No IX Congresso Basco de Sociologia, Vicente Huici Urmeneta (Universidad
de Deusto) apresentou um trabalho relacionando Ciências Humanas e Neurociências, para assinalar a configuração do campo denominado Neurosociologia. Um campo emergente, e praticamente sem desenvolvimento, por exemplo, no Brasil. Em outras realidades, tem sido chamado de Social Neuroscience. Seja como for, é uma incursão com significativos reflexos em diversas áreas do conhecimento, como a educação. No referido sentido, é possível encontrar na obra do português António Damásio consideráveis esboços de uma perspectiva neurosociológica (além do seu contributo para a filosofia da mente). A propósito, vai um texto aí abaixo, seguido de uma entrevista com ele.
Por Nythamar
de Oliveira (Ph.D, State University of New York;
pesquisador do CNPq e Professor de Ética e
Filosofia Política na PUCRS)
Desde os anos 1950 e 1960, pesquisas em
neurociências já evidenciavam problemas incontornáveis em modelos variantes do
dualismo substancialista (isto é, de uma substância pensante, racional, em
oposição a uma substância corpórea, material, animada pela alma) e vários
outros surgiram nas décadas seguintes, com propostas alternativas, mas que
apenas reformulavam o dualismo ou reduziam os processos mentais a padrões de
comportamento condicionado (behaviorismo), a uma teoria da identidade (entre
mente e cérebro), aos estados físicos do cérebro (fisicalismo) ou aos papéis
causais e funcionais numa economia complexa de estados internos, mediando
entradas (inputs) de dados sensoriais e saídas (outputs)
comportamentais (funcionalismo), assim como os reducionismos materialistas que
propunham eliminar as explicações que aludem aos estados psicológicos
(materialismo eliminacionista).
A obra de Damásio suscitou uma profícua interlocução da neurociência com a
filosofia da mente, sobretudo com a neurofilosofia, após a publicação da obra
seminal de Patricia Churchland, Neurophilosophy (1986),
definida como o estudo filosófico das neurociências, correlato ao estudo
neurocientífico da filosofia da mente e da linguagem. Assim, desde uma
perspectiva neurofilosófica, as neurociências e ciências cognitivas se prestam
ao estudo interdisciplinar dos processos mentais, ou, em termos
neurocientíficos, dos processos cerebrais e redes neurais nas complexas
dimensões interativas do cérebro e da mente com o meio físico, social e
cultural.
Os problemas metafísicos do dualismo e do self ("eu") são destarte explorados e revisitados à luz das ciências cognitivas e neurociências, delimitando o estado da arte relativo ao problema da normatividade como uma de suas principais linhas de pesquisa, contrapondo modelos naturalistas e culturalistas, na medida em que lidam com questões de neurociência, biologia evolucionista, evolução social e progresso moral.
Os problemas metafísicos do dualismo e do self ("eu") são destarte explorados e revisitados à luz das ciências cognitivas e neurociências, delimitando o estado da arte relativo ao problema da normatividade como uma de suas principais linhas de pesquisa, contrapondo modelos naturalistas e culturalistas, na medida em que lidam com questões de neurociência, biologia evolucionista, evolução social e progresso moral.
Pela sua original e audaciosa articulação entre neurobiologia e evolução
social, Damásio contribuiu também para a consolidação da neuroética, em seus
dois campos principais: (1) enquanto reflexão bioética e ético-normativa sobre
as novas técnicas e inovações tecnológicas produzidas pela neurociência e (2)
numa abordagem moral de problemas da chamada filosofia da mente, psicologia
moral e, mais recentemente, da psicologia social e da epistemologia social. Com
efeito, as pesquisas multidisciplinares e transdisciplinares da neurociência e
da neurofilosofia nessas décadas acabariam por favorecer a convergência em sua
dimensão social e pluralista, para além dos reducionismos naturalistas e
fisicalistas das primeiras décadas, com a investigação interdisciplinar de
processos decisórios à luz da correlação neurocognitiva entre razão, emoção e
consciência.
De acordo com Damásio, "a compreensão cabal da mente humana requer a
adoção de uma perspectiva do organismo... não só a mente tem de passar de um cogitum não
físico para o domínio do tecido biológico, como deve também ser relacionada com
todo o organismo que possui cérebro e corpo integrados e que se encontra
plenamente interativo com um meio ambiente físico e social". (Damásio,
2005, p. 282)
De resto, Damásio assume que as bases filosóficas e cognitivas das decisões
morais estão no centro das discussões sobre a natureza humana, na medida em que
a moralidade evolui como um dos elementos que diferenciam os seres humanos dos
outros animais, como tem sido argumentado por autores com propostas tão diferenciadas
quanto Aristóteles, Hume e Kant. As decisões morais têm, afinal, um papel
central na definição do ser humano; ela está no cerne de tomadas de decisão que
nos definem em relação a questões culturais, questões de relacionamento pessoal
e de escolhas políticas e cotidianas que, por fim, ajudam a definir o self em
relação aos outros e dentro de um milieu específico.
Assim como estabelece a correlação entre razão prática e emoção, Damásio
associa a consciência à noção de tomada de decisão, bem como ao planejamento em
diferentes escalas de tempo, criação de possibilidades de interação com o meio
e seleção de cursos de ação – sendo todas as etapas do processo interligadas.
Damásio logra, assim, articular processos sociais, intersubjetivos, e processos
neurobiológicos, que explicam a evolução do cérebro humano e a emergência da
consciência, do "eu", da memória, da linguagem, da subjetividade e
suas representações e construções criativas e portadoras de significado:
"Se a consciência não se desenvolvesse no decorrer da evolução e não se
expandisse em sua versão humana, a humanidade que hoje conhecemos, com todas as
suas fragilidades e forças, nunca teria se desenvolvido também". (Damásio,
2011, p. 17)
Trata-se de evitar, por um lado, as idealizações a priori do dualismo cartesiano que persistem em modelos tradicionais da teoria da escolha racional (rational choice), e por outro lado, o relativismo, o niilismo e o decisionismo morais de posturas culturalistas que rechaçam qualquer possibilidade de embasamento racional ou normativo em processos decisórios. Segundo Damásio, a observância de convenções sociais e regras éticas previamente adquiridas poderia ser perdida como resultado de uma lesão cerebral, mesmo quando nem o intelecto de base nem a linguagem mostravam estar comprometidos, como era o caso de Phineas Gage, em quem apenas o comportamento social parecia ter sido afetado. (Damásio, 1994, p. 31)
Trata-se de evitar, por um lado, as idealizações a priori do dualismo cartesiano que persistem em modelos tradicionais da teoria da escolha racional (rational choice), e por outro lado, o relativismo, o niilismo e o decisionismo morais de posturas culturalistas que rechaçam qualquer possibilidade de embasamento racional ou normativo em processos decisórios. Segundo Damásio, a observância de convenções sociais e regras éticas previamente adquiridas poderia ser perdida como resultado de uma lesão cerebral, mesmo quando nem o intelecto de base nem a linguagem mostravam estar comprometidos, como era o caso de Phineas Gage, em quem apenas o comportamento social parecia ter sido afetado. (Damásio, 1994, p. 31)
Ainda de acordo com os experimentos de Damásio, a escolha de uma decisão
qualquer ou de um curso de ação referente a um problema pessoal em que o
sujeito está devidamente inserido em seu meio social (complexo, mutável e
incerto), requer dois elementos: 1) amplo conhecimento de generalidades; 2)
estratégias de raciocínio que operem sobre este conhecimento. Assim, não
podemos reduzir os processos decisórios a uma suposta racionalidade pura, sem
levar em conta as emoções, os sentimentos e o contexto sociocultural.
Quando identifica uma base emotiva natural para os sentimentos e juízos morais, o naturalismo inerente a abordagens analíticas e hermenêuticas da filosofia da mente não poderia destarte excluir nenhum nível axiológico ou normativo de autocompreensão. Tal abordagem naturalista ainda prescindiria, neste caso, de uma justificativa para a sobreposição valorativa da normatividade com relação a estados de coisas encontrados ou até mesmo socialmente construídos da realidade. A persistência de uma crítica ao naturalismo consiste precisamente em reconhecer que mesmo que admitamos a "sobreveniência" (supervenience) de valores morais com relação a fatos, eventos ou propriedades naturais, físicas ou biológicas, ainda assim não seria possível reduzir propriedades morais a tais estados de coisas.
Quando identifica uma base emotiva natural para os sentimentos e juízos morais, o naturalismo inerente a abordagens analíticas e hermenêuticas da filosofia da mente não poderia destarte excluir nenhum nível axiológico ou normativo de autocompreensão. Tal abordagem naturalista ainda prescindiria, neste caso, de uma justificativa para a sobreposição valorativa da normatividade com relação a estados de coisas encontrados ou até mesmo socialmente construídos da realidade. A persistência de uma crítica ao naturalismo consiste precisamente em reconhecer que mesmo que admitamos a "sobreveniência" (supervenience) de valores morais com relação a fatos, eventos ou propriedades naturais, físicas ou biológicas, ainda assim não seria possível reduzir propriedades morais a tais estados de coisas.
Segundo a concepção integrada de emoções e valores normativos em Damásio, um
naturalismo mitigado equivale a reconhecer que, embora sejam socialmente
construídos, valores morais, práticas, dispositivos e instituições como
família, dinheiro, sociedade e governo, não podem ser reduzidos a propriedades
físicas ou naturais, mas também, por outro lado, prescindem das mesmas na
própria constituição de seus elementos intersubjetivos de autocompreensão – daí
o adjetivo "mitigado" (weak) para diferenciá-lo de um
naturalismo reducionista (fisicalismo) e de um construcionismo subjetivista,
relativista ou pós-moderno. Assim como Damásio o mostrou, uma teoria
emocionalista-sentimentalista da moral logra articular razão, emoção e
processos de tomada de decisão em termos empírico-filosóficos, na medida em que
sentimentos cognitivos prescindem de um nível reflexivo, que nem sempre se
encontra nas emoções, particularmente, nas "emoções primárias".
(Damásio, 1999).
Segundo Damásio, o sentimento emocional é a percepção, no neocórtex, das
respostas corporais aos estímulos imediatos, através dos centros cerebrais
inferiores. As emoções têm função social e papel decisivo no processo de
interação e integração sociais. As emoções são adaptações singulares que integram
o mecanismo com o qual os organismos regulam sua sobrevivência orgânica e
social. Damásio faz uma distinção entre sentimento (experiência mental da
emoção) e emoção (conjunto de reações orgânicas), de forma a estabelecer os
fundamentos biológicos que ligam sentimento e consciência. Em um nível básico,
as emoções são parte da regulação homeostática e constituem-se como um poderoso
mecanismo de aprendizagem. Ao longo do desenvolvimento, "as emoções acabam
por ajudar a ligar a regulação homeostática e os 'valores' de sobrevivência a
muitos eventos e objetos de nossa experiência autobiográfica". (Damásio,
2000, p. 80)
As emoções fornecem aos indivíduos comportamentos voltados para a sobrevivência e são inseparáveis de nossas ideias e sentimentos relacionados com a recompensa ou punição, prazer ou dor, aproximação ou afastamento, vantagem ou desvantagem pessoal etc. na medida em que a base neural desses eventos nos permite distinguir três etapas de processamento que fazem parte de um contínuo: "Um estado de emoção, que pode ser desencadeado e executado inconscientemente; um estado de sentimento, que pode ser representado inconscientemente, e um estado de sentimento tornado consciente, isto é, que é conhecido pelo organismo que está tendo emoção e sentimento". (Damásio, 2000, p. 57)
As emoções fornecem aos indivíduos comportamentos voltados para a sobrevivência e são inseparáveis de nossas ideias e sentimentos relacionados com a recompensa ou punição, prazer ou dor, aproximação ou afastamento, vantagem ou desvantagem pessoal etc. na medida em que a base neural desses eventos nos permite distinguir três etapas de processamento que fazem parte de um contínuo: "Um estado de emoção, que pode ser desencadeado e executado inconscientemente; um estado de sentimento, que pode ser representado inconscientemente, e um estado de sentimento tornado consciente, isto é, que é conhecido pelo organismo que está tendo emoção e sentimento". (Damásio, 2000, p. 57)
A emoção desencadeada por determinado estímulo dá origem a "programa de
ações", diferentes conforme o tipo de emoção, que provocam alterações no
rosto, no corpo ou no sistema endócrino (estratégias ativas). O corar de um
rosto, a tensão muscular, o aumento do ritmo cardíaco, ou o aumento da secreção
de determinado hormônio são exemplos dessas alterações fisiológicas. Damásio destaca
o valor adaptativo das emoções e de sua função na interação social, e propõe
uma classificação em termos de três tipos de emoções: de fundo (emoções mais
vagas, como o entusiasmo e o desencorajamento), primárias (mais pontuais, como
a tristeza, o medo, a raiva ou a alegria) e sociais (resultantes de um contexto
sociocultural – como a empatia, a compaixão, a vergonha ou o orgulho).
As emoções básicas (alegria, tristeza, medo, raiva, surpresa, repugnância) são
consideradas universais pelo reconhecimento através da expressão facial e são
geradas por situações extremas, sendo o seu contágio entre os membros de um
grupo social um potencial catalizador de comportamentos coletivos, como atestam
os protestos e as manifestações que sacudiram todo o Brasil recentemente. Num
de seus mais fascinantes e polêmicos livros, Damásio evoca o exemplo instigante
de Espinosa que, numa época de grande intolerância e obcurantismo no século
XVII, ousou defender a liberdade da mente humana, integrada aos seus contextos
naturais e sociais, de forma a suplantar, numa democracia, "o lado escuro
das emoções sociais que se exprimem no tribalismo, racismo, tirania e fanatismo
religioso". (Damásio, 2003, p. 289).
Referências Bibliográficas
António DAMÁSIO, O Erro de Descartes:
Emoção, razão e o cérebro humano. 2a. edição. São Paulo: Companhia das
Letras, 2005. (Original em inglês: Descartes' Error: Emotion, reason, and the
human brain. New York: Putnam, 1994).
António DAMÁSIO, O Mistério da Consciência: Do corpo e das emoções do
conhecimento de si. São Paulo: Companhia
das Letras, 2000. (Original em inglês: The feeling of what happens: Body and
emotion in the making of consciousness. New York: Harcourt Brace, 1999).
António DAMÁSIO, Ao Encontro de Espinosa: As Emoções Sociais e a Neurobiologia do Sentir. Mem Martins: Publicações Europa-América, 2003. (Original em inglês: Looking for Spinoza: Joy, sorrow and the feeling brain. New York: Harcourt Brace, 2003).
António DAMÁSIO, E o cérebro criou o Homem. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. (Original em inglês: Self Comes to Mind: Constructing the Conscious Brain. New York: Pantheon, 2010).
António DAMÁSIO, Ao Encontro de Espinosa: As Emoções Sociais e a Neurobiologia do Sentir. Mem Martins: Publicações Europa-América, 2003. (Original em inglês: Looking for Spinoza: Joy, sorrow and the feeling brain. New York: Harcourt Brace, 2003).
António DAMÁSIO, E o cérebro criou o Homem. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. (Original em inglês: Self Comes to Mind: Constructing the Conscious Brain. New York: Pantheon, 2010).