbert. Die höfische Gesellschaft. Untersuchungen zur Soziologie des Königtums und der höfischen Aristokratie, Frankfurt/M.: Suhrkamp, 2002 [1969];         [ Links ]Burkart, Günter. "Auf dem Weg zu einer Soziologie der Liebe". In: Hahn e Burkart (orgs.), op. cit.; Costa, Jurandir F. "Utopia sexual, utopia amorosa". In: Cardoso, Irene e Silveira, Paulo (orgs.). Utopia e mal-estar na cultura: perspectivas psicanalíticas. São Paulo: Hucitec, 1997.         [ Links ]
[14] Para uma reconstrução a partir de Max Scheler, ver Vandenberghe, Frédéric. Knowing what we love: notes towards a historical epistemology of love. Paper apresentado no XXIX Encontro Anual da Anpocs, Caxambu, 2005.         [ Links ]
[15] Gerhards, Jürgen e Schmidt, Bernd. Intime Kommunikation. Eine empirische Studie über Wege der Annäherung und Hindernisse für "safer sex". Baden Baden: Nomos, 1992, p. 20.         [ Links ]
[16] Cf. Lenz, op. cit. Como ideal que encontra formas de materialização culturalmente diversas, o amor romântico naturalmente comporta variações, como a dissociação com a dimensão da procriação verificada, por exemplo, entre casais homossexuais ou que renunciem deliberadamente aos filhos. No plano das instituições, contudo, ainda prevalece a idéia de que afeição, sexualidade e procriação devem andar juntas, criando dificuldades diversas para quem queira escapar do modelo de amor heterossexual e voltado para a geração de filhos. Para uma discussão sobre a situação nos Estados Unidos, ver Josephson, Jyl. "Citizenship, same-sex marriage, and feminist critique on marriage". Perspectives on Politics, vol. 3, no 1, 2005.         [ Links ]
[17] Para o caso brasileiro, ver Heilborn, Maria Luiza. Dois é par. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.         [ Links ]
[18] Luhmann, op. cit.
[19] Adorno, Theodor W. Minima moralia. Reflexionen aus dem beschädigten Leben. Frankfurt/M.: Suhrkamp, 1951, p. 29.         [ Links ]
[20] Marcuse, Herbert. Eros and civilization: a philosophical inquiry into Freud. Boston: Beacon Press, 1955.         [ Links ]
[21] Fromm, Erich. Die Kunst der Liebe. 60a ed. Stuttgart: Ullstein, 2003 [1956], p. 150.         [ Links ]
[22] Habermas, Jürgen. Der philosophische Diskurs der Moderne. Zwölf Vorlesungen. Frankfurt/M.: Suhrkamp, 1985.         [ Links ]
[23] Illouz, Eva. Consuming the romantic utopia, op. cit.; "The lost innocence of love: romance as a postmodern condition". Theory, Culture & Society, vol. 15, no 3-4, 1998;         [ Links ]"Vermarktung der Liebe. Bedeutungswandel der Liebe im Kapitalismus". WestEnd, vol. 2, no 1, 2005.         [ Links ]
[24] Pseudônimo da escritora italiana Amaliana Cambiasi Negretti (1897-1995), autora de inúmeros romances sentimentais [N.E.].
[25] Eco, Umberto. Nachschrift zum Name der Rose. Munique: Carl Hanser, 1984, p. 78.         [ Links ]
[26] Nem sempre as férias a dois representam um bálsamo para as utopias amorosas. O excesso de expectativas depositadas no período e o convívio intensificado durante os dias de "descanso" também produzem conseqüências inversas: na Alemanha e na Itália, por exemplo, um terço das separações ocorre imediatamente após as férias. Isso explica a multiplicação da literatura de auto-ajuda dedicada ao tema "férias e crises conjugais", a qual fornece regras práticas de conduta voltadas a evitar que o maior tempo disponível para a relação não evidencie a fragilidade dos laços afetivos que unem o casal (cf.http://www.psychotherapie.de/report/2000/08/00080801.htm. Acesso em 30 de outubro de 2005).
[27] Illouz, Consuming the romantic utopia, op. cit., p. 150, grifo meu.
[28] Uma valiosa contribuição sobre o modo como idealização romântica e pragmatismo se combinam no discurso de amantes é fornecida por Linda-Anne Rebhun em seu estudo sobre concepções de amor em Caruaru (The heart is unknown country: love in the changing economy of Northeast Brazil. Stanford: Stanford University Press, 1999). As mulheres de estratos pobres entrevistadas, ao mesmo tempo que condenavam os "parceiros safados", que não se atêm às regras do romance, e se referiam ao "lóvi" ou "amor de novela" como momentos de enlevo romântico, divertiam-se repetindo o provérbio: "Pai pobre é destino, marido pobre é burrice". A partir de chave analítica distinta e pesquisando o contexto alemão, Jutta Almendiger e colaboradores ("Eigenes Geld – gemeinsames Leben. Zur Bedeutung von Geld in modernen Paarbeziehungen". In: Beck, Ulrich e Lau, Christoph (org.). Entgrenzung und Entscheidung. Frankfurt/M.: Suhrkamp, 2004)         [ Links ]mostram a articulação entre racionalidades diversas no âmbito da vida íntima. Para os autores, os imperativos de não-violação das fantasias românticas e de administração do cotidiano da família, incluindo o orçamento doméstico, implicam negociações diárias que envolvem a busca de eficiência na gestão financeira e a preservação da "economia sentimental" do casal.
[29] Illouz, "Vermarktung der Liebe", op. cit.
[30] Luhmann, op. cit., p. 13.
[31] Ibidem, p. 25.
[32] Ibidem, p. 19.
[33] Paz, Octavio. La llama doble. 7a ed. Barcelona: Seix Barral, 2004 [1993].
[34] Ibidem, p. 29-30
[35] A autora constata, em linhas gerais, que os entrevistados da classe baixa privilegiam rituais e bens (suvenires, cartões etc.) criados explicitamente para transmitir a afeição romântica, enquanto os das classes média e alta recusam o consumismo explícito, preferindo bens e rituais que possam ser associados a "valores antiinstitucionais como espontaneidade, informalidade e autenticidade" (Illouz, Consuming the romantic utopia, op. cit., p. 252).
[36] Cf. Costa, Sérgio. Dois Atlânticos. Belo Horizonte: Ed. UFMG (no prelo).
[37] Cf., por exemplo, Hatfield, Elaine e Rapson, Richard. Love and sex: cross-cultural perspectives. Massachusetts: Allyn & Bacon, 1996;         [ Links ]Munck, Victor C. de (org.). Romantic love and sexual behavior: perspectives from the social sciences. Westport: Praeger, 1998.         [ Links ]
[38] Lindholm, Charles. "Love and structure". Theory, Culture & Society, vol. 15, no 3-4, 1998.         [ Links ]
[39] O deslize evolucionista encontra expressão clara no trabalho de Peter Fuchs, seguidor de Luhmann. No âmbito de uma série de aulas magnas sobre o amor, ele recebe a consulta de uma aluna temerosa de se tornar incapaz de amar depois que a sociologia sistêmica desconstruísse suas últimas ilusões românticas. As palavras de consolo à aluna proferidas por Fuchs são reveladoras de seu eurocentrismo teórico: "Você ganhará em complexidade o que está perdendo em inocência. Quem joga o jogo do amor com exagerada simplicidade corre o risco de nunca conhecê-lo" (Fuchs, Peter. Liebe, Sex und solche Sachen. Zur Konstruktion moderner Intimsysteme. Konstanz: UVK, 1999, p. 57).
[40] Cf. Burkard, op. cit., p. 26.
[41] Honneth, Axel. Introdução ao dossiê "Liebe und Kapitalismus". WestEnd, vol. 2, no 1, 2005, p. 79.         [ Links ]
[42] Burkard, Günter. Liebesphasen – Lebensphasen. Vom Paar zur Ehe zum Single und zurück? Opladen: Leske + Budrich, 1997;         [ Links ]"Auf dem Weg zu einer Soziologie der Liebe", op. cit.

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