Um dos efeitos mais nefastos do populismo, aliado à 'preguiça mental', é a desvalorização da reflexão teórica, em nome de um 'praticismo cego' e de discursos vazios, assim como da autopromoção, que, não poucas vezes, oculta interesses pessoais e o desejo de obter vantagens. É consistente, contudo, o juízo histórico segundo o qual para mudar o mundo, primeiro é preciso estudar, para entendê-lo. O texto aí abaixo passa em revista o tema, a partir do pensamento social clássico.
Por Mario Sergio Conti
Não
é de hoje que o empreendedorismo chama atenção. Num livro publicado há 123
anos, são feitas três afirmações sobre pessoas que tomam dinheiro emprestado
para montar seus negócios.
Ele
diz de início: "O fato que um homem sem fortuna, mas com energia,
seriedade, capacidade e conhecimento dos negócios, possa tornar-se um
capitalista é bastante admirado pelos economistas apologéticos".
Mas
logo na sequência ele nega os economistas, constatando que o incremento do
empreendedorismo "produz um número indesejado de novos cavaleiros da
fortuna, que entram em competição com os diversos capitalistas individuais já
existentes".
A
sentença é encerrada com a negação da negativa anterior: o acréscimo de
empreendedores "reforça a dominação do próprio capital, ampliando a sua
base e permitindo-o recrutar sem interrupção forças novas no substrato da
sociedade".
Está-se,
como se vê, no âmbito da dialética, com tese, antítese e síntese concentradas
numa frase. Está-se na página 660 da nova tradução do Livro 3 d'"O
Capital", recém-lançada pela Boitempo. Marx não para aí, e faz um paralelo
entre catolicismo e capitalismo:
"Do
mesmo modo, o fato que na Idade Média a Igreja Católica formasse sua hierarquia
com os melhores cérebros do povo, sem levar em conta estamento, nascimento ou
patrimônio, foi um dos principais meios de consolidação do domínio
eclesiástico."
Chega
assim a uma generalização: "O domínio de uma classe é tanto mais sólido e
perigoso quanto maior é a capacidade de essa classe dominante assimilar os
homens mais importantes das classes dominadas".
Passe-se
esse pensamento para a América Latina do século 21. Chega-se à conclusão
–contraintuitiva– que Chávez, Morales e Lula, catapultados do substrato do povo
para o topo do Estado, atestam a vitalidade do capitalismo. Mostram sua
capacidade em cooptar os melhores entre os dominados, para por seu intermédio
manter a dominação.
O
Livro 3, contudo, não trata de política. Depois de estudar a produção e a
circulação do capital nos volumes anteriores, Marx investiga a economia como um
todo. O tema do Livro 3, pois, é o processo global de transformação do trabalho
vivo no seu fantasma –o capital financeiro.
É
um tema atual. Na crise de 2008, por exemplo, estourou uma bolha imobiliária
nos EUA. Ela fora inflada por um sistema de crédito que, de um lado, financiava
a construção civil, e, de outro, emprestava a empreendedores e pequenos
poupadores.
Com
a insolvência geral, aqueles que pegaram empréstimo para comprar casas e abrir
negócios perderam os imóveis e o que investiram. Esse mecanismo de prejuízo
total foi antevisto no Livro 3:
"A
expropriação completa do trabalhador não é um resultado que o modo de produção
capitalista procura alcançar, mas uma premissa da qual parte".
"O
Capital" não é para ser lido na praia. Ele demanda empenho e paciência
(sobretudo nos volumes 2 e 3, aos quais Marx não deu forma final), de tão
intricada que é a economia capitalista.
Ele
por certo pode ser estudado como outros clássicos da ciência do século 19, caso
de "A Origem das Espécies" e "A Interpretação dos Sonhos",
livros que qualquer pessoa razoavelmente educada leu. Mas é uma abordagem menos
proveitosa porque tende a tratar "O Capital" como um mausoléu.
Foi
o que fez o stalinismo. Já a derrocada da URSS, contraditoriamente, tanto
marginalizou Marx como o livrou das amarras doutrinárias. O que o colapso da
perspectiva socialista não conseguiu foi humanizar o capitalismo, estancar suas
crises, impedir que devaste.
Melhor
então voltar a "O Capital" pelo o que ele foi e ainda é: crítica do
modo de produção que explora, corrompe e empesteia, transformado o planeta num
mercado no qual somos todos mercadorias. Para mudar este mundo é preciso antes
entendê-lo.
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Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/mariosergioconti/. Título original: 'Retorno ao Livro 3'.