sexta-feira, 16 de maio de 2014

Melancolia e a dupla luz da noite romântica

O livro Revolta e Melancolia: o Romantismo na Contramão da Modernidade, de Michael Löwy e Robert Sayre, já comentado neste espaço, começa a ganhar contornos de um clássico. Prova disso é a quantidade de recensões feitas a seu respeito. Sempre estamos a nos deparar com mais uma. A dupla luz da noite romântica a cintilar. Abaixo, reproduzo a recensão da obra feita pelo Prof. Elias Thomé Saliba, do Departamento de História (USP).  


Révolte et mélancolie
Edição original, em francês, da obra de Löwy e Sayre - a tradução brasileira foi publicada pela Editora Vozes 

 Elias Thomé Saliba

Num pequeno principado de clima ameno e agradável, um jovem soberano chamado Paphnutius decidiu instituir, por decreto, o iluminismo: mandou "derrubar as florestas, tornar os rios navegáveis, cultivar batatas, construir estradas e vacinar contra a varíola". Mas, para que tal decreto se efetivasse, decidiu, após os conselhos do seu ilustrado ministro, "expulsar do reino as fadas, essas inimigas do espírito iluminista que se ocupavam perigosamente do maravilhoso e propagavam, sob o nome de poesia, um veneno secreto que tornava as pessoas absolutamente inaptas para o serviço do iluminismo". Nem é preciso dizer que, apesar de todas as preocupações, as fadas continuaram a frequentar o principado e a propagar o seu veneno secreto.

Esta fábula contida na novela satírica "O Pequeno Zacharias", escrita em 1820, por Hoffmann, é expressiva dos impasses, dificuldades e ambiguidades da visão romântica. Este é o tema do livro "Revolta e Melancolia", de Michael Lowy e Robert Sayre.
No meio do vale-tudo das inúmeras tentativas de definição do romantismo, o livro já tem o mérito de sugerir um conceito que, sem ser arbitrário, é pelo menos altamente seletivo. Já que o romantismo não corresponde às categorias habituais, sejam filosóficas (racionalismo/empirismo/idealismo), sejam políticas (esquerda/direita, conservadores/liberais, progressistas/reacionários) -ele acaba por deslizar através das malhas conceituais das ciências humanas, permanecendo como uma espécie de continente esquecido das humanidades.
Para além destas polarizações, sempre superficiais, o romantismo é definido como aquela vasta paisagem cultural que implicou na elaboração da primeira e talvez mais profunda "autocrítica da modernidade". A sensibilidade romântica é, na sua essência, uma crítica da modernidade, isto é, da civilização capitalista moderna, em nome de valores e ideais do passado. Mas, felizmente, os autores não ficam apenas nesta definição abstrata. Inspirados no fascínio romântico pela noite, que os escritores e poetas românticos opunham àquele emblema clássico do racionalismo que era a luz, Lowy e Sayre conduzem os leitores a uma longa e erudita viagem, cujo título tomam emprestado da conhecida metáfora de Gérard de Nerval: a noite romântica é iluminada pela dupla luz da estrela da revolta e do "sol negro da melancolia".
O roteiro da viagem é definido a partir de certas características da modernidade que pareciam insuportáveis à sensibilidade romântica: o desencantamento, a quantificação e a mecanização do mundo, a abstração racionalista e a dissolução dos vínculos sociais.
Definido este roteiro, a viagem começa pela gênese do romantismo, com Novalis e Schlegel, Byron e Coleridge, Stendhal e Michelet, cujas obras expressavam a desagregadora experiência da perda, a nostalgia melancólica por aquilo que foi perdido mas, sobretudo, uma forte recusa da realidade social presente. A viagem prossegue por uma breve excursão teórica sobre a sensibilidade romântica em Marx, Rosa Luxemburgo e Lukács. Segue apontando facetas dispersas do romantismo no século 20: no socialismo místico de Charles Péguy, no "sonho acordado" de Ernst Bloch, no esforço de "reencantamento" do mundo em André Breton e nos surrealistas, na crítica da cultura burguesa em Henri Lefèbvre e Marcuse, nas turbulências estudantis de maio de 1968.
Inspirando-se em Karl Polanyi, os autores procuram mostrar que o princípio de base, que constituiu a ruptura sem precedentes operada pela instauração da modernidade capitalista, permaneceu intacto no nosso século: a dominação da sociedade pela "economia" sob a forma do onipotente valor da troca. Assim, ainda hoje existiria um inconsciente romântico, discernível nos grandes temas da crítica da cultura moderna. Mesmo naquelas sociedades nas quais vingou o "socialismo real", as fadas românticas continuaram a destilar o secreto veneno da crítica, pois estas sociedades não fizeram mais do que transferir, sob outras formas -não raro, mais perversas- a maioria das características essenciais da modernidade capitalista. Solidão dos indivíduos, desenraizamento social e cultural, dinâmica incontrolável da tecnologia, degradação da natureza, ausência de eixos éticos e históricos -eis o novo canteiro das fadas românticas.
Apesar de alguns exageros em querer enxergar romantismo somente naquilo que seria anticapitalista, os autores mostram que a viagem romântica não terminou. Num momento em que todo o tecido da vida social foi invadido pela economia e desagregou-se; que o frenesi do instantâneo, da obsessão da velocidade e da obsolescência instalam-se com a modernização, criando um conflito cada vez mais intenso com os ritmos profundos da atmosfera e da biosfera -a sensibilidade romântica renova sua impaciência com a lógica da modernidade, assumindo a sua forma mais característica: a utopia, a busca "do que não existe ainda em nenhum lugar". Não se trata mais de abolir a tecnologia e o maquinismo, mas de submetê-los a uma outra lógica social, de reestruturá-los e planificá-los em função de critérios que não apenas os da circulação de mercadorias e do mercado.
O que temos, por fim, é um guia refinadamente libertário da sensibilidade romântica, da sua perplexidade perpétua, do seu inacabamento melancólico e do seu potencial de rebeldia - impossíveis de se ignorar nesta atmosfera de declínio da crítica. 

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