La Condition Humanine, de René Magritte |
Soren Kierkegaard
A recordação não tem apenas que ser exata;
tem que ser também feliz; é preciso que o aroma do vivido esteja preservado,
antes de selar-se a garrafa da recordação. Tal como a uva não deve ser pisada
em qualquer altura, tal como o tempo que faz no momento de esmagá-la tem grande
influência no vinho, também o que foi vivido não está em qualquer momento ou em
qualquer circunstância pronto para ser recordado ou pronto para dar entrada na
interioridade da recordação.
Recordar não é de modo algum o mesmo que lembrar. Por exemplo, alguém pode
lembrar-se muito bem de um acontecimento, até ao mais ínfimo pormenor, sem
contudo dele ter propriamente recordação. A memória é apenas uma condição
transitória. Por intermédio da memória o vivido apresenta-se à consagração da
recordação.
A diferença é reconhecível logo nas diferentes idades da vida. O ancião
perde a memória, que aliás é a primeira capacidade a perder-se. Contudo, o
ancião tem em si algo de poético; de acordo com a representação popular, ele é
profeta, é divinamente inspirado. A recordação é, afinal, também a sua melhor
força, a sua consolação: consola-o com esse alcance da visão poética.
A infância, pelo contrário, possui em grau elevado a memória e a
facilidade de apreensão, mas não tem o dom da recordação. Em vez de dizer-se «a
idade não esquece o que a juventude aprende», poder-se-ia talvez dizer: «o que
a criança retém na memória, recorda-se o ancião». Os óculos do velho são feitos
para ver ao perto. Se na juventude é preciso usar óculos, as lentes servem para
ver ao longe, pois que à juventude falta a força da recordação, que consiste em
afastar, em pôr à distância. Mas a recordação feliz da velhice tanto quanto a
feliz capacidade de apreensão da criança são dom da natureza, uma graça que
concede a sua preferência aos dois períodos mais desprotegidos da vida, que
contudo, em certo sentido, são também os mais felizes.
(Disponível em in Vino Veritas)