domingo, 11 de maio de 2014

Nas incertezas dos cumes da vivência

O Viajante sobre o Mar de Névoa, de Caspar David Friedrich 

Leont Etiel
Ser quem não é, pode alguém ser? A dúvida cantada pelo lusitano Sérgio Godinho alcança estatuto ontológico que, no versado e no seu inverso, é razão de incerteza sobre o devir.
A propósito, as atiladas páginas que a pena de Júlio Dinis fez vir a lume, em Uma Família Inglesa, anda a braços com uma inquietação ontológica semelhante. O lado “não  eu do eu” que somos como persona pública. Há uma parte oculta do nosso mundo interior, e - para desespero dos manuais de autoajuda - sempre inacessível a olhos outros, onde se refugiam muitos segredos do eu para o eu, segredos dos quais possivelmente nós próprios nos inquietaríamos se os nossos lábios ousassem dizê-los.  Mas eles não ousam. Assim, tais segredos são observados em operações mentais breves, mediante os incontroláveis movimentos do pensamento. Ao se perceber que eles são avistados, logo se procura fazer com que o pensamento deambule por outras paragens.
E há motivos para esse desvio, pois há perfumes tão sutis que, uma vez abertos os vasos que os contêm, quase instantaneamente eles se dissipam pela atmosfera. Fogem ao controle de quem abriu os vasos. Por isso, a prosa dinisiana é categórica: guarde cada um para si essa parte do pensamento, que não pode separar-se de nós sem que nós próprios a desconheçamos. Suposições que alimentam o nosso pensamento, por vezes, podem revelar-se tão-somente ideias infundadas. Não nasceram senão para viver presas à alma, de cuja essência elas parecem receber vida.
Quer dizer, são como delicadas algas marinhas cuja textura tenuíssima se expande na água em formosas arborizações iludindo as esperanças dos que, enamorados de tanta beleza, as arrancam de lá. Fora do ambiente em que vivem, cedo, antes de se fazer noite, mirram e deformam.
É necessário ir muito além da beleza momentânea, até porque os infortúnios e misérias da vida advêm muitas vezes não da funesta influência do “mal”, de forma unilateral, mas do “belo imediato”, do encontro de vontades. Um “mal unilateral” pode ter lá as suas dificuldades para consumar os seus propósitos, se encontrar resistência. No alto mar, um vento dominante pode governar o movimento e a derrota de um navio, mas é necessário que seja extrema a sua violência para que ele, por si só, faça soçobrar. Contudo, penetre o vaso mais potente no seio desses redemoinhos que formam os ventos encontrados, e a submersão será quase inevitável. Nos ventos de determinados encontros, as tempestades se originam.   
Terminemos regressando ao princípio. Alguém ser quem não é. Trata-se de uma vivência intrínseca ao mundo interior de cada um. O cerne, a subjetividade, de pronunciar e praticar o interdito. Inquietação ontológica nos vislumbres da existência. Nos cumes da vivência, a resposta encontrada. Em suma, do si para si, a palavra de Fernando Pessoa: És feliz porque és assim/todo o nada que és teu/eu vejo-me e estou sem mim/conheço-me e não sou eu.  

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