MARIA LUCIA CASTANHEIRA
Professora da Faculdade de Educação da
UFMG; Pesquisadora do Centro de Alfabetização,
Leitura e Escrita (CEALE) e do CNPq
ANA LYDIA SANTIAGO
Psicanalista, professora da Faculdade de Educação da UFMG
ANA LYDIA SANTIAGO
Psicanalista, professora da Faculdade de Educação da UFMG
Possivelmente, você já se deparou com
crianças, adolescentes e jovens que
apresentam os chamados "problemas de aprendizagem", particularmente,
na aquisição da leitura e da escrita. Por vezes, eles passam anos frequentando a escola, até que um
dia desistem, "entendem" que não têm "cabeça para o estudo"
ou simplesmente vão "cuidar da vida e trabalhar", "fazer um bico
e arranjar uns trocados para ajudar em casa".
Esse é um problema cuja história se
inicia com a própria história da escolarização pública. Com a
institucionalização do ensino obrigatório, surgem tanto histórias de sucesso de
alguns, como histórias de fracasso de muitos outros. Observe, por exemplo, as
expressões que, ao longo dos anos, foram sendo atribuídas aos alunos que, por
diferentes motivos, não obtêm sucesso nos seus primeiros anos de escolarização:
débil, deficiente mental educável, anti-intelectual, criança com desvio de
conduta, criança lenta, criança com repertório comportamental limitado, criança
com distúrbios de desenvolvimento, criança com distúrbios de aprendizagem,
carente linguístico, carente cultural, criança com pobreza vocabular, com
atraso de maturação, com distúrbio psicomotor, com problemas de socialização,
hiperativa, disléxica, portadora de necessidades especiais (Griffo, 1996).
É evidente que tais nomeações não
surgem ao acaso. Elas expressam diferentes perspectivas de entendimento das
causas do fracasso escolar ao longo da história.
Nas últimas décadas do século passado,
várias hipóteses causais foram apresentadas como explicação para o fracasso
escolar, dando origem à consolidação de quatro diferentes abordagens para
interpretação desse fenômeno: Organicista, Instrumental Cognitivista,
Questionamento da Escola, Handicap Sociocultural. Essas abordagens organizam-se
em torno de questões, hipóteses explicativas e metodologias de pesquisa que
orientam os profissionais de diversas áreas – médicos, professores,
supervisores, psicólogos, etc. – em seu processo de estudo e intervenção junto
a crianças com problemas de aprendizagem. Apresentamos, a seguir, uma breve
caracterização de cada uma dessas abordagens.
A primeira teorização sobre as dificuldades de aprendizagem surgiu na França, no final do
século XIX, e ficou conhecida como Abordagem Organicista (Fijalkow, 1989),
por investigar as causas do fracasso escolar levantando hipóteses sobre os
possíveis distúrbios e doenças neurológicas do aluno. As pesquisas realizadas
nessa linha de investigação promoveram uma verdadeira classificação médica dos
problemas de aprendizagem. Nos dias de hoje, quando se encaminha um aluno para
uma avaliação neurológica, buscando apoio na contribuição da medicina para a
compreensão das dificuldades de aprendizagem, o resultado do diagnóstico
aponta, geralmente, como causa do problema do escolar um quadro de dislexia,
disfunção cerebral mínima (DCM) ou hiperatividade.
Moysés e Collares chamam nossa atenção
para a necessidade de se fazer distinção entre a dislexia – quadro conhecido em
neurologia, em que a perda do domínio da linguagem escrita pode ocorrer em
conseqüência de sequela (temporária ou definitiva) de uma patologia do sistema
nervoso central – e a dislexia específica de evolução – nome da entidade
patológica que foi empregada no campo de estudos dos problemas de aprendizagem
da leitura e da escrita. Segundo essas autoras, a dislexia específica de
evolução foi "inventada" a partir da suposição de que, se alguém que
já sabe ler e escrever perde a capacidade de fazê-lo em função de uma patologia
do sistema nervoso central, então, crianças que têm dificuldade em aprender ou
não aprendem a ler e a escrever, possivelmente, deverão ter alguma patologia
dessa ordem. Assim, a partir dessa idéia, uma das perguntas que orientou as
pesquisas nessa área passou a ser: "se uma doença neurológica pode comprometer
o domínio da linguagem escrita, será que a criança que não aprende a ler e
escrever teria uma 'doença neurológica'?" Como você pode perceber, o
conceito de "Dislexia Específica de Evolução" é proposto com base na
transposição de um tipo de raciocínio, perfeitamente aplicável na área médica,
para a área educacional. Porém, a pertinência dessa transposição precisa ser
examinada com cuidado.
Valendo-se desse mesmo tipo de
raciocínio, Strauss, um neurologista americano, lançou, em 1918, a hipótese
segundo a qual os distúrbios de comportamento dos escolares e também alguns dos
distúrbios de aprendizagem poderiam ser conseqüência de uma lesão cerebral
mínima. Ou seja, tais distúrbios seriam em decorrência de uma lesão, suficiente
para alterar o comportamento e/ou alguma função intelectual, mas mínima o
bastante a ponto de não ocasionar outras manifestações neurológicas. Essa
hipótese de Strauss não foi acolhida no meio científico nem divulgada, naquela
época, para a sociedade. Contudo, alguns anos mais tarde, em 1957, a lesão
cerebral mínima ressurge na medicina, como equivalente à síndrome hipercinética
ou hiperatividade. Em 1962, durante um simpósio internacional, realizado em
Oxford, com a participação de grupos de pesquisa dedicados ao estudo da lesão cerebral
mínima, chegou-se à conclusão de que não havia nenhuma lesão. Vários métodos de
investigação foram utilizados e não se conseguiu detectar nenhuma lesão. Os
pesquisadores admitiram o erro e, para corrigi-lo, renomearam o quadro,
passando a chamá-lo de disfunção cerebral mínima (DCM). A descrição das
manifestações clínicas dessa nova entidade foi ampliada: hiperatividade,
agressividade, distúrbio de aprendizagem, déficit de concentração,
instabilidade de humor, baixa tolerância a frustrações, para citar apenas as
mais divulgadas.
Várias críticas são apresentadas,
atualmente, a essa abordagem do fracasso escolar e das dificuldades de
aprendizagem. A abordagem Organicista é sempre citada como a grande responsável
pela medicalização generalizada do fracasso escolar, pois o tratamento proposto
para sanar as dificuldades de aprendizagem da criança é o uso de remédios
psiquiátricos. Uma das conseqüências mais indesejadas da utilização dessa
abordagem é a identificação do aluno como alguém que possui uma falha orgânica,
ou seja, um déficit neurológico. Ao se empregar termos como
"Dislexia", "Hiperatividade" e "Disfunção Cerebral
Mínima", tende-se a ver o(a) aluno(a) como o(a) "único(a)
responsável" pelo seu próprio fracasso. Como conseqüência, limita-se,
assim, o campo de investigação do fracasso escolar, uma vez que outros fatores
intervenientes na produção desse fenômeno são desconsiderados. A
"facilidade" com que esse diagnóstico é utilizado nas escolas cria um
quadro de encaminhamento para atendimento médico e prescrição medicamentosa,
levando à biologização de um fenômeno da esfera escolar, produzindo gerações
que acabam por se tornar conhecidas como "geração comital ou
gardenal" (Vidal, 1990; Cypel, 1993).
A segunda abordagem do fenômeno do fracasso escolar surgiu a partir do
desenvolvimento de pesquisas no campo da psicologia cognitiva. Trata-se da Abordagem Instrumental Cognitivista, assim designada por
buscar as causas das dificuldades de aprendizagem em possíveis disfunções
relativas a um dos quatro processos psicológicos fundamentais: a percepção, a
memória, a linguagem e o pensamento. Segundo Sena (1999), o diagnóstico
realizado utiliza-se basicamente do processo de investigação diferencial
(comparando um grupo considerado normal a outro considerado atrasado) e busca
identificar os seguintes sintomas: a desorganização espaço-temporal, os
transtornos de lateralização, o desenvolvimento inadequado da linguagem, os
transtornos perceptivos visuais e auditivos, os déficits de atenção seletiva,
os problemas de memória. Fijalkow (1989), Nunes, Buarque e Bryant (1992)
analisam um grande conjunto de pesquisas desenvolvidas a partir dessa
perspectiva e apontam alguns problemas que precisam ser considerados ao
interpretar os resultados das mesmas. Um desses problemas diz respeito, por
exemplo, à não-neutralidade e à não-objetividade das situações de teste a que
as crianças são submetidas, em decorrência da dificuldade de se isolar
variáveis para que essas possam ser testadas independentemente uma das outras.
Além disso, deve-se considerar que a abordagem cognitivista, como a abordagem
organicista, procura as causas do fracasso das crianças apenas nas
características individuais, desconsiderando possibilidades explicativas em
outras esferas.
A Abordagem Afetiva caracteriza-se por privilegiar como
explicação causal do fracasso escolar os transtornos afetivos da personalidade.
Partidários dessa abordagem defendem a idéia de que as causas das dificuldades
de aprendizagem devem ser buscadas em perturbações no estado socioafetivo da
criança e não em supostos problemas neurológicos ou cognitivos. Nessa
perspectiva, o atraso do aluno é uma manifestação de suas dificuldades
originadas de algum conflito emocional (consciente ou inconsciente), cuja
origem encontra-se na dinâmica familiar. Por meio da utilização do método
clínico, propõe-se, primeiro, investigar se a dificuldade é de fato um problema
de ordem pedagógica ou psicológica, para, posteriormente, buscar compreender
porque uma determinada criança elege um determinado sintoma e não outro como
expressão de suas dificuldades emocionais. Uma das críticas feitas a essa
abordagem decorre do fato de que essa acaba por dar subsídios para que se
responsabilize a criança e sua família por dificuldades que surgem na esfera escolar,
transferindo para fora da escola – para as famílias, para as clínicas – a busca
de soluções para os problemas da criança.
A abordagem denominada Questionamento da Escola reúne estudos que investigam diferentes fatores escolares como
intervenientes na produção do fracasso dos alunos; dentre esses se destacam,
por exemplo: a inadequação dos métodos pedagógicos, a precária formação do
professor, a falta de infra-estrutura das escolas da rede pública de ensino,
etc.. Segundo Sena (1999), "deslocando a questão do aluno que não aprende
para a escola que não ensina", seguidores dessa abordagem propõem
modificações na estrutura e organização da escola, a fim de que essa
instituição cumpra seu papel social.
A abordagem do Handicap Sociocultural identifica no meio
sociofamiliar a origem do fracasso das crianças na escola. Adeptos dessa
abordagem consideram a bagagem sociocultural dos alunos e de seus familiares um
fator decisivo, tendo em vista que a maioria dos alunos que fracassam na escola
é oriunda das camadas populares. Um argumento central na articulação dessa
abordagem é que essas crianças apresentam uma linguagem deficitária o que, em
conseqüência, implicaria déficit cognitivo.
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