domingo, 18 de dezembro de 2011

Dialética das ciências sociais: A vida perante o inverso (e o perverso) do real

Escrevi o artigo abaixo para o Jornal (agora Revista) A Página da Educação/Portugal, nº 179. Trata de alguns dos dilemas que, sobretudo no Brasil, as ciências sociais precisam superar. 
Por Ivonaldo Leite 
O que são as ciências sociais? Esta pergunta, nalgumas realidades, recebe desde logo uma resposta bastante simplista: é a sociologia, a ciência política e a antropologia, visto que existe até mesmo um curso, sob tal denominação, agregando a tríade, como ocorre no caso brasileiro.
Todavia, ao se realizar uma espécie de “privatização” da abordagem sobre o social pelas três disciplinas referidas, não só se comete um grave equívoco analítico como se difunde um entendimento que padece de alguns problemas. Primeiro, por a  delimitação de territórios da sociologia, ciência política e antropologia se apoiar na distinção entre ciência nomotética e idiográfica, continua-se a pagar tributo à concepção positivista de ciência. Ou seja, procura-se fundamentar a existência dessas disciplinas -  de modo nomotético - no mesmo estatuto epistemológico das ciências naturais: trata-se de uma busca de aproximação entre o social e o natural, apoiando-se na quantificação, no controle estatístico e de variáveis, etc., como forma de gerar conhecimentos e leis universais.  Ora, por mais que se admita a utilização da quantificação/estatística no campo de estudos sobre o social, sabe-se hoje, com consistente segurança (após a devastadora crítica ao positivismo), que é imprópria a generalização no aludido campo dos métodos/procedimentos da esfera das ciências naturais, pois são dois âmbitos científicos com objetos diferentes: um diz respeito ao físico e o outro ao humano, que é detentor de subjetividades e não é passível de, inertemente, ser manipulado em laboratório.  
O segundo problema de que padece a “privatização” da abordagem sobre o social pelas três disciplinas em questão diz respeito ao que a constituição delas significou. Sinto-me até constrangido em repisar o óbvio, mas se faz necessário: todas as ciências têm uma história, e é essa historicidade que mostra que as ditas ciências sociais surgem, como bem realça Carlos Nelson Coutinho, quando, com a ascensão da modernidade capitalista, ocorre o eclipse da reflexão totalizante sobre o social, emergindo então uma fragmentação disciplinar que posteriormente forneceu etiqueta aos vários departamentos universitários que, ao estabelecerem os territórios do conhecimento na universidade, são responsáveis, como se sabe, pelas “posses cognitivas”. Antes da mencionada ascensão, de Nicolau de Cusa a Hegel, o princípio da totalidade era característico do pensamento social. Figuras, por exemplo, como Spinoza, Rousseau e Kant refletiram sobre a totalidade da vida social, quer dizer, refletiram sobre temas que hoje são “propriedades” da ciência política, da antropologia e da sociologia. Em verdade, eles estavam preocupados era com a compreensão da totalidade do ser social, e não com as suas partes específicas. Por que ocorreu o eclipse da reflexão totalizante sobre o social?
Talvez tenha sido Georgy Lukács, no clássico A Destruição da Razão, quem mais acuradamente se empenhou em aportar uma resposta à referida questão. Sintetizando a sua dérmarche, pode-se dizer que ele mostra, de maneira categórica, que o eclipse da reflexão sobre a totalidade social e a consequente difusão da fragmentação disciplinar resultam de uma necessidade da emergente sociedade capitalista como forma de ela reproduzir sistemicamente um padrão societal reificado. Mesmo admitindo-se que o grau de ‘complexificação’ do mundo social, evolutivamente oriundo da modernidade, demanda atenção epistemológica específica para os seus diversos níveis, o argumento de base de Lukács mantém-se.  
Last but not least, o terceiro problema de que padece a “privatização” da abordagem sobre o social pela sociologia, ciência política e antropologia, a partir de uma perspectiva nomotética, diz respeito às consequências educacionais, isto é, ao aprendizado que o ensino delas gera. Dois exemplos ilustrativos: 1) a não-realização da necessária diferenciação entre as focagens sobre o mundo físico-natural e o mundo social; 2) a promoção da fragmentação disciplinar e das disputas teóricas, por vezes alimentadas pela imprópria ideia de que determinadas categorias dão conta de toda a realidade, como se, diante da ‘complexificação’ da vida social, um único enfoque tivesse, digamos assim, esse “poder demiúrgico”. De resto, esta é uma postura paradoxal, sobretudo, quando consideramos que vivemos num tempo em que cada vez mais se fala em inter/multi/transdisciplinaridade.
Não é fácil, entretanto, escapar aos impulsos de manifestação de imperialismo dos campos científicos. Mesmo Marx, que deu expressão material à totalidade dialética hegeliana, não esteve imune a isso. A este respeito, é conhecida a sua expressão em A Ideologia Alemã: “Quanto a nós, só reconhecemos uma ciência, a ciência da História”. É certo que ele estava a conceber a História como totalidade dos fenômenos materiais, mas parece uma compreensão um tanto excessiva.
Há que se concluir, portanto, que a afirmação ontológica das ciências sociais, no Brasil, tem uma dupla perspectiva: descentrar o postulado nomotético do seu estatuto e ampliar o seu corpo, pondo sob sua rubrica, como já tem ocorrido em outros contextos, a história e a economia, por exemplo. Só assim elas legitimar-se-ão pelo que efetivamente são: probabilísticas, mas sem abrir mão de, objetivamente, mostrar que, em muitos casos, o que é apresentado como verdade o que faz é tão-somente reflectir de forma inversa – e, às vezes, perversa – partes do real. 


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