Por Desidério Murcho
Ocorre
um pseudo-argumento quando alguém apresenta o que, semanticamente, é sem dúvida
um argumento, mas o apresenta de tal modo que, pragmaticamente, é apenas um
acto discursivo alheio à argumentação. A argumentação é um convite à discussão:
apresentamos as razões que genuinamente pensamos que sustentam uma dada ideia,
e fazemo-lo de modo tão explícito quanto possível precisamente para permitir
que a outra pessoa analise cuidadosamente não apenas as premissas que usamos,
mas também se delas se infere correctamente a conclusão que defendemos. Por
essa razão, os pseudo-argumentos prestam-se a confusões.
Eis
alguns exemplos: “Nada há de errado em comer animais porque se
estes pudessem também nos comiam a nós”; “Ninguém é genuinamente ateu porque mesmo
para negar a existência de Deus é preciso aceitar a sua existência”; “Os
animais não têm direitos porquenão têm deveres”. Como facilmente se
vê, em cada um destes casos ocorre a palavra “porque”, que tem a função
semântica aparente de indicar que a conclusão anterior a essa palavra é
sustentada pela premissa que se lhe segue. Daí que não seja de espantar que
pessoas habituadas a discutir argumentos reajam a elocuções como estas como se
de genuínos argumentos se tratasse.
Mas é então que se descobre
que quem proferiu tais palavras não está minimamente interessado em considerar
cuidadosamente se as suas premissas são plausíveis ou se delas se infere a
conclusão apresentada. Isto pode dar origem a constrangimentos sociais, porque
nos lançamos numa discussão entusiasmada do argumento, para depois vermos com
horror que o nosso interlocutor não esperava senão o nosso assentimento
simpático — um pouco como quem concorda que é capaz de chover hoje, só para ser
simpático e fazer conversa, sem que tal concordância seja interpretável
semanticamente como um compromisso com qualquer previsão meteorológica, mas
antes como uma maneira de ser simpático e trocar sorrisos.
É
defensável que em tais elocuções não se apresenta um argumento genuíno, que
pela sua natureza aberta pede avaliação, mas antes um discurso fechado que
manifesta apenas a perspectiva irrevogável do interlocutor. Precisamente porque
é entendido por ele como uma mera manifestação da sua perspectiva irrevogável,
a nossa discussão explícita do que erradamente tomámos como um argumento é
vista como ofensiva. Isto faz pleno sentido porque se a elocução original não
for entendida como um argumento, mas apenas como a manifestação da sua
perspectiva, sendo que o interlocutor em momento algum declarou a sua
disponibilidade para que tal perspectiva seja discutida, a nossa discussão é
entendida como uma rejeição do seu direito a essa perspectiva. Ficamos então
espantados quando a pessoa reage invocando precisamente o seu direito a ter tal
perspectiva, quando do nosso ponto de vista tal direito nunca esteve em
discussão: tudo o que estava em discussão era se o argumento apresentado era
cogente ou não, sendo evidente que qualquer pessoa tem o direito de sustentar
quaisquer perspectivas, sem quaisquer argumentos, tendo também o direito de se
recusar a discutir as suas perspectivas, se as considerar irrevogáveis.
Poder-se-á
argumentar que as coisas não são assim tão simples, e que os supostos
pseudo-argumentos devem realmente ser entendidos como argumentos que, por serem
muito maus, denunciam um vício epistémico fundamental da parte do interlocutor:
um pouco como se a pessoa quisesse dar-se ares de saber matemática, declarando
com ar sapiente que a raiz quadrada de cinquenta é vinte e cinco, ficando
irritada quando corrigimos o seu erro. A ideia seria então que quem apresenta
os supostos pseudo-argumentos na verdade sustenta desejos inconciliáveis: por
um lado, quer ter o prestígio de passar por pessoa ponderada, que baseia as
suas perspectivas em argumentos cuidadosamente pensados; por outro, não quer
realmente dar-se ao incómodo de pensar cuidadosamente nas razões a favor e
contra as suas perspectivas, nem está minimamente interessada em revê-las e
eventualmente abandoná-las.
Qual
das duas hipóteses é a verdadeira, dependerá talvez de caso para caso. Contudo,
não será desavisado seguir o conselho de Lao Tsé, e preferir o silêncio de
ouro, à palavra de prata, quando não tivermos a certeza de estar perante um
argumento genuíno, que genuinamente seja oferecido para discussão aberta. Um
sorriso simpático e um comentário inócuo poderá ser exactamente o que o nosso
interlocutor espera, em vez de uma discussão cuidadosa do argumento.
Um
caso algo simétrico ao dos pseudo-argumentos é quando a pessoa declara
explicitamente “o meu argumento é que..”., mas depois da palavra “que” surge
uma mera afirmação. Isto é particularmente caricato em artigos académicos,
afirmando-se coisas como “O argumento de Kant é que não podemos conhecer a
coisa em si”, por exemplo. Como deveria ser evidente, depois da palavra “que”
não há qualquer argumento; há apenas uma afirmação, a favor da qual nenhum
argumento é oferecido. Se antes o que é explicitamente um argumento era visto
como uma mera afirmação, agora o que é explicitamente uma mera afirmação é
vista como se fosse um argumento. Apesar da simetria, contudo, os dois casos
não são incompatíveis, podendo até estar relacionados com o mesmo fenómeno: um
desconhecimento do papel cognitivo da discussão de argumentos.
Nas
sociedades particularmente parcas em inovação, habituadas a tudo importar dos
livros estrangeiros, não há uma noção clara de como descobrimos as coisas. A
ideia falsa vagamente entrevista é que descobrimos as coisas exclusivamente
vendo-as; não há qualquer noção do papel central desempenhado pela argumentação
cuidadosa na descoberta das coisas. A argumentação é encarada apenas como o que
acontece quando não podemos descobrir a natureza das coisas porque não as
podemos ver, pelo que argumentar é apenas manifestar perspectivas — não para as
discutir cuidadosamente, mas apenas para as contrastar entre si. Deste ponto de
vista, analisar e discutir cuidadosamente argumentos a favor das nossas perspectivas
é encarado como uma tolice, porque desse modo nunca se poderá descobrir coisa
alguma. E é até ofensivo, porque parece que estamos a pôr em causa o direito
que a outra pessoa tem a ter a perspectiva que tem.
Acontece
que esta concepção da descoberta é falsa; as descobertas dependem crucialmente
da argumentação intensa e cuidadosa. E quando argumentamos, por mais cuidados
que tenhamos, podemos enganar-nos. Precisamente porque nos enganamos a
argumentar, precisamos da ajuda dos nossos semelhantes. Serão eles a ajudar-nos
a argumentar melhor, discutindo explícita e abertamente tanto a plausibilidade
das nossas premissas, como a questão de saber se delas se infere correctamente
a conclusão pretendida. A discussão de argumentos é uma tarefa elementar de
descoberta das coisas, o que implica a abertura para abandonar as nossas
perspectivas quando os argumentos que as sustentam se revelam deficientes.
Assim, a mera manifestação de perspectivas diferentes não é enriquecedora, como
por vezes se pensa, se ao mesmo tempo não discutirmos intensa e cuidadosamente
os argumentos a seu favor. A mera manifestação de perspectivas é tão
insuficiente para a descoberta das coisas como comprar um piano o é para
aprender a tocar piano: tanto num caso como no outro há algo que falta fazer,
ora com as perspectivas ora com o piano. Do mesmo modo que a mera contemplação
do piano na sala não nos ajuda a tocar piano melhor, também a mera contemplação
de perspectivas opostas não nos permite dar um só passo em direcção às
perspectivas mais provavelmente verdadeiras.
O
papel cognitivo da discussão cuidadosa e epistemicamente virtuosa de argumentos
é ajudar-nos a corrigir os erros inevitáveis nos nossos argumentos. E os
argumentos têm um papel cognitivo crucial porque a maior parte do que sabemos
sabemo-lo não por observação directa, mas antes inferindo do que vemos ou de
outras coisas que sabemos — e as inferências partilham com os argumentos o
mesmo aspecto crucial de pretender concluir algo com base noutra coisa. A mera
expressão de perspectivas inabaláveis é um obstáculo ao progresso cognitivo e
ao alargamento da compreensão das coisas. O que não é dizer que as pessoas não
têm o direito de rejeitar a discussão dos seus pseudo-argumentos; certamente
que o têm. Mas seria melhor para elas mesmas se não rejeitassem a experiência
maravilhosa de verem os seus argumentos serem refutados ou corrigidos pelos
seus interlocutores.
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Fonte: http://criticanarede.com/pseudoargumentos.html