terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Universidade, ciência e lixo acadêmico

Aí abaixo, dois artigos recentes, e instigantes, sobre universidade e a produção científica brasileira, e que merecem reflexão. Da parte de estudantes (da graduação à pós-graduação) e professores, sobretudo os que se colocam na esfera da pesquisa. Na verdade, a expressão pesquisa tem sido tão banalizada que "tudo" é apresentado como pesquisa. E essa talvez seja uma das razões (entre várias outras) da mediocridade referida pelos autores dos artigos. Não concordo de todo com o segundo texto, do Prof. Rogério Cezar de Cerqueira Leite, como, por exemplo, no que diz respeito à necessidade de descentralizar os espaços científicos no país, interiorizando a vida acadêmica e a produção científica. Contudo, isso não significa desconhecer relevância em aspectos por ele realçados. Do que é evidenciado, seria possível discutir também os efeitos da produção científica em 'ritmo industrial', assim como o lucrativo mercado de eventos "acadêmicos". E mais: de como a educação tem se transformado em um negócio, onde o que menos importa é a efetiva formação dos estudantes. 




Brincando de ciência


Por Hélio Schartsman 
   
 (Autor de Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena)

Todo sistema traz em si sua própria perversão. O mundo acadêmico não é exceção à regra.
Universidades dos grandes centros precisam alocar os recursos disponíveis segundo critérios de competência. O problema é que aferir mérito não é tão fácil. Elas até que tentaram, criando um complexo sistema de publicação de artigos científicos no qual cada trabalho submetido é revisado por especialistas para assegurar sua relevância e correção. Autores que publicam mais e cujos artigos recebam mais citações ganham não apenas mais prestígio como também melhores salários, condições mais vantajosas de trabalho e mais verbas para seus laboratórios.
Como isso pode significar bastante dinheiro, dos anos 2000 para cá tem proliferado uma indústria de periódicos predatórios, que se oferecem para, em troca de uma taxa que costuma ficar na casa das centenas de dólares, publicar trabalhos de autores que não encontraram espaço nos "journals" mais rigorosos. Eles afirmam seguir os consagrados procedimentos de revisão por pares, mas sabemos que isso é mentira.
Cientistas com senso de humor costumam submeter artigos-trote que acabam sendo publicados. No mais recente desses casos, dois "journals" publicaram um amontoado de termos científicos gerados por computador que não fazia sentido gramatical nem técnico assinado por dois personagens de "Os Simpsons" e por um certo Kim Jong Fun.
Um pouco antes, outro periódico publicou um artigo intitulado "Get me off Your Fucking Mailing List" (me tire dessa p... dessa lista) que repetia essa expressão ao longo de todas as suas páginas.
Apesar dos momentos de diversão que esses "journals" nos proporcionam, sua existência é ruim porque erode a confiança do sistema. Hoje os avaliadores precisam andar com listas dos periódicos picaretas debaixo do braço e sempre há o risco de deixarem passar algo que não deveria. 
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Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2015/01/1569975-brincando-com-a-ciencia.shtml


Produção científica e lixo acadêmico no Brasil
Por Rogério Cezar de Cerqueira Leite
(Professor Emérito da Unicamp)

Dois artigos publicados recentemente pela revista britânica "Nature", especializada em ciência, deixam o Brasil e, em especial, a comunidade acadêmica brasileira, profundamente envergonhados.
A "Nature" nos acusa, em primeiro lugar, de produzir mais lixo do que conhecimento em ciência. Nas revistas mais severas quanto à qualidade de ciência, selecionadas como de excelência pelo periódico, cientistas brasileiros preenchem apenas 1% das publicações.
Quando se incluem revistas menos qualificadas, porém, ainda incluídas dentre as indexadas, o Brasil se responsabiliza por 2,5%. O que a "Nature" generosamente omite são as publicações em revistas não indexadas, que contêm número significativo de publicações brasileiras, um verdadeiro lixo acadêmico.
O segundo golpe humilhante para a ciência brasileira exposto pela revista se refere à eficiência no uso de recursos aplicados à pesquisa. Dentre 53 países analisados, o Brasil está em 50º lugar. Melhor apenas que Egito, Turquia e Malásia.
Tomemos um exemplo. O Brasil publicou 670 artigos em revistas de grande prestígio, enquanto no mesmo período o Chile publicou 717, nessas mesmas revistas. O dado profundamente inquietante é que enquanto o Brasil despendeu em ciência US$ 30 bilhões, o Chile gastou apenas US$ 2 bilhões.
Quer dizer, o Chile, que aliás não está entre os primeiros em eficiência no mundo científico, é 15 vezes mais eficiente que o Brasil. Alguma coisa está errada, profundamente errada. A academia brasileira, isto é, universidades e institutos de pesquisas produzem mais pesquisa de baixa do que de boa qualidade e as produz a custos muito elevados. Há certamente causas, talvez muitas, para essa inadequação.
A primeira decorre de um "distributivismo" demagógico. É evidente que seria desejável que novos centros de pesquisas se desenvolvessem em regiões ainda não desenvolvidas do país. Mas é um erro crasso esperar que uma atividade de pesquisas qualquer venha a desenvolver economicamente uma região sem cultura adequada para conviver com essa pesquisa.
Seria desejável que investimentos maciços fossem aplicados em pesquisas em instituições localizadas em regiões pouco desenvolvidas, mas cujo meio ambiente é capaz de absorver os benefícios dessa inserção.
O segundo mal que é causa inquestionável da diminuta e dispendiosa produção de conhecimento é o obsoleto regime de trabalho que regula a mão de obra do setor de pesquisas em universidades públicas e na maioria dos institutos.
O pesquisador faz um concurso --frequentemente falsificado-- no começo de sua carreira. Torna-se vitalício. Quase sempre não precisa trabalhar para ter aumento de salário e galgar postos em sua carreira. Ora, qual seria, então, a motivação para fazer pesquisas?
O terceiro problema é o sistema de gestão de universidades públicas e instituições de pesquisa, cuja burocracia soterra qualquer iniciativa dos poucos bem-intencionados professores e pesquisadores que ainda não esmoreceram.
Pois bem. Há uma fórmula que evita todos esses males e que já foi experimentada com sucesso em algumas das instituições científicas do Brasil: a organização social. A resistência dos medíocres e parasitas e a falta de coragem política de algumas de nossas autoridades impedem a solução desse problema.
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Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/202892-producao-cientifica-e-lixo-academico-no-brasil.shtml


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