Era um fim de tarde de Primavera, na cidade do Porto/Portugal, quando concedi a entrevida abaixo. O Porto, o Porto, cidade pela qual tenho muito apreço - por seu panorama histórico, o título de Capital Europeia da Cultua, em 2001, fez-lhe justiça.
É conhecido, ao fim e ao cabo, por ter uma formação interdisciplinar em teoria social e na área das humanidades, deambulando com propriedade pelos mais diversos campos intelectuais. Como define a sua formação?
Ivonaldo Leite: Eu venho de longe [tom de riso]. Penso que algumas referências intelectuais que adquiri na adolescência me acompanham até hoje. Ali entre os 15 e 16 anos, eu tomei contacto com o existencialismo e me acompanhei de leituras do movimento romântico-surrealista. E aderi ao marxismo alternativo. Deste, desde muito cedo, aprendi que o que importa é entender o todo, e daí há que se pôr de lado a fragmentação disciplinar. Depois, ao ler A Ideologia Alemã, marcou-me fortemente a seguinte afirmação de Marx e Engels: ‘só reconhecemos uma ciência, a ciência da História’. Então, para quem anda sob os impulsos juvenis, a História passa a ser o grande farol. E assim, inicialmente, comecei por estudar História, nomeadamente História Econômica e Social. Depois, mudei para a Sociologia.
E a sua juventude agora, fala como se fosse alguém que passou da casa do cinquentenário? Ou será que fez muito cedo o que geralmente as pessoas fazem mais tarde?
Ivonaldo Leite: Ora bem, estou na casa dos 41 anos. Mutatis mutandis, conservo muito das convicções de antes. Continuo achando que o surrealismo é a cauda da visão romântica do mundo. E da dialética marxista que ‘o que importa é o todo’, assim como tendo presente o axioma segundo o qual ‘se aparência e essência fossem a mesma coisa, a ciência seria desnecessária’. Sim, é possível que me tenha adiantado a fazer coisas que geralmente as pessoas só a elas chegam em idade mais avançada.
Retornando à sua formação, então tornou-se sociólogo?
Ivonaldo Leite: Pois então, como no mundo, o que me sinto mesmo, do ponto de vista académico, é um desenraizado. De facto, com a pós-graduação, a dimensão sociológica tornou-se uma componente acentuada em minha formação, bem como as ciências da educação, o diálogo com a pedagogia. Prefiro dizer, no entanto, que não há como estabelecer fronteiras fixas entre as ciências humanas. Elas tratam da mesma coisa, a vida social do ser humano, o seu fazer quotidiano, suas expectativas, tristezas e esperanças. Os sinos dobram, e a teoria social quer compreender esse dobrar. Mesmo que seja, como diz Fernando Pessoa, dolente na tarde calma, pois esse dobrar é sempre um dobrar na alma humana. That’s it.
Mudando um bocadinho, e sua relação com Portugal?
Ivonaldo Leite: Data de treze anos. Cinco vivendo permanentemente e oito em estadias anuais.
Algum laço, além dos académicos?
Ivonaldo Leite: Bom, numa relação tão longa, cria-se um vínculo que extrapola o profissional, estabelecendo-se então ligações afectivas. Tenho um razoável conjunto de amigos e amigas em Portugal. Mas, há um elemento que antecede a tudo isso, de natureza familiar. O meu bisavô paterno é de uma quarta ou quinta geração de portugueses que chegou a Pernambuco, rumou do litoral até o agreste do estado e se fixou na região de uma cidade hoje chamada Pesqueira, que, na época, abrigava uma espécie de instância administrativa da metrópole portuguesa, o Senado da Câmara de Cimbres. Pois bem, lá se estabeleceu num naco de terra e fez família com uma morena da serra, expressão que designava as caboclas indígenas da região. Dele herdei o sobrenome Leite, que é originário do Norte de Portugal. Então quando estava para fazer o doutoramento, tinha duas opções, uma era os Estados Unidos (Universidade da Califórnia) e a outra era a Universidade do Porto. Não pensei muito, cruzei o Atlântico e aportei em território luso.
Com esse histórico, por que então não se estabeleceu em definitivo em Portugal?
Ivonaldo Leite: Não há resposta monocausal para isto.
Também é conhecido pelo professor que mais muda de universidade, mas, pelo que tomamos nota, esteve à volta com um projecto de saúde coletiva na Universidade Federal de Pernambuco, com interlocução com a Universidade de Coimbra. Do que se trata?
Ivonaldo Leite: Já não mais estou ligado à UFPE. Mas, de facto, o Projeto foi levado a cabo. Bom, a saúde colectiva é um campo que agrega as ciências da saúde e as abordagens da teoria social, nomeadamente o background da história, sociologia e antropologia. Na verdade, isso é algo que vem de longe, quando lembramos, por exemplo, o trabalho clássico de Durkheim sobre o suicídio. Ou seja, em muitos casos, o suicídio terá pouco a ver com perspectivas médicas, e mesmo psicológicas. A tipologia durkheimiana é suicídio egoísta, altruísta e por anomia. As sociedades modernas, embebidas de urbanismo das tecnologias, de consumismo e do isolamento dos prédios, etc.,são tomadas por isso. De resto, no que toca à teoria social, importa entender questões como a construção social do corpo, os determinantes estruturais dos ambientes de saúde/doença, o caráctar das políticas públicas, etc.
O que pensa da dinâmica de pequenos grupos em saúde pública?
Ivonaldo Leite: É um objecto de estudo que merece atenção. Em determinados casos, parece-me que o problema em foco passa a ser construído socialmente como parte permanente da identidade da pessoa.
Como assim?
Ivonaldo Leite: Veja-se o caso de grupos como os alcoólicos anónimos. Por exemplo, a pessoa não bebe há quarenta anos, mas repete permanentemente que é alcoólatra, que é doente. Ou seja, o problema, sociologicamente falando, passou a compor o núcleo da sua identidade. Tenho dúvidas se há pertinência nisso.
Nas suas criações literárias, temas como o devir e o deambular do tempo são centrais. O que dizer do existir?
Ivonaldo Leite: Da minha parte, o de sempre: a existência precede a essência, com todas as decorrências aí pressupostas. A luz para transpor a grande insónia do mundo é cintilada não por metafísicas essencialistas, mas pelo existir em mutação. O encontro com o estar bem na vida, com prazer, deambula pelo inverso da acomodação e da rotina. É preciso imaginar Sísifo feliz.
E lendo a entrevista vejo que quanto mais eu me afasto da área da saúde, mais você se aproxima dela. Estarei eu para o caminho certo??
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