Cabo Branco - João Pessoa |
Por Ricardo S. Kubrusly
(Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ)
O
contador de história e o cozinheiro
Há muitos e muitos anos, começava o contador de histórias: nada havia.
Em volta dele as pessoas vinham chegando curiosas com a sua maneira tranquila
de misturar fatos e sonhos como que um mestre cuca a temperar ao seu sabor e
arte os mais variados pratos. O nada ali à-toa, entediado de ser nada apenas,
esperava pacientemente. Sorte sua que mesmo o tempo que sempre pensamos ter
sempre existido ainda não havia sido inventado, e a história de sua invenção
estava para ser ali contada. A paciência talvez, junto ao nada, era tudo o que
existia. Por sopro ou grito, dizia o contador de histórias, e ninguém o
entendia agora, o nada, que era de fato tudo, se transforma em gases quentes,
luzes, e matéria reticente, para estudo dos físicos que ainda haveriam de
aparecer um dia. E tudo se transformava a contento e galáxias surgiam fagueiras
num frenesi de criação e alegria. Então..., dizia o contador de histórias, e
nessa altura as pessoas riam e não riam e se espantavam com tudo que entendiam
e com tudo que não entendiam.
A
invenção do Tempo
Lá vinha ele com novas histórias. Dizia que a terra, agora já toda
povoada de plantas e bichos de todos os tipos e sem gente alguma em qualquer
parte, vivia feliz e deslumbrante. Tudo vivia sua própria necessidade, prazer,
trabalho e descanso, eram uma só coisa que se chamava vida. Um belo dia, pois
todos os dias eram belos, um jovem macaco, após se alimentar das frutas de que
mais gostava, se pendurou pelo rabo, de cabeça pra baixo, olhando o mundo de
cima, meio dormindo, meio acordado, a balançar como só macacos sabem fazer.
Ainda não havia anoitecido e dali, daquele posto natural de observação, ele
percebia todo movimento da floresta. Como era intensa a luta diária de todas as
espécies que ali viviam e morriam sem se dar conta de que ali viviam e morriam.
Tudo era parte natural da floresta, do planeta e de todo universo. A morte
ainda não existia, pelo menos a preocupação com a morte não fazia sentido. Tudo
era parte de um só processo: o da existência do universo como um todo. O macaco
balançava-se observando os ciclos da vida, e dali, como que separado de todo
aquele processo, se deu conta que todos a sua volta, de fato, nasciam, cresciam
e depois morriam; e que havia uma interrupção, um fim para tudo o que
começava... e que ele também, algum dia, teria o seu final. Surgem então:
preocupação e medo. A balançar somente, o macaco era agora um pêndulo, um
relógio, e com que destino, se não o destino dos relógios: o de inventar o
tempo. Quanto ainda me falta? ... foi seu primeiro pensamento. Cai o macaco do
galho onde tudo era vida, e cai de pé, homem repleto de angústia e atrelado
definitivamente ao tempo.
O
Eterno e o Infinito
A certeza do fim e a necessidade de dar um sentido à vida, agora
bem delimitada, faz o homem dedicar-se à transcendência. Para aplacar essa
angústia que o dominava, era preciso driblar o tempo e recriar a eternidade.
Daí surgem todas as religiões, com seus deuses poderosos, e também o pensamento
científico com a missão de compreender o que se passava e de deixar uma memória
gravada que o tempo não conseguisse apagar. Surgem linguagem e matemática,
surgem as perguntas filosóficas e as explicações da física, que, a cada
instante, reinventava a natureza segundo seus caprichos e a moda de seu tempo.
Era o pensamento buscando o infinito. O que ignora a morte, não tendo fim nem
começo, diferente de toda a natureza, impossível, num universo onde tudo é
finito, e vivo apenas na mente desse estranho animal do pensamento a que se
transformara, no tombo, o macaco.
O
infinito na Matemática
Na busca de enganar o tempo, o homem inventa e cria , sempre a
partir de um ponto a que chegara anteriormente, montando um edifício de ideias
e coisas que, por sua vez, dão origem a mais ideias e mais coisas num processo
interminável de entendimento e transformação da natureza. No início, os
primeiros começos vieram da própria natureza e do que dela surgia de mais
simples e incontestável . Para tentar entender e explicar todas as coisas, o
homem lança mão de sua capacidade de concatenar ideias e de inventar histórias.
Estas duas capacidades, misturadas, formam o pensamento. O homem torna-se um
explicador da natureza. Muito do raciocínio se baseia na fé, que muitas vezes é
o caminho mais claro de compreender o que nos cerca. Crenças de toda espécie,
foram e serão criadas, pois há e haverá sempre o que não cabe na razão, uma
saudade do tempo, sem tempo, onde tudo é milagre.
Podemos entender a matemática como sendo, de todas as explicações e
pensamentos, a parte que não depende de fé. Onde não é preciso a crença para
atingir o entendimento, este é o mundo matemático. A matemática é tão antiga
quanto o homem, e surge também com o tombo do macaco. O infinito na matemática
adquire uma outra visibilidade, diferente de suas aparições artísticas e são de
números a primeira estrada que leva ao seu entendimento, por isso começaremos
por eles.
O
Contador de objetos
Os números surgem com a necessidade de organizar e ordenar as coisas
(objetos e ideias) que compõe nosso dia a dia. À medida que sofisticamos as
nossas relações como pessoas, vamos necessitando cada vez mais de maiores
números. Uma criança com seu mundo de objetos (mãe, alguns brinquedos e o resto
que ainda não faz sentido) precisará de menos números para organizar seus
objetos e ideias do que um adulto (principalmente se ele for um economista que,
em geral, lida com números gigantescos). Alguns índios brasileiros, dentro de
sua sabedoria, não precisam de muitos números e a verdade é que usam dois
algarismos para formar seus únicos três números: Um, UmUm = dois (o casal) e
Muitos. Vivem bem assim, sem grandes confusões e nenhuma aritmética. Esses
mesmos índios nos acham muito estranhos e desnecessariamente complicados. Nos
apelidam de Seres do dinheiro e das horas. Vivem sem esses dois conceitos. O
tempo é o seu próprio tempo e não faz sentido dividi-lo em tantos números... e
o dinheiro é (para eles) ridículo e desnecessário, fonte apenas de muitos
números e aborrecimentos.
Feliz ou infelizmente, a complexidade intelectual que atingimos através
dos tempos exige de nós a capacidade de articular com uma quantidade de números
cada vez maior. Se, por um lado, isso nos expulsa do paraíso da ingenuidade
onde éramos e formávamos a natureza e seus mistérios, por outro, nos abre
também as portas de novas percepções.
Quem são, na realidade, estes seres de matéria abstrata e irresponsável
que inventamos sem cessar dia e noite? O que são os números?
Os números podem ser vistos como símbolos que representem quantidades.
Foram e serão sempre necessários para contar objetos. Estes são os números
naturais, 1,2,3... Associamos para cada objeto a ser contado um número natural,
começando do 1 e seguindo a sequência crescente em que eles se apresentam.
Quando concluímos a contagem de um certo conjunto de objetos, o número
associado ao último objeto contado é o número total de elementos do conjunto,
que chamamos a Cardinalidade do conjunto. Para saber então, quantos elementos
tem um conjunto, basta associar cada um de seus elementos a um número natural
em sequência e tomar o último natural associado.
1,2,3..
O maior de todos os números, para uma criança pequena, pode ser o 100 ou
o 1000 ou mesmo10000000000000, mas se nos perguntarmos seriamente sobre o maior
número natural, não será difícil perceber que ele não existe. Imaginemos que de
fato ele exista e que tenha um nome e que se chame Longínquo. Ora, se a cada
número n segue sempre o seu sucessor,
que é igual a n+1, também a Longínquo, seguirá Longínquo + 1, que destituirá
deste a qualidade de último e maior de todos os números. Desta maneira, os
naturais são um exemplo claro de um conjunto infinito, isto é, que não tem fim,
que nunca se acaba. Curioso também, que se perguntarmos aos nossos amigos ou
parentes o que é infinito e pedirmos exemplos de conjuntos infinitos, poderemos
escutar que infinito é o número de grãos de areia na praia de Copacabana, ou o
número de estrelas no céu, ou mesmo o número de pontos num segmento de reta.
Analisando esses exemplos podemos entender melhor o que é o infinito.
Contando
os grãos de areia da praia de Copacabana.
Serão infinitos os grãos de areia da praia? Não sei, vamos
contá-los. Primeiro temos de ir a Copacabana, munidos de uma caixinha de
fósforos vazia. Depois temos de olhar bem a paisagem, calculando
aproximadamente as muitas distâncias do local. O comprimento da orla é de
aproximadamente 5km e a extensão da faixa de areia mede mais ou menos uns 50m.
Se imaginarmos as montanhas tão lindas que atrás dos prédios emolduram a beleza
do lugar, podemos imaginar que elas se estendem por debaixo de todo areal rumo
ao mar. Observando as inclinações dos morros em volta, podemos deduzir a
profundidade da camada de areia no local: talvez 100m. Findo o passeio e as
observações, volta-se para a casa ou para a escola, sem esquecer de encher, sem
apertar , a caixinha de fósforos com areia da praia.
Agora limpamos uma mesa bem grande e lisa e espalhamos sobre ela o
conteúdo da caixinha, espalhando o melhor possível. A ideia é que sobre a mesa
fique uma camada de areia com área calculável e a espessura de um grão apenas.
Após estimar a área da camada espalhada, separamos um quadrado de 1cm de lado e
contamos nele todos os grãos, com o auxílio, é claro, de uma lupa e um estilete
bem fino. Deve dar um trabalhão, mas depois é fácil: basta multiplicar a
quantidade de areia contada pela área da camada de areia e depois pelo volume
estimado da praia; mantendo coerência nas unidades métricas. Se contarmos 10
milhões de grãos na caixa de fósforos que deve ter um volume de 10 cm3,
obteremos um total de
que é a ordem de grandeza de 1020 grãos de areia, que,
como vimos, é um número finito que pode ser escrito em um pedaço pequeno de
papel.
Da mesma maneira podemos calcular, com as informações que os astrônomos
dispõe hoje em dia, o número de estrelas no céu, que também será finito, assim
como finito também será o número de átomos de todo universo, se acreditarmos
nas teorias, hoje em moda, da criação do universo pelo big bang. Será um número
muito grande; da ordem de
1090 =
1000000000000000000000000000000000000000000
000000000000000000000000000000000000000000000000
000000000000000000000000000000000000000000000000
mas não tão grande, que gastemos mais de duas linhas para escrevê-lo.
Os
infinitos pontos de uma reta
Para entendermos o outro exemplo, o do número de pontos num dado
segmento de reta, é preciso que se faça uma diferença entre pontos físicos que
são pedaços de matéria que compõe um todo e, nesse caso, o número de pontos de
qualquer objeto será sempre finito e menor do que o número acima, e pontos
matemáticos. Pontos, retas, planos são entendidos como entidades puramente
matemáticas e abstratas. São consideradas contínuas e, portanto, com capacidade
de serem divididas eterna e infinitamente. Qualquer tamanho pode ser sempre
dividido em duas metades e esse processo de dividir por metades nunca terá fim.
Segundo Euclides, autor do primeiro livro de matemática há mais de 2000 anos
atrás, o ponto é o que não tem partes e, portanto, não será divisível em
metades. Não terá tamanho ou medida e por não ocupar espaço será possível
amontoar uma infinidade deles em qualquer segmento de reta. Isto nos leva a
concluir que, além dos números, existem outras possibilidades de infinito:
segmentos de retas ou figuras planas com uma certa área ou volumes de um dada
porção de espaço têm um número infinito de pontos matemáticos. Estes formam,
junto dos números, os conjuntos infinitos que estamos estudando aqui. Se
chamarmos de "tamanho" do segmento ao número de pontos que ele
contém, concluiríamos espantados que todo segmento tem o mesmo
"tamanho", porque, dados dois quaisquer segmentos, podemos sempre
estabelecer, como mostra a figura, uma correspondência biunívoca entre seus
pontos, o que impede que um dos segmentos seja "maior" do que o
outro. Uma correspondência biunívoca entre dois conjuntos é a que associa a
cada ponto de um conjunto um único ponto do outro e vice versa.
Uma transformação semelhante mostra que uma semi-reta infinita ainda é
do mesmo "tamanho", isto é, contém o mesmo número de pontos do que um
segmento qualquer. Veja, na figura abaixo, como podemos representar essa
transformação: une-se o vértice (0,1) do quadrado de lado 1 a um ponto X
qualquer no semi-eixo positivo pelo segmento r , e baixa-se a perpendicular
desde a interseção de r com a diagonal d até o intervalo [0,1] ,
determinando-se assim o ponto transformado xÂ’.
Os
números naturais e alguns de seus subconjuntos
O conjunto dos naturais é infinito, como também são infinitos
muitos dos seus subconjuntos. Observando a tabela abaixo, notamos vários
conjuntos infinitos, todos contidos propriamente nos naturais, o que nos leva a
suspeitar que qualquer conjunto infinito contém sempre subconjuntos infinitos.
Se isso for verdadeiro, infinitos sempre aparecerão em sequências infinitas de
infinitos.
As duas primeiras linhas da tabela mostram os conjuntos dos números
naturais e o dos números pares. Uma aparente contradição logo prende a nossa
atenção. Se, por um lado, é claro que o "tamanho" dos naturais ( e
por tamanho, estamos entendendo o número total de elementos) é maior do que o
"tamanho" dos Pares, pela simples razão que a estes faltam todos os
ímpares (1,3,5,7,9...). Também é claro que, a cada Natural, corresponde um
único Par e vice versa, e que esta correspondência biunívoca é estabelecida
pela multiplicação por 2. Desta maneira, não pode haver mais naturais do que
Pares e o "tamanho" dos dois deve ser o mesmo. Dizemos que ambos têm
a mesma cardinalidade. Podemos concluir, um pouco surpresos é claro, que os
conjuntos listados na tabela acima têm todos o mesmo "tamanho",
embora o que retiramos dos naturais para formar cada um deles seja cada vez
maior. Conjuntos com a mesma cardinalidade dos naturais são chamados de
contáveis ou enumeráveis. Este paradoxo dos conjuntos infinitos contáveis, já
preocupava os matemáticos desde os tempos de Galileu, 300 anos atrás, e
possibilitou mais tarde uma definição matemática definitiva para o infinito.
Uma
definição para o infinito
No final do século passado, Cantor e Dedekind tiraram proveito da
aparente contradição lógica inerente aos conjuntos infinitos para defini-los.
Esta aparente contradição, decorre do fato de que conjuntos infinitos não
respeitam à máxima de que o Todo é sempre maior do que qualquer de
suas Partes , pois, como acabamos de ver, os naturais não são
maiores do que os Pares ou qualquer dos seus subconjuntos infinitos, como, por
exemplo, os ímpares ou os múltiplos de 3, ou 4, ou 567.
Um conjunto é infinito
se e somente se ele contém um subconjunto próprio em correspondência biunívoca
com ele mesmo.
Esta definição nos diz que se A é infinito, necessariamente existe
B, um subconjunto próprio de A (logo existem elementos de A que não estão em B
), e apesar disso, A e B estão em correspondência biunívoca (logo a cada ponto
de A corresponde um e somente um ponto de B). Que coisa estranha, não é? Coisas
do infinito!
Como consequência desta definição, obtemos a esperada sequência infinita
de infinitos; pois se A é infinito e se B está em correspondência biunívoca com
A, B, por sua vez, também é infinito e então, pela definição, deverá existir um
outro conjunto, digamos C, que estará em correspondência biunívoca com B, e
que, consequentemente, também será infinito e conterá outro subconjunto e assim,
sucessivamente, geraremos uma sequência infinita de infinitos. Ufa!
Os
racionais
Os números racionais são o conjunto de todas as frações da forma p/q
onde p e q são dois naturais quaisquer. Podemos construir os racionais através
de uma tabela de dupla entrada onde as colunas representariam os numeradores e
as linhas os denominadores.
Primeiramente, podemos notar que, aparentemente, há muito mais racionais
do que naturais, já que, entre quaisquer dois naturais consecutivos,
encontramos uma infinidade de racionais. Por exemplo: entre 5 e 6 temos, todos
os números da forma 5+ i/n, para qualquer natural i < n. Se n=10, temos:
Observando a tabela dos racionais acima, pode-se esperar que o
"tamanho" dos racionais seja igual quadrado do "tamanho"
dos naturais, já que o número de elementos numa tabela de dupla entrada é
calculado multiplicando-se o número de elementos das linhas pelo das colunas.
Esperamos, portanto, que a cardinalidade
dos racionais seja maior do que a dos naturais. Mais uma outra surpresa do
infinito nos aguarda.. Seguindo as setas desenhadas na tabela dos racionais,
podemos contar todos os racionais, sem perder nenhum. Não é um espanto? Desta
maneira, estabelecemos uma correspondência biunívoca entre os racionais e os
naturais. Isto significa que os dois "tamanhos" ou as duas
cardinalidades são iguais. Ambos são conjuntos infinitos contáveis.
Este resultado surpreendente nos leva a uma nova compreensão dos
conjuntos infinitos. Parece que a cardinalidade dos conjuntos infinitos é
imutável e que mesmo a potenciação de infinitos permanece invariante e
contável. Temos uma álgebra estranha:
+ n = , . n = , n =
que parece inalterável. Serão então, todos os infinitos iguais?
Os
Reais
Os números reais podem ser postos em correspondência com os pontos de
uma linha reta. Esta afirmação é conhecida como o Postulado da Régua, mas nem
sempre foi entendido assim. Na Grécia Antiga, consideravam-se números apenas os
racionais, pois estes eram combinações simples dos naturais, os verdadeiros
números de então. Infelizmente, no entanto, não é possível estabelecer uma
correspondência entre a linha reta e os racionais. Sempre sobrarão
"buracos" na reta que não terão correspondentes entre os números. Esses
"buracos" são preenchidos pelos números irracionais. Os irracionais
aparecem primeiramente como medidas de segmentos geométricos. A diagonal de um
quadrado de lado igual a um pode ser obtida pelo teorema de Pitágoras, que
fornece o valor de
para essa medida de comprimento. Acontece que não existe
nenhum número racional que expresse essa quantidade. Se tentarmos
escrever
, para dois naturais p e q , chegaremos ao absurdo de que pelo
menos um deles terá que ser ao mesmo tempo par e ímpar, o que é impossível.
Resta-nos duas opções ; ou
não é mesmo um número e apenas uma medida geométrica, ou
existem outros números além dos racionais. Para que se possa estabelecer a
desejada correspondência entre números e a linha reta, o que permitirá a
qualquer distância ser expressa por um número, a existência dos irracionais é
imprescindível. A escrita dos irracionais, no entanto, não é fácil: são números
que sempre têm uma infinidade de casas decimais e que, portanto, não podem ser
completamente conhecidos, mas apenas aproximados. O mais famoso dos irracionais
é o número
, que vale aproximadamente 3,14 . Podemos
escrevê-lo com quantas casas decimais quisermos. Por exemplo, com 80 casas
decimais temos:
3,1415926535897932384626433832795028841971693993751058209749445923078164062862090...
Após estabelecida a sua existência, é fácil observar que eles (os
irracionais ) também formam um conjunto infinito, pois o produto de um
Irracional por um Natural será Irracional. Qual será o seu "tamanho",
a sua cardinalidade, o "tamanho" do seu infinito? Serão contáveis os
irracionais?
A princípio, podemos pensar que sim. Afinal, pela própria escrita dos
irracionais, existe para cada um deles uma sequência de racionais que o
aproxima. Em outras palavras: existe sempre uma infinidade de racionais tão
perto quanto quisermos de qualquer irracional. Veja o exemplo de
. A seqüência
de racionais, se aproxima cada vez mais do valor de
.
Mais uma vez, a nossa intuição falha. Vamos mostrar que a cardinalidade
dos irracionais é maior do que a dos racionais. Para isto basta analisar os
irracionais contidos entre zero e um. Se os dois tivessem a mesma cardinalidade
seria possível contar os irracionais. Infelizmente ( ou felizmente?!) isso não
acontece. Se os irracionais contidos no intervalo (0,1) fossem contáveis,
existiria uma lista, como a descrita abaixo, contendo, ordenadamente, todos
eles.
Mostraremos que qualquer lista que se pretenda completa, ou seja,
contendo todos os irracionais entre zero e um, falhará na sua tentativa
deixando pelo menos um e, portanto, uma infinidade de irracionais de fora. Para
isto, basta construir um irracional que não pertença a tal lista que se supõe
completa. Observe que o número
b
= b1 b2 b3 b4 b5 b6 b7 b8 b9 ...
não pode estar listado acima se escolhermos apropriadamente os seus
algarismos significativos, de tal maneira que:
b1
a1,1 o que faz com
que b1 seja diferente do primeiro elemento da lista
b2
a2,2 o que faz com
que b2 seja diferente do segundo elemento da lista,
e assim teremos para qualquer natural n que bn
an,n ,
o que faz com que bn seja sempre diferente do
n-ésimo elemento da lista e, então, b não pertencerá a
pretensa lista, qualquer que ela seja.
O que acabamos de mostrar é que nunca poderemos contar os irracionais.
Sua cardinalidade, o tamanho do seu infinito, será maior do que a dos naturais
ou racionais. Os reais, que são a união dos racionais com os irracionais,
também terão o mesmo tamanho dos irracionais. Chamaremos a esse
"tamanho", isto é, aos conjuntos em correspondência biunívoca com os
reais, de não enumeráveis.
O
Conjunto de Cantor
Santa Teresa D'Ávila passava os dias enclausurada com seus
pensamentos, voltada para Deus. No seu modo de ver o mundo, tudo era
insignificante diante do poder de criação divino. Nada, se comparado com Deus,
tinha qualquer valor. Tudo como se fossem números diante do infinito. Ela
expressava seus pensamentos através da conhecida máxima: "Mesmo Tudo Não é
Nada". Georg Cantor, o maior mago do infinito matemático, inventou um
conjunto cujas propriedades nos fazem pensar na velha santa inquieta.
Começamos com o segmento que representa o intervalo fechado [0,1].
Dividimos este segmento em três partes e jogamos fora o pedaço do meio, ficando
com os outros dois terços extremos. Repetimos depois o mesmo procedimento com
cada um dos segmentos restantes, sempre jogando fora o terço médio de cada
divisão. Os quatro segmentos restantes sofrerão o mesmo processo de divisão e retirada
do terço médio, dando origem a oito segmentos cada vez menores. Este processo
deve ser repetido eternamente ( "ad infinitum"), sempre dividindo
cada segmento restante por três e dispensando o terço médio de cada divisão. O
que sobra no limite é o Conjunto Ternário de Cantor. Se examinarmos quais os
pontos que restam após o processo infinito de construção do conjunto,
observamos que os pontos extremos dos diversos segmentos, obtidos em qualquer
etapa da construção do Conjunto de Cantor, estarão sempre presentes até o fim.
Os pontos {0,1,1/3,2/3,1/9,2/9, ...8/925/27...etc. ...} pertencem, todos eles,
ao conjunto final. Se numerarmos cada etapa da construção do conjunto por j
=1,2,3,4,5...., observamos que são criados (para sempre) no conjunto 2j pontos
na j-ésima etapa. Isso, ao contrário do que poderíamos pensar no início, faz
com que o Conjunto de Cantor tenha muitos infinitos de pontos. Observe, por um
momento, a figura abaixo que descreve várias etapas da construção.
O Conjunto de Cantor nos reserva duas surpresas do infinito:
- O "tamanho" do
Conjunto de Cantor.
É possível mostrar que o " tamanho" do Conjunto da Cantor, ou
seja, seu número de pontos matemáticos, ou sua cardinalidade, é a mesma do
segmento [0,1] ( e portanto de toda a reta) , apesar do tanto que se tira do
segmento durante a construção do conjunto.
Para isso, vamos começar observando que todo número , em qualquer
base, tem uma (na verdade, pelo menos uma ) escrita infinita. Por exemplo: o
número 1 pode ser escrito, na base dez, como 1,0000... ou 0,9999... que são
duas maneiras de escrever a mesma quantidade igual a 1, o número 37,8694657
pode ser escrito , na base dez, como 37,86946570000... ou como
37,869465699999... . As dízimas periódicas só tem uma escrita infinita possível,
por exemplo, 1/3=0,333..., já os irracionais têm apenas uma única escrita
numérica possível, infinita, é claro. Por exemplo, na base dez temos,
=3,141592.... , e=2,7182818284590.....
= 1.414213562373.... etc.
Com isso em mente, vamos rotular os segmentos usados na construção do
conjunto de Cantor. Começando pelo primeiro nível da construção, o
intervalo [0,1] propriamente dito, que será chamado de "0,".
Nos níveis subsequentes, chamaremos, sempre, aos intervalos de ordem ímpar de
" 0 " e, aos de ordem par, de " 1 "
, como mostra a figura abaixo. Desta maneira, estaremos associando a cada
sub-intervalo utilizado na construção do conjunto de Cantor, um número real
entre zero e um, escrito na base 2 (já que só utilizamos os algarismos 0 e 1 para
escrevê-lo).
Se pensarmos agora no conjunto de Cantor pronto, já completamente
construído, isto é, o limite ao infinito do processo de divisão ternária,
previamente elaborado, podemos observar que:
1-Cada extremo de cada segmento construído em qualquer nível permanece
fixo por toda a construção, pertencendo, portanto, ao conjunto (final) de
Cantor. Lá estarão, por exemplo, o 0 , o
1/3 , o 2/3 , o 1 , o 2/9 , o 7 /27, etc. Na verdade, o conjunto de Cantor é
composto de todos esses extremos remanescentes no processo infinito de sua
construção e, portanto, tem pelo menos um número infinito de elementos; mas
isso ainda não é tudo o que queremos.
2 - A associação feita acima entre cada segmento da construção do
conjunto de Cantor e seu rótulo (ou 0 ou 1 ) cria uma infinidade ( por quê?) de
sequências infinitas do tipo: 0, (ou 0 ou 1) (ou 0 ou 1)...... onde o dígito 0
ou 1 dependerá da escolha entre esquerda ou direita, feita na passagem dos
níveis durante a construção do conjunto, como mostra a figura abaixo. Essas sequências
apontam, precisamente, para os pontos remanescentes do processo de divisão
ternária, isto é, para os elementos do próprio conjunto de Cantor.
3- Finalmente observamos que as sequências infinitas criadas são
de fato as escritas infinitas na base dois dos números reais entre zero e um.
Esta correspondência é biunívoca, pois qualquer sequência do tipo 0, (ou 0 ou
1) (ou 0 ou 1) .... representa ( isto é, escreve na base dois ) um único real e,
por outro lado, qualquer número real entre zero e um é representado ( isto é,
tem sua escrita infinita na base dois dada) por uma sequência do tipo 0, (ou 0
ou 1) (ou 0 ou 1 ) ....
Assim, fica provado que o conjunto de Cantor é não enumerável.
2-
O "peso"(?) do conjunto de Cantor.
Por outro lado, podemos observar facilmente, que se somarmos o tanto que
se tira em cada etapa, ou seja, o comprimento do que jogamos
fora temos:
que pode ser escrita como
que é a soma infinita de uma progressão geométrica de razão menor do que
1 e cujo valor pode ser diretamente calculado e é igual a 1. Se quisermos,
porém, podemos aproximar passo a passo esse resultado, calculando cada vez mais
termos desta soma e obtendo valores cada vez mais perto de 1. Veja os valores
da soma para 1,2,3,10,20,50 e 100, termos respectivamente:
.333333333333333333333333333333
.555555555555555555555555555556
.703703703703703703703703703704
.982658470084167386407898524954
.999699271340178282505744180080
.999999998431671454516041377666
.999999999999999997540345573420
Finalmente, para surpresa nossa, no limite, depois da construção
completa do conjunto de Cantor, obtemos que o comprimento da soma do tudo que
se retira (o verdadeiro tamanho que aqui chamamos de peso ) é o tudo que
existia no início, ou seja , igual a 1.
Incrível ! O Conjunto de Cantor, tem,
ao mesmo tempo, o mesmo número de pontos do segmento [0,1], e toda a parte
retirada também tem a mesma medida do segmento original. O tudo que se tinha é
igual ao tanto que se retira que é o mesmo que restou.
Mesmo tudo não é nada.
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Fonte: http://im.ufrj.br/~risk/diversos/tamanho.html. Título original: 'O tamanho do infinito'.