Aí abaixo, você tem extratos de uma entrevista do sociólogo polonês Zygmunt Bauman concedida à Revista Isto É, e mediada pela jornalista Adriana Prado. Em foco, as suas formulações em torno dos 'tempos e dos amores líquidos'.
Bauman: 'amor líquido, amor até segundo aviso' |
O que
caracteriza a “modernidade líquida”?
Líquidos
mudam de forma muito rapidamente, sob a menor pressão. Na verdade, são
incapazes de manter a mesma forma por muito tempo. No atual estágio “líquido”
da modernidade, os líquidos são deliberadamente impedidos de se solidificarem.
A temperatura elevada — ou seja, o impulso de transgredir, de substituir, de
acelerar a circulação de mercadorias rentáveis — não dá ao fluxo uma
oportunidade de abrandar, nem o tempo necessário para condensar e
solidificar-se em formas estáveis, com uma maior expectativa de vida.
As
pessoas estão conscientes dessa situação?
Acredito
que todos estamos cientes disso, num grau ou outro. Pelo menos às vezes, quando
uma catástrofe, natural ou provocada pelo homem, torna impossível ignorar as
falhas. Portanto, não é uma questão de “abrir os olhos”. O verdadeiro problema
é: quem é capaz de fazer o que deve ser feito para evitar o desastre que já
podemos prever? O problema não é a nossa falta de conhecimento, mas a falta de
um agente capaz de fazer o que o conhecimento nos diz ser necessário fazer, e
urgentemente. Por exemplo: estamos todos conscientes das conseqüências
apocalípticas do aquecimento do planeta. E todos estamos conscientes de que os
recursos planetários serão incapazes de sustentar a nossa filosofia e prática
de “crescimento econômico infinito” e de crescimento infinito do consumo.
Sabemos que esses recursos estão rapidamente se aproximando de seu esgotamento.
Estamos conscientes — mas e daí? Há poucos (ou nenhum) sinais de que, de
própria vontade, estamos caminhando para mudar as formas de vida que estão na
origem de todos esses problemas.
Ao
se conectarem ao mundo pela internet, as pessoas estariam se desconectando da
sua própria realidade?
Os
contatos online têm uma vantagem sobre os offline: são mais fáceis e menos
arriscados — o que muita gente acha atraente. Eles tornam mais fácil se
conectar e se desconectar. Casos as coisas fiquem “quentes” demais para o
conforto, você pode simplesmente desligar, sem necessidade de explicações complexas,
sem inventar desculpas, sem censuras ou culpa. Atrás do seu laptop ou iPhone,
com fones no ouvido, você pode se cortar fora dos desconfortos do mundo
offline. Mas não há almoços grátis, como diz um provérbio inglês: se você ganha
algo, perde alguma coisa. Entre as coisas perdidas estão as habilidades
necessárias para estabelecer relações de confiança, as para o que der vier, na
saúde ou na tristeza, com outras pessoas. Relações cujos encantos você nunca
conhecerá a menos que pratique. O problema é que, quanto mais você busca fugir
dos inconvenientes da vida offline, maior será a tendência a se desconectar.
E o
que o senhor chama de “amor líquido”?
Amor
líquido é um amor “até segundo aviso”, o amor a partir do padrão dos bens de
consumo: mantenha-os enquanto eles te trouxerem satisfação e os substitua por
outros que prometem ainda mais satisfação. O amor com um espectro de eliminação
imediata e, assim, também de ansiedade permanente, pairando acima dele. Na sua
forma “líquida”, o amor tenta substituir a qualidade por quantidade — mas isso
nunca pode ser feito, como seus praticantes mais cedo ou mais tarde acabam
percebendo. É bom lembrar que o amor não é um “objeto encontrado”, mas um
produto de um longo e muitas vezes difícil esforço e de boa vontade.
Nesse
contexto, ainda faz sentido sonhar com um relacionamento estável e duradouro?
Ambos
os tipos de relacionamento têm suas próprias vantagens e riscos. Em um mundo
“líquido”, em rápida mutação, “compromissos para a vida” podem se revelar como
sendo promessas que não podem ser cumpridas — deixando de serem algo valioso
para virarem dificuldades. O legado do passado, afinal, é a restrição mais
grave que a vida pode impor à liberdade de escolha. Mas, por outro lado, como
se pode lutar contra as adversidades do destino sozinho, sem a ajuda de amigos
fiéis e dedicados, sem um companheiro de vida, pronto para compartilhar os
altos e baixo? Nenhuma das duas variedades de relação é infalível. Mas a vida
também não o é. Além disso, o valor de um relacionamento é medido não só pelo
que ele oferece a você, mas também pelo que oferece aos seus parceiros. O
melhor relacionamento imaginável é aquele em que ambos os parceiros praticam
essa verdade.
O
que explicaria o crescimento do consumo de antidepressivos?
Você
colocou o dedo em um dos muitos sintomas da nossa crescente intolerância ao
sofrimento – na verdade, uma intolerância a cada desconforto ou mesmo ligeira
inconveniência. Em uma vida regulada por mercados consumidores, as pessoas
passaram a acreditar que, para cada problema, há uma solução. E que esta
solução pode ser comprada na loja. Que a tarefa do doente não é tanto usar sua
habilidade para superar a dificuldade, mas para encontrar a loja certa que
venda o produto certo que irá superar a dificuldade em seu lugar. Não foi
provado que essa nova atitude diminui nossas dores. Mas foi provado, além de
qualquer dúvida razoável, que a nossa induzida intolerância à dor é uma fonte
inesgotável de lucros comerciais. Por essa razão, podemos esperar que essa nossa
intolerância se agrave ainda mais, em vez de ser atenuada.
E a
obsessão pelo corpo perfeito?
Não
é o ideal de perfeição que lubrifica as engrenagens da indústria de cosméticos,
mas o desejo de melhorar. E isso significa seguir a moda atual. Todos os
aspectos da aparência corporal são, atualmente, objetos da moda, não apenas o
cabelo ou a cor dos lábios, mas os tamanhos dos quadris ou dos seios. A
“perfeição” significaria um fim a outras “melhorias”. Na cirurgia plástica, são
oferecidos aos clientes cartões de “fidelidade”, garantindo um desconto nas
sucessivas cirurgias que eles certamente irão realizar. Assim como a indústria
de celebridades, a indústria cosmética não tem limites e a demanda por seus
serviços pode, a princípio, se expandir infinitamente.
O
que está por trás desse culto às celebridades?
Não
é só uma questão de candidatos a celebridades e seu desejo por notoriedade. O
que também é uma questão é que o “grande público” precisa de celebridades, de
pessoas que estejam no centro das atenções. Pessoas que, na ausência de
autoridades confiáveis, líderes, guias, professores, se oferecem como exemplos.
Diante do enfraquecimento das comunidades, essas pessoas fornecem
“assuntos-chave” em torno dos quais as quase-comunidades, mesmo que apenas por
um breve momento, se condensam —para desmoronar logo depois e se recondensar em
torno de outras celebridades momentâneas. É por isso que a indústria de
celebridades está garantida contra todas as depressões econômicas.
Como
fica o futuro nesse contexto de constantes mudanças?
Nossos
ancestrais eram esperançosos: quando falavam de "progresso", se
referiam à perspectiva de cada dia ser melhor do que o anterior. Nós estamos
assustados: “progresso”, para nós, significa uma constante ameaça de ser
chutado para fora de um carro em aceleração. De não descer ou embarcar a tempo.
De não estar atualizado com a nova moda. De não abandonar rapidamente o
suficiente habilidades e hábitos ultrapassados e de falhar ao desenvolver as
novas habilidades e hábitos que os substituem. Além disso, ocupamos um mundo
pautado pelo “agora”, que promete satisfações imediatas e ridiculariza todos os
atrasos e esforços a longo prazo. Em um mundo composto de “agoras”, de momentos
e episódios breves, não há espaço para a preocupação com “futuro”. Como diz um
outro provérbio inglês: “Vamos cruzar essa ponte quando chegarmos a ela”. Mas
quem pode dizer quando (e se) chegar e em que ponte?
O
que o sr. diria ao jovens?
Eu
desejo que os jovens percebam razoavelmente cedo que há tanto significado na
vida quando eles conseguem adicionar isso a ela através de esforço e dedicação.
Que a árdua tarefa de compor uma vida não pode ser reduzida a adicionar
episódios agradáveis. A vida é maior que a soma de seus momentos.
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Fonte: http://www.istoe.com.br/
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