Aí abaixo você tem uma entrevista com Manuel Jacinto Sarmento, Pesquisador do Instituto de Estudos da Criança da Universidade do Minho/Portugal, e, inegavelmente, uma referência no campo da sociologia da infância. Há já um bom tempo a compreensão do universo das crianças assimilou o contributo sociológico.
Manuel Jacinto Sarmento: olhares da sociologia da infância |
É possível definir um tipo de infância?
Essa questão é controversa e muito debatida por
diferentes autores. Alguns dizem que é necessário falar da infância no singular
para tratá-la como categoria social. Os sociólogos que trabalham com essa visão
se preocupam com indicadores sociais de demografia ou de economia e também de
natureza simbólica. Na demografia, procura-se perceber de que modo o grupo
infantil estabelece relações de porcentagem com outros agrupamentos
populacionais e quais são os diferentes espaços que ocupam na sociedade. Do
ponto de vista econômico, entende-se que as crianças, com exceção daquelas
vinculadas ao trabalho infantil, se caracterizam por não participar da economia
e, por isso, não são importantes como classe econômica. No simbólico, as
concessões que existem traduzem-se nos modos de agir dos adultos em relação às
crianças. Há também os sociólogos que trabalham na base interpretativa ou
crítica, que tendem a encontrar e pluralizar as formas de infância. Consideram
que a ação caracteriza a categoria pelos desempenhos coletivos e individuais,
que são atravessados pelos gêneros, pelas classes sociais, pelas etnias, pelas
diferenças que dizem respeito ao espaço no mundo e tendem a enfatizar que
existem várias infâncias.
E qual é o seu entendimento sobre a infância?
Não é possível dizer que há uma única infância.
Necessitamos articular as concepções para perceber o que é comum a todas as
crianças. Na minha opinião, ela deve ser percebida como um grupo geracional,
distinto do mundo adulto. As crianças são diferentes umas das outras e, nessa
diversidade, há fatores sociais acentuados, que não são puramente individuais.
Por exemplo, há elementos comuns por uma parte de tempo de suas vidas, pois
vivem sob a guarda de responsáveis, já que não são capazes de ficarem sozinhas.
No entanto, isso mudou ao longo do tempo. A independência delas tem sido
retardada em relação ao que ocorria há 20 anos. A entrada no mercado de
trabalho se dava mais cedo e, por isso, ficavam longe da guarda de seus pais
precocemente.
Como a infância tem sido interpretada pelos adultos?
Vivemos em um tempo em que há uma coincidência de
várias concepções - desde que a criança deve ser submetida a processos
rigorosos de controle de autoridade até a que ela, sendo um ser de direito,
precisa ser respeitada na sua autonomia. Essas representações são bem
diferenciadas e acompanham a história da humanidade nos últimos 250 anos. É
possível dizer que há dois polos. Um deles é que a criança é um ser irracional
e imoral e, por isso, deve ser submetida a processos de racionalização e
moralização, que acontecem pela educação, seja familiar ou escolar. A outra
concepção é que a criança é naturalmente boa e que, para educá-la, basta
sustentar e apoiar seu desenvolvimento. Vale ressaltar que essas compreensões
são produzidas, principalmente, na sociedade ocidental e disseminadas pelo
mundo. É preciso que todos saibam que existem infâncias diferentes. No Brasil,
por exemplo, há comunidades indígenas em que só se deixa de ser criança ao se
tornar pai ou mãe.
Como o docente pode chegar mais perto do que as crianças
pensam para estabelecer uma comunicação mais adequada?
A escola foi edificada com base em um modelo
cognitivo, ou seja, um entendimento de homem, de sociedade, de cultura e de
criança, que sempre formou os educadores. A instituição escolar é pensada como
um lugar de transmissão de cultura para um sujeito que está inserido na
sociedade e em processo de transição. A passagem pela escola serve para que
isso seja garantido. Ela está centrada na comunicação, portanto, no poder do
adulto sobre a criança, pois se supõe que os pequenos são seres em
desenvolvimento e passam por várias etapas. No entanto, os estudos da criança
têm dito, há 20 anos, de maneira muito enfática, que elas necessitam ser
conhecidas em sua verdadeira realidade. Não há linearidade e nem teleologia que independam de contexto e
também de circunstância em que se encontram os pequenos. Precisamos trabalhar
em uma renovação na concepção que forma os professores, pois eles decidem o
trabalho nas escolas.
Quais são os danos para as crianças mais afastadas
culturalmente da escola?
Elas reagem desenvolvendo estratégias de
sobrevivência, como abandonar a escola precocemente e procurar sentido para a
vida fora desse espaço. Isso nada mais é que uma atitude de resistência. O
indivíduo encontra satisfação e referência pessoal no contato com amigos e
vizinhos e, por isso, passa a criar aspirações e expectativas compatíveis com
essas motivações. No entanto, é importante destacar que há benefícios mesmo
quando há danos, pois essas crianças encontram duas coisas fundamentais na
escola: um espaço público e de convivência. No primeiro caso, elas são
reconhecidas como membros de uma sociedade, o que é simbolicamente importante.
No segundo, é fundamental conviver com outras crianças e poder desenvolver as
culturas de pares. É claro que pode haver outros benefícios, mas isso depende
da capacidade que a escola tem de gerir sua autonomia e de ir ao encontro dos
que estão mais afastados de sua cultura, promovendo relações, produzindo seu
conhecimento a partir do que se percebe e, nessas circunstâncias, poder lidar e
gerir mais adequadamente o abandono, se ele acontecer.
O senhor defende que as crianças participem de maneira ativa
na vida social. De que maneira?
A participação da criança na sociedade é um
elemento novo que está expresso no documento A Convenção sobre os Direitos da
Criança, das Nações Unidas, de 1989, em que se consagrou a ideia de que a
criança não pode ser ignorada em sua opinião sobre os aspectos que lhe dizem
respeito, atendendo à capacidade que ela tem de exprimir a própria opinião. Sua
participação social significa que o conhecimento que ela tem deve ter voz, deve
ser auscultada e deve ter efeito, ou seja, influenciar seu modo de vida.
Atualmente há um movimento nas cidades amigas da criança, cujo eixo central é
ouvi-las na formulação de políticas públicas no que diz respeito ao mobiliário,
ao equipamento, à mobilidade, à programação de atividades etc. Elas deveriam
ser ouvidas também politicamente e isso não tem a ver com o fato de ter direito
a voto, ainda que não seja uma ideia não instrumentada. Isso acontece em alguns
grupos sociais. Em uma comunidade indígena brasileira, por exemplo, sempre que
há um assunto importante, todos se reúnem em assembleia e têm direito de
exprimir opinião. A decisão cabe aos mais velhos, mas sempre depois de ouvir a
todos. Inclusive, as mulheres grávidas podem falar duas vezes porque é
considerado o filho que se desenvolve no seu ventre. Isso é a ruptura com um
modelo mental do nosso tempo em que a criança não tem participação política
porque não fala.
Como funcionaria na prática?
Trata-se de criar dispositivos institucionais para
auscultação das vozes das crianças por meio de inquéritos de opinião, caixas de
sugestões, linhas de comunicação - seja telefônica ou pela internet - e
realização de processos de audição. Isso pode, em alguns casos, nomear
representantes dos grupos infantis organizados com seus conselhos para serem
ouvidos. É um modelo que reproduz as democracias ocidentais. Essa atitude
necessita ser permanente, não pode se esgotar no dia a dia e precisa de
dimensão mais profunda, seja na escola, na cidade ou na família. Há vários
municípios que desenvolvem atividades e projetos assim. Os mais conhecidos são
os de algumas cidades italianas.
Muitos produtos direcionados ao público infantil são feitos
por adultos e, inclusive, carregam os valores do mundo adulto. De que maneira
isso influencia a vida das crianças?
Na cultura industrial, em que os conteúdos e os
produtos são feitos pelos adultos para o consumo infantil, nunca se deixa de
reproduzir os estereótipos do mundo adulto. Walt Disney, por exemplo, tem uma
produção cultural própria de grande difusão com conceitos e valores
identificados como patriarcais, paternalistas, conservadores, que revelam
padrões de uma família ocidental em que raras vezes se encontram
modelos diferentes dos anglo-saxônicos. Essas produções também são
formas culturais influentes e com muita capacidade de atração. Isso se deve ao
fato de elas jogarem na dimensão da ficcionalidade, que é importante na cultura
da infância, ou seja, na transposição imaginária do real e da ludicidade.
Alguns estudos têm mostrado que há uma grande homologia entre os movimentos
imaginários dos adultos e os das crianças na produção da indústria cultural
infantil e que essa relação vai acompanhando o fluxo dos tempos.
O senhor afirma, em seus estudos, que as crianças são
produtoras de cultura. Como é possível, se elas são influenciadas pelos adultos?
As crianças não estão sob a tutela dos adultos o
tempo todo. Elas sofrem processos de socialização na relação com os pais, as
famílias, os vizinhos e os professores, mas também se envolvem socialmente com
seus pares. Nas brincadeiras e nos jogos, seja em tempo real ou virtual. Isso é
comum e importante. Mesmo atravessadas pelos adultos, elas produzem culturas
próprias. É comum atribuir ao adulto o título de produtor cultural, mas é
importante ressaltar que eles também são atravessados pelas culturas que
herdaram. Não há diferença sobre a condição do adulto como produtor cultural e
a da criança. O pintor Pablo Picasso, por exemplo, foi um produtor cultural
revolucionário, que alterou muito a cultura ocidental e fez muitas relações com
as quais convivia. Produção cultural, mesmo quando genial, é sempre feita na
relação. É importante que as crianças produzam a própria cultura nas condições
que têm para fazer isso.
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Fonte: http://revistaeducacao.uol.com.br/textos/161/artigo234827-1.asp
Gostei!
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