Por Ivonaldo Leite
As ruínas históricas
evocam necessariamente uma reflexão sobre a degradação temporal. Aquele
tempo-lugar, aquele jeito como as coisas eram, aquele modo de ser das gentes.
No reverso, tudo isso existe, “agora”, apenas como retrato na “parede da
memória”, parafraseando aqui Belchior. “Essa lembrança é o quadro que dói mais”.
Esse é o efeito que, muitas vezes, toma conta das pessoas quando elas relembram
os tempos idos. Saudade de uma vida distante, que, no decorrer dos dias, vai
sobrevivendo a conta-gotas vertidas dos relatos orais.
Contudo, há uma
dimensão da temporalidade pretérita que, mais do que nutrir os relatos orais
daquela vida passada, é ela própria, essa dimensão, constitutiva da memória do
dia a dia de então, daquele cotidiano lembrando. Trata-se do patrimônio
histórico material, patrimônio físico, representado por imóveis e objetos. É
quando, numa cidade, o museu da sua história está espalhado pelos seus quatro
cantos. O ar crepuscular do casario que repousa quieto apenas lembrando que
outrora abrigava os habitantes da urbe e dava existência a sua vida, palco das
venturas e desventuras das famílias do lugar, do estar no mundo em grupo ou
solitariamente. Mas que, no presente, ele, o casario, mantém-se quieto, como
que a se desculpar por se encontrar fora dos padrões arquitetônicos vigentes. Mero
ator coadjuvante da nova cena cotidiana da cidade.
Por vezes, todavia,
nem mesmo esse jeito de desculpa é suficiente para que o patrimônio histórico
continue a existir, insistindo em manter viva a memória do lugar. É quando
governos, abraçados com o descaso, não se preocupam com a sua
preservação/tombamento, e assim ele vai então se esvanecendo no melancólico apagar
do seu crepúsculo. Ou quando ‘homens de negócio’ querem pô-lo abaixo em função
dos seus empreendimentos econômicos. Neste último caso, trata-se daquele
progresso denunciado pelo filósofo judeu-alemão Walter Benjamin, a partir de uma
analogia com um quadro de Paul Clean. Palavras de Benjamin: “Há um quadro de Klee chamado Angelus Novus. Representa um anjo que parece a ponto de afastar-se
para longe daquilo a que está olhando fixamente. Seus olhos estão arregalados,
sua boca aberta, suas asas estendidas. O anjo da história deve ter este
aspecto. Seu rosto está voltado para o passado. Onde diante de nós aparece um
encadeamento de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que vai empilhando incessantemente
escombros sobre escombros, lançando-os diante de seus pés. O anjo bem que
gostaria de se deter, despertar os mortos e recompor o que fora feito em pedaços.
Mas uma tempestade sopra do paraíso e se prende em suas asas com tal força, que
o anjo já não as pode fechar. A tempestade irresistivelmente o impele ao
futuro, para o qual ele dá as costas, enquanto o monte de escombros cresce até
o céu diante dele. O que chamamos de progresso é esta tempestade”.
A tempestade do progresso, todavia, não
destrói o patrimônio histórico de um lugar sem a complacência de quem é
responsável por sua administração, desconsiderando-se que a memória, por
exemplo, de uma cidade constitui a sua identidade. E sem identidade não se sabe
o que se é. Cai-se no paradoxo da
imitação: negar-se o que é, para se imitar o que não é. Olhemos para o
patrimônio histórico nordestino e reflitamos, façamos comparações estado a
estado, cidade a cidade, etc. Em alguns casos, a situação é alvissareira; em
outros, desoladora.
Como pesquisador, nos tempos em que
morei em Portugal, uma das primeiras incursões que fiz foi junto à Torre do
Tombo, em Lisboa, com o propósito de levar a cabo averiguações sobre as minhas
raízes. Indo das raízes familiares às raízes do meu lugar, a capitania de
Pernambuco. Foi com surpresa que encontrei documentos relatando aspectos
fundamentais da constituição da região agreste do estado, da Comarca de
Cimbres/do Senado e da cidade que a seus pés iria nascer – Pesqueira. Diante
dos meus achados, um amigo lusitano pergunto-me como era a preservação desse
patrimônio histórico. Não tive outra opção senão mudar de assunto. Mas a
latência da pergunta mantém-se atual, a se pensar no casario do lugar e no
próprio Senado de Cimbres.
O que tem sobrado são as ruínas
históricas, com ilações sobre a degradação temporal, a degradação do tempo
presente. Que ao menos seja aprendida uma lição: a degradação temporal,
estiolando identidades, leva a um inevitável vazio, tornando os lugares em
‘não-lugares’.
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