Chocante é o mínimo que se pode dizer do atentado levado a cabo em Paris contra o jornal semanal Charlie Hebdo, vitimando doze pessoas. Em horas assim, cabe pensar no que os fanatismos e intolerâncias religiosas são capazes de fazer. No plural mesmo, intolerâncias, porque a intolerância religiosa não existe apenas no islamismo. Está presente em outras diversas religiões, como uma retrospectiva histórica de imediato pode mostrar. Aliás, atualmente, no Brasil, temos presenciado um misto entre comércio da fé e intolerância religiosa, invadindo canais televisivos, gritando em templos, e condenando ao "quinto dos infernos" todas as pessoas que não acreditam no que os seus "profetas" proclamam. Não é mesmo algo para ser levado a sério. Mas esses "profetas" não se contêm, e passam dia e noite a prescrever juízos morais a respeito de como as pessoas devem se comportar, o que devem fazer e até o que devem pensar. Espaços públicos, que devem ser eminentemente laicos (pois são mantidos com os recursos oriundos dos impostos de quem tem e não tem crença religiosa), vão sendo colonizados por religiões específicas. Ora bem, caro leitor, desconfie dos fanatismos, das intolerâncias, das pessoas, enfim, que querem impor, a qualquer custo, a sua crença religiosa. E não respeitam quem pensa diferente, por ter outra religião ou por não ter nenhuma. A propósito das questões envolvidas neste debate, é apropriado voltar a um texto de José Saramago, o qual reproduzo aí abaixo.
O Fator Deus
Por José Saramago
Algures na Índia. Uma fila de peças de artilharia em
posição. Atado à boca de cada uma delas há um homem. No primeiro plano da
fotografia um oficial britânico ergue a espada e vai dar ordem de fogo. Não
dispomos de imagens do efeito dos disparos, mas até a mais obtusa das
imaginações poderá "ver" cabeças e troncos dispersos pelo campo de
tiro, restos sanguinolentos, vísceras, membros amputados. Os homens eram
rebeldes.
Algures em Angola. Dois soldados portugueses levantam pelos braços um
negro que talvez não esteja morto, outro soldado
empunha um machete e prepara-se para lhe separar a cabeça do corpo. Esta é a
primeira fotografia. Na segunda, desta vez há uma segunda fotografia, a cabeça
já foi cortada, está espetada num pau, e os soldados riem. O negro era um
guerrilheiro. Algures em Israel. Enquanto alguns soldados israelitas imobilizam
um palestino, outro militar parte-lhe à martelada os ossos da mão direita. O
palestino tinha atirado pedras. Estados Unidos da América do Norte, cidade de
Nova York. Dois aviões comerciais norte-americanos, sequestrados por
terroristas relacionados com o integrismo islâmico, lançam-se contra as torres
do World Trade Center e deitam-nas abaixo.
Pelo mesmo processo um terceiro avião causa danos enormes no edifício do
Pentágono, sede do poder bélico dos States. Os mortos, soterrados nos
escombros, reduzidos a migalhas, volatilizados, contam-se por milhares.
As fotografias da Índia, de Angola e de Israel atiram-nos com o horror à
cara, as vítimas são-nos mostradas no próprio instante da tortura, da agônica
expectativa, da morte ignóbil. Em Nova York tudo pareceu irreal ao princípio,
episódio repetido e sem novidade de mais uma catástrofe cinematográfica,
realmente empolgante pelo grau de ilusão conseguido pelo engenheiro de efeitos
especiais, mas limpo de estertores, de jorros de sangue, de carnes esmagadas,
de ossos triturados, de merda. O horror, agachado como um animal imundo,
esperou que saíssemos da estupefação para nos saltar à garganta. O horror disse
pela primeira vez "aqui estou" quando aquelas pessoas saltaram para o
vazio como se tivessem acabado de escolher uma morte que fosse sua. Agora o
horror aparecerá a cada instante ao remover-se uma pedra, um pedaço de parede,
uma chapa de alumínio retorcida, e será uma cabeça irreconhecível, um braço,
uma perna, um abdômen desfeito, um tórax espalmado. Mas até mesmo isto é
repetitivo e monótono, de certo modo já conhecido pelas imagens que nos
chegaram daquele Ruanda-de-um-milhão-de-mortos, daquele Vietnã cozido a
napalme, daquelas execuções em estádios cheios de gente, daqueles linchamentos
e espancamentos daqueles soldados iraquianos sepultados vivos debaixo de
toneladas de areia, daquelas bombas atômicas que arrasaram e calcinaram
Hiroshima e Nagasaki, daqueles crematórios nazistas a vomitar cinzas, daqueles
caminhões a despejar cadáveres como se de lixo se tratasse. De algo sempre
haveremos de morrer, mas já se perdeu a conta aos seres humanos mortos das
piores maneiras que seres humanos foram capazes de inventar. Uma delas, a mais
criminosa, a mais absurda, a que mais ofende a simples razão, é aquela que,
desde o princípio dos tempos e das civilizações, tem mandado matar em nome de
Deus. Já foi dito que as religiões, todas elas, sem exceção, nunca serviram para
aproximar e congraçar os homens, que, pelo contrário, foram e continuam a ser
causa de sofrimentos inenarráveis, de morticínios, de monstruosas violências
físicas e espirituais que constituem um dos mais tenebrosos capítulos da
miserável história humana. Ao menos em sinal de respeito pela vida, deveríamos
ter a coragem de proclamar em todas as circunstâncias esta verdade evidente e
demonstrável, mas a maioria dos crentes de qualquer religião não só fingem
ignorá-lo, como se levantam iracundos e intolerantes contra aqueles para quem
Deus não é mais que um nome, nada mais que um nome, o nome que, por medo de
morrer, lhe pusemos um dia e que viria a travar-nos o passo para uma
humanização real. Em troca prometeram-nos paraísos e ameaçaram-nos com infernos,
tão falsos uns como outros, insultos descarados a uma inteligência e a um
sentido comum que tanto trabalho nos deram a criar. Disse Nietzsche que tudo
seria permitido se Deus não existisse, e eu respondo que precisamente por causa
e em nome de Deus é que se tem permitido e justificado tudo, principalmente o
pior, principalmente o mais horrendo e cruel. Durante séculos a Inquisição foi,
ela também, como hoje os talebanes, uma organização terrorista que se dedicou a
interpretar perversamente textos sagrados que deveriam merecer o respeito de
quem neles dizia crer, um monstruoso conúbio pactuado entre a religião e o
Estado contra a liberdade de consciência e contra o mais humano dos direitos: o
direito a dizer não, o direito à heresia, o direito a escolher outra coisa, que
isso só a palavra heresia significa.
E, contudo, Deus está inocente. Inocente como algo que não existe, que
não existiu nem existirá nunca, inocente de haver criado um universo inteiro
para colocar nele seres capazes de cometer os maiores crimes para logo virem
justificar-se dizendo que são celebrações do seu poder e da sua glória,
enquanto os mortos se vão acumulando, estes das torres gêmeas de Nova York, e
todos os outros que, em nome de um Deus tornado assassino pela vontade e pela
ação dos homens, cobriram e teimam em cobrir de terror e sangue as páginas da
história. Os deuses, acho eu, só existem no cérebro humano, prosperam ou
definham dentro do mesmo universo que os inventou, mas o "fator
Deus", esse, está presente na vida como se efetivamente fosse o dono e o
senhor dela. Não é um deus, mas o "fator Deus" o que se exibe nas
notas de dólar e se mostra nos cartazes que pedem para a América (a dos Estados
Unidos, não a outra...) a bênção divina. E foi o "fator Deus" em que
o deus islâmico se transformou, que atirou contra as torres do World Trade
Center os aviões da revolta contra os desprezos e da vingança contra as
humilhações. Dir-se-á que um deus andou a semear ventos e que outro deus
responde agora com tempestades. É possível, é mesmo certo. Mas não foram eles,
pobres deuses sem culpa, foi o "fator Deus", esse que é terrivelmente
igual em todos os seres humanos onde quer que estejam e seja qual for a
religião que professem, esse que tem intoxicado o pensamento e aberto as portas
às intolerâncias mais sórdidas, esse que não respeita senão aquilo em que manda
crer, esse que depois de presumir ter feito da besta um homem acabou por fazer
do homem uma besta.
Ao leitor crente (de qualquer crença...) que tenha conseguido suportar a
repugnância que estas palavras provavelmente lhe inspiraram, não peço que se
passe ao ateísmo de quem as escreveu. Simplesmente lhe rogo que compreenda,
pelo sentimento de não poder ser pela razão, que, se há Deus, há só um Deus, e
que, na sua relação com ele, o que menos importa é o nome que lhe ensinaram a
dar. E que desconfie do "fator Deus". Não faltam ao espírito humano
inimigos, mas esse é um dos mais pertinazes e corrosivos. Como ficou
demonstrado e desgraçadamente continuará a demonstrar-se.
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