sexta-feira, 1 de setembro de 2017

No caminho da educação, uma pedra: evasão e fracasso escolar em questão

MARIA LUCIA CASTANHEIRA
Professora da Faculdade de Educação da UFMG;  Pesquisadora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (CEALE) e do CNPq

ANA LYDIA SANTIAGO
Psicanalista, professora da Faculdade de Educação da UFMG


Possivelmente, você já se deparou com crianças, adolescentes e jovens  que apresentam os chamados "problemas de aprendizagem", particularmente, na aquisição da leitura e da escrita. Por vezes, eles  passam anos frequentando a escola, até que um dia desistem, "entendem" que não têm "cabeça para o estudo" ou simplesmente vão "cuidar da vida e trabalhar", "fazer um bico e arranjar uns trocados para ajudar em casa".
Esse é um problema cuja história se inicia com a própria história da escolarização pública. Com a institucionalização do ensino obrigatório, surgem tanto histórias de sucesso de alguns, como histórias de fracasso de muitos outros. Observe, por exemplo, as expressões que, ao longo dos anos, foram sendo atribuídas aos alunos que, por diferentes motivos, não obtêm sucesso nos seus primeiros anos de escolarização: débil, deficiente mental educável, anti-intelectual, criança com desvio de conduta, criança lenta, criança com repertório comportamental limitado, criança com distúrbios de desenvolvimento, criança com distúrbios de aprendizagem, carente linguístico, carente cultural, criança com pobreza vocabular, com atraso de maturação, com distúrbio psicomotor, com problemas de socialização, hiperativa, disléxica, portadora de necessidades espe­ciais (Griffo, 1996).
É evidente que tais nomeações não surgem ao acaso. Elas expressam diferentes perspectivas de entendimento das causas do fracasso escolar ao longo da história.
Nas últimas décadas do século passado, várias hipóteses causais foram apresentadas como explicação para o fracasso escolar, dando origem à consolidação de quatro diferentes abordagens para interpretação desse fenômeno: Organicista, Instrumental Cognitivista, Questionamento da Escola, Handicap Sociocultural. Essas abordagens organizam-se em torno de questões, hipóteses explicativas e metodologias de pesquisa que orientam os profissionais de diversas áreas – médicos, professores, supervisores, psicólogos, etc. – em seu processo de estudo e intervenção junto a crianças com problemas de aprendizagem. Apresentamos, a seguir, uma breve caracterização de cada uma dessas abordagens.
A primeira teorização sobre as dificuldades de aprendizagem surgiu na França, no final do século XIX, e ficou conhecida como Abordagem Organicista (Fijalkow, 1989), por investigar as causas do fracasso escolar levantando hipóteses sobre os possíveis distúrbios e doenças neurológicas do aluno. As pesquisas realizadas nessa linha de investigação promoveram uma verdadeira classificação médica dos problemas de aprendizagem. Nos dias de hoje, quando se encaminha um aluno para uma avaliação neurológica, buscando apoio na contribuição da medicina para a compreensão das dificuldades de aprendizagem, o resultado do diagnóstico aponta, geralmente, como causa do problema do escolar um quadro de dislexia, disfunção cerebral mínima (DCM) ou hiperatividade.
Moysés e Collares chamam nossa atenção para a necessidade de se fazer distinção entre a dislexia – quadro conhecido em neurologia, em que a perda do domínio da linguagem escrita pode ocorrer em conseqüência de sequela (temporária ou definitiva) de uma patologia do sistema nervoso central – e a dislexia específica de evolução – nome da entidade patológica que foi empregada no campo de estudos dos problemas de aprendizagem da leitura e da escrita. Segundo essas autoras, a dislexia específica de evolução foi "inventada" a partir da suposição de que, se alguém que já sabe ler e escrever perde a capacidade de fazê-lo em função de uma patologia do sistema nervoso central, então, crianças que têm dificuldade em aprender ou não aprendem a ler e a escrever, possivelmente, deverão ter alguma patologia dessa ordem. Assim, a partir dessa idéia, uma das perguntas que orientou as pesquisas nessa área passou a ser: "se uma doença neurológica pode comprometer o domínio da linguagem escrita, será que a criança que não aprende a ler e escrever teria uma 'doença neurológica'?" Como você pode perceber, o conceito de "Dislexia Específica de Evolução" é proposto com base na transposição de um tipo de raciocínio, perfeitamente aplicável na área médica, para a área educacional. Porém, a pertinência dessa transposição precisa ser examinada com cuidado.
Valendo-se desse mesmo tipo de raciocínio, Strauss, um neurologista americano, lançou, em 1918, a hipótese segundo a qual os distúrbios de comportamento dos escolares e também alguns dos distúrbios de aprendizagem poderiam ser conseqüência de uma lesão cerebral mínima. Ou seja, tais distúrbios seriam em decorrência de uma lesão, suficiente para alterar o comportamento e/ou alguma função intelectual, mas mínima o bastante a ponto de não ocasionar outras manifestações neurológicas. Essa hipótese de Strauss não foi acolhida no meio científico nem divulgada, naquela época, para a sociedade. Contudo, alguns anos mais tarde, em 1957, a lesão cerebral mínima ressurge na medicina, como equivalente à síndrome hipercinética ou hiperatividade. Em 1962, durante um simpósio internacional, realizado em Oxford, com a participação de grupos de pesquisa dedicados ao estudo da lesão cerebral mínima, chegou-se à conclusão de que não havia nenhuma lesão. Vários métodos de investigação foram utilizados e não se conseguiu detectar nenhuma lesão. Os pesquisadores admitiram o erro e, para corrigi-lo, renomearam o quadro, passando a chamá-lo de disfunção cerebral mínima (DCM). A descrição das manifestações clínicas dessa nova entidade foi ampliada: hiperatividade, agressividade, distúrbio de aprendizagem, déficit de concentração, instabilidade de humor, baixa tolerância a frustrações, para citar apenas as mais divulgadas.
Várias críticas são apresentadas, atualmente, a essa abordagem do fracasso escolar e das dificuldades de aprendizagem. A abordagem Organicista é sempre citada como a grande responsável pela medicalização generalizada do fracasso escolar, pois o tratamento proposto para sanar as dificuldades de aprendizagem da criança é o uso de remédios psiquiátricos. Uma das conseqüências mais indesejadas da utilização dessa abordagem é a identificação do aluno como alguém que possui uma falha orgânica, ou seja, um déficit neurológico. Ao se empregar termos como "Dislexia", "Hiperatividade" e "Disfunção Cerebral Mínima", tende-se a ver o(a) aluno(a) como o(a) "único(a) responsável" pelo seu próprio fracasso. Como conse­qüência, limita-se, assim, o campo de investigação do fracasso escolar, uma vez que outros fatores intervenientes na produção desse fenômeno são desconsiderados. A "facilidade" com que esse diagnóstico é utilizado nas escolas cria um quadro de encaminhamento para atendimento médico e prescrição medicamentosa, levando à biologização de um fenômeno da esfera escolar, produzindo gerações que acabam por se tornar conhecidas como "geração comital ou gardenal" (Vidal, 1990; Cypel, 1993).
A segunda abordagem do fenômeno do fracasso escolar surgiu a partir do desenvolvimento de pesquisas no campo da psicologia cognitiva. Trata-se da Abordagem Instrumental Cognitivista, assim designada por buscar as causas das dificuldades de aprendizagem em possíveis disfunções relativas a um dos quatro processos psicológicos fundamentais: a percepção, a memória, a linguagem e o pensamento. Segundo Sena (1999), o diagnóstico realizado utiliza-se basicamente do processo de investigação diferencial (comparando um grupo considerado normal a outro considerado atrasado) e busca identificar os seguintes sintomas: a desorganização espaço-temporal, os transtornos de lateralização, o desenvolvimento inadequado da linguagem, os transtornos perceptivos visuais e auditivos, os déficits de atenção seletiva, os problemas de memória. Fijalkow (1989), Nunes, Buarque e Bryant (1992) analisam um grande conjunto de pesquisas desenvolvidas a partir dessa perspectiva e apontam alguns problemas que precisam ser considerados ao interpretar os resultados das mesmas. Um desses problemas diz respeito, por exemplo, à não-neutralidade e à não-objetividade das situações de teste a que as crianças são submetidas, em decorrência da dificuldade de se isolar variáveis para que essas possam ser testadas independentemente uma das outras. Além disso, deve-se considerar que a abordagem cognitivista, como a abordagem organicista, procura as causas do fracasso das crianças apenas nas características individuais, desconsiderando possibilidades explicativas em outras esferas.
A Abordagem Afetiva caracteriza-se por privilegiar como explicação causal do fracasso escolar os transtornos afetivos da personalidade. Partidários dessa abordagem defendem a idéia de que as causas das dificuldades de aprendizagem devem ser buscadas em perturbações no estado socioafetivo da criança e não em supostos problemas neurológicos ou cognitivos. Nessa perspectiva, o atraso do aluno é uma manifestação de suas dificuldades originadas de algum conflito emocional (consciente ou inconsciente), cuja origem encontra-se na dinâmica familiar. Por meio da utilização do método clínico, propõe-se, primeiro, investigar se a dificuldade é de fato um problema de ordem pedagógica ou psicológica, para, posteriormente, buscar compreender porque uma determinada criança elege um determinado sintoma e não outro como expressão de suas dificuldades emocionais. Uma das críticas feitas a essa abordagem decorre do fato de que essa acaba por dar subsídios para que se responsabilize a criança e sua família por dificuldades que surgem na esfera escolar, transferindo para fora da escola – para as famílias, para as clínicas – a busca de soluções para os problemas da criança.
A abordagem denominada Questionamento da Escola reúne estudos que investigam diferentes fatores escolares como intervenientes na produção do fracasso dos alunos; dentre esses se destacam, por exemplo: a inadequação dos métodos pedagógicos, a precária formação do professor, a falta de infra-estrutura das escolas da rede pública de ensino, etc.. Segundo Sena (1999), "deslocando a questão do aluno que não aprende para a escola que não ensina", seguidores dessa abordagem propõem modificações na estrutura e organização da escola, a fim de que essa instituição cumpra seu papel social.
A abordagem do Handicap Sociocultural identifica no meio sociofamiliar a origem do fracasso das crianças na escola. Adeptos dessa abordagem consideram a bagagem sociocultural dos alunos e de seus familiares um fator decisivo, tendo em vista que a maioria dos alunos que fracassam na escola é oriunda das camadas populares. Um argumento central na articulação dessa abordagem é que essas crianças apresentam uma linguagem deficitária o que, em conseqüência, implicaria déficit cognitivo.


Referências

CASTANHEIRA, M. L. Da escrita no cotidiano à escrita escolar. Revista Leitura: Teoria e Prática, 20. Campinas: ABL, 1991. P. 35-42.


COOK-GUMPERZ e GUMPERZ. Cook-Gumperz and Gumperz, 1992: Changing views of language in Education: the implications for literacy research. In: Beach R. et al.(eds.). Multidisciplinary Perspectives on Literacy ResearchUrbana, Illinois: NCRE/ NCTE, 1992.


COLLARES, C. A., MOYSÉS, M. A. A história não contada dos distúrbios de aprendizagem. Cadernos Cedes, 28. São Paulo: Papirus. P. 31-48.


COSTA, Dóris Anita Freire. Fracasso Escolar: diferença ou deficiência. Porto Alegre: ed. Quarup, 1993.


CYPEL, Saul. O aprendizado escolar: reflexões sobre alguns aspectos neurológicos. Revista FDE, 19. São Paulo, 1993.


FIJALKOW, J. Malos Lectores: por qué? Madri: Piramide, 1989.


GRIFO, Clenice. Dificuldades de aprendizagem na alfabetização: perspectivas do aprendiz. Centro de Referência do Professor: Séries Cadernos do Professor e Programa da Pós-Graduação da FAE/UFMG, 1996.


LAHIRE, B. Sucesso escolar nos meios populares: as razões do improvável. São Paulo: Ática. 1997.


NUNES, T, BUARQUE, L. e BRYANT, P. Dificuldades na aprendizagem da leitura. São Paulo: Cortez Editora/Autores Associados, 1992. P. 13-31.


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SANTIAGO, Ana Lydia B. A inibição intelectual na Psicanálise. Tese de Doutorado. São Paulo, Instituto de Psicologia Clínica da USP, 2000.
SENA, Maria das Graças de Castro. Dispositivo , 1. Belo Horizonte: Clínica d'Iss, 1999. P. 73-78.


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VIDAL, G. Falso mal: Médico denuncia a farsa da disritimia. Isto é/Senhor , n. 1.070, 21 de março, 1990.

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