O Viajante sobre o Mar de Névoa, de Caspar David Friedrich |
Leont Etiel
Ser
quem não é, pode alguém ser? A dúvida cantada pelo lusitano Sérgio Godinho
alcança estatuto ontológico que, no versado e no seu inverso, é razão de incerteza
sobre o devir.
A
propósito, as atiladas páginas que a pena de Júlio Dinis fez vir a lume, em Uma Família Inglesa, anda a braços com
uma inquietação ontológica semelhante. O lado “não eu do eu” que somos como persona pública. Há uma parte oculta do nosso mundo interior, e -
para desespero dos manuais de autoajuda - sempre inacessível a olhos outros,
onde se refugiam muitos segredos do eu para o eu, segredos dos quais possivelmente
nós próprios nos inquietaríamos se os nossos lábios ousassem dizê-los. Mas eles não ousam. Assim, tais segredos são
observados em operações mentais breves, mediante os incontroláveis movimentos
do pensamento. Ao se perceber que eles são avistados, logo se procura fazer com
que o pensamento deambule por outras paragens.
E
há motivos para esse desvio, pois há perfumes tão sutis que, uma vez abertos os
vasos que os contêm, quase instantaneamente eles se dissipam pela atmosfera.
Fogem ao controle de quem abriu os vasos. Por isso, a prosa dinisiana é
categórica: guarde cada um para si essa parte do pensamento, que não pode
separar-se de nós sem que nós próprios a desconheçamos. Suposições que
alimentam o nosso pensamento, por vezes, podem revelar-se tão-somente ideias
infundadas. Não nasceram senão para viver presas à alma, de cuja essência elas
parecem receber vida.
Quer
dizer, são como delicadas algas marinhas cuja textura tenuíssima se expande na
água em formosas arborizações iludindo as esperanças dos que, enamorados de
tanta beleza, as arrancam de lá. Fora do ambiente em que vivem, cedo, antes de
se fazer noite, mirram e deformam.
É
necessário ir muito além da beleza momentânea, até porque os infortúnios e
misérias da vida advêm muitas vezes não da funesta influência do “mal”, de
forma unilateral, mas do “belo imediato”, do encontro de vontades. Um “mal unilateral”
pode ter lá as suas dificuldades para consumar os seus propósitos, se encontrar
resistência. No alto mar, um vento dominante pode governar o movimento e a
derrota de um navio, mas é necessário que seja extrema a sua violência para que
ele, por si só, faça soçobrar. Contudo, penetre o vaso mais potente no seio
desses redemoinhos que formam os ventos encontrados, e a submersão será quase
inevitável. Nos ventos de determinados encontros, as tempestades se originam.
Terminemos
regressando ao princípio. Alguém ser quem não é. Trata-se de uma vivência
intrínseca ao mundo interior de cada um. O cerne, a subjetividade, de
pronunciar e praticar o interdito. Inquietação ontológica nos vislumbres da
existência. Nos cumes da vivência, a resposta encontrada. Em suma, do si para
si, a palavra de Fernando Pessoa: És
feliz porque és assim/todo o nada que és teu/eu vejo-me e estou sem mim/conheço-me e não sou eu.
Nenhum comentário:
Postar um comentário