quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

O ocaso da cidade: patrimônio histórico sob a luz melancólica do crepúsculo


Por Ivonaldo Leite

As ruínas históricas evocam necessariamente uma reflexão sobre a degradação temporal. Aquele tempo-lugar, aquele jeito como as coisas eram, aquele modo de ser das gentes. No reverso, tudo isso existe, “agora”, apenas como retrato na “parede da memória”, parafraseando aqui Belchior. “Essa lembrança é o quadro que dói mais”. Esse é o efeito que, muitas vezes, toma conta das pessoas quando elas relembram os tempos idos. Saudade de uma vida distante, que, no decorrer dos dias, vai sobrevivendo a conta-gotas vertidas dos relatos orais.
Contudo, há uma dimensão da temporalidade pretérita que, mais do que nutrir os relatos orais daquela vida passada, é ela própria, essa dimensão, constitutiva da memória do dia a dia de então, daquele cotidiano lembrando. Trata-se do patrimônio histórico material, patrimônio físico, representado por imóveis e objetos. É quando, numa cidade, o museu da sua história está espalhado pelos seus quatro cantos. O ar crepuscular do casario que repousa quieto apenas lembrando que outrora abrigava os habitantes da urbe e dava existência a sua vida, palco das venturas e desventuras das famílias do lugar, do estar no mundo em grupo ou solitariamente. Mas que, no presente, ele, o casario, mantém-se quieto, como que a se desculpar por se encontrar fora dos padrões arquitetônicos vigentes. Mero ator coadjuvante da nova cena cotidiana da cidade.
Por vezes, todavia, nem mesmo esse jeito de desculpa é suficiente para que o patrimônio histórico continue a existir, insistindo em manter viva a memória do lugar. É quando governos, abraçados com o descaso, não se preocupam com a sua preservação/tombamento, e assim ele vai então se esvanecendo no melancólico apagar do seu crepúsculo. Ou quando ‘homens de negócio’ querem pô-lo abaixo em função dos seus empreendimentos econômicos. Neste último caso, trata-se daquele progresso denunciado pelo filósofo judeu-alemão Walter Benjamin, a partir de uma analogia com um quadro de Paul Clean. Palavras de Benjamin: “Há um quadro de Klee chamado Angelus Novus. Representa um anjo que parece a ponto de afastar-se para longe daquilo a que está olhando fixamente. Seus olhos estão arregalados, sua boca aberta, suas asas estendidas. O anjo da história deve ter este aspecto. Seu rosto está voltado para o passado. Onde diante de nós aparece um encadeamento de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que vai empilhando incessantemente escombros sobre escombros, lançando-os diante de seus pés. O anjo bem que gostaria de se deter, despertar os mortos e recompor o que fora feito em pedaços. Mas uma tempestade sopra do paraíso e se prende em suas asas com tal força, que o anjo já não as pode fechar. A tempestade irresistivelmente o impele ao futuro, para o qual ele dá as costas, enquanto o monte de escombros cresce até o céu diante dele. O que chamamos de progresso é esta tempestade”.
A tempestade do progresso, todavia, não destrói o patrimônio histórico de um lugar sem a complacência de quem é responsável por sua administração, desconsiderando-se que a memória, por exemplo, de uma cidade constitui a sua identidade. E sem identidade não se sabe o que se é.  Cai-se no paradoxo da imitação: negar-se o que é, para se imitar o que não é. Olhemos para o patrimônio histórico nordestino e reflitamos, façamos comparações estado a estado, cidade a cidade, etc. Em alguns casos, a situação é alvissareira; em outros, desoladora.
Como pesquisador, nos tempos em que morei em Portugal, uma das primeiras incursões que fiz foi junto à Torre do Tombo, em Lisboa, com o propósito de levar a cabo averiguações sobre as minhas raízes. Indo das raízes familiares às raízes do meu lugar, a capitania de Pernambuco. Foi com surpresa que encontrei documentos relatando aspectos fundamentais da constituição da região agreste do estado, da Comarca de Cimbres/do Senado e da cidade que a seus pés iria nascer – Pesqueira. Diante dos meus achados, um amigo lusitano pergunto-me como era a preservação desse patrimônio histórico. Não tive outra opção senão mudar de assunto. Mas a latência da pergunta mantém-se atual, a se pensar no casario do lugar e no próprio Senado de Cimbres.  
O que tem sobrado são as ruínas históricas, com ilações sobre a degradação temporal, a degradação do tempo presente. Que ao menos seja aprendida uma lição: a degradação temporal, estiolando identidades, leva a um inevitável vazio, tornando os lugares em ‘não-lugares’.




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