Por Marcelo Coelho
A pergunta já foi feita muitas vezes e continua legítima. Afinal de contas, por que razão tantos poetas modernos são difíceis de entender? Não seria possível fazer grandes poemas sem plantar enigmas e charadas em cada verso?
A pergunta já foi feita muitas vezes e continua legítima. Afinal de contas, por que razão tantos poetas modernos são difíceis de entender? Não seria possível fazer grandes poemas sem plantar enigmas e charadas em cada verso?
Depois de uma conferência, o poeta Paul
Valéry (1871-1945) teve de enfrentar esse tipo de contestação. Um ouvinte disse
que não entendia nada de seus versos e que os poetas do passado eram mais
inteligíveis.
Valéry sacou da manga do colete uma estrofe
de Victor Hugo (não sei qual era). O popularíssimo poeta romântico não tinha
por que ser considerado hermético. Mas Valéry pediu que alguém da plateia
explicasse os versos de Victor Hugo. Não houve quem conseguisse.
Golpe baixo, certamente. Uma coisa, por exemplo,
são metáforas arbitrárias, ou imagens que nos "tocam" sem que seja
possível dar razões específicas, do ponto de vista psicológico, para o efeito
que causaram.
Posso dizer que alguém tem "voz
aveludada" e serei compreendido. Não me peçam, contudo, para destrinchar
em detalhe a maneira com que uma impressão tátil se traduz em sensação
auditiva.
Outra coisa é crivar o poema de alusões
históricas ou literárias, que exigem no mínimo uma série de notas de rodapé. T.
S. Eliot (1888-1965), em "The Waste Land", teve o bom gosto, ou o mau
gosto, de prover ele próprio as notas para o poema; muitos escritores acham
mais elegante e divertido deixar essa tarefa para as gerações seguintes de
professores universitários.
Estou lendo uma seleção de poemas da polonesa
Wislawa Szymborska, prêmio Nobel de 1996, publicada não faz muito tempo pela
Companhia das Letras. Não é uma poesia "difícil". Tem a vantagem,
além disso, de tomar a questão da incompreensibilidade, do hermetismo, como um
de seus temas.
Szymborska (a tradutora informa que o nome se
pronuncia "Chembórska") descreve, com bom humor, uma leitura pública
de seus poemas. "Metade veio porque está chovendo,/ o resto é
parente."
Haveria mais público, ela comenta, se fosse
uma luta de boxe. Mas na plateia existe um velhinho, viúvo, sonhando que sua
mulher volta para fazer na cozinha um bolo com passas. "Com fogo, mas não
alto, para o bolo não queimar,/ começamos a leitura", conclui Szymborska.
A ideia é justamente essa: assar um bolo
inexistente, suprir uma necessidade imaginária. Mas a fogo baixo, porque é
assim, aos poucos, que a imaginação trabalha.
O real, esse sim, vem de chofre, com luz
total, irrompe como uma explosão. Mas por isso mesmo, e até por um excesso de
realidade, cada coisa basta a si mesma.
O fato de ser "só uma coisa", de
não ter segredo nenhum, acaba sendo motivo para uma incompreensibilidade maior
do que a do mais obscuro poema.
Em outros versos, Szymborska interpela uma
pedra. "Bato à porta da pedra./ -Sou eu, me deixa entrar." A pedra se
mostra irredutível. "Sou hermeticamente fechada... Não vais entrar... Te
falta o sentido da participação."
Participar da pedra, participar do mundo, ser
uma coisa só com a paisagem, com os outros homens: esse vínculo cósmico,
anulando a distinção entre o dentro e o fora, entre nós mesmos e o mundo, é sem
dúvida a vocação de toda poesia.
Terá sido, quem sabe, o propósito de muitas
utopias políticas também -abolindo o individualismo em nome de uma
solidariedade universal. Em plena ditadura socialista, não é por acaso que
Szymborska reflita a experiência inversa -a da clausura, a da
incomunicabilidade.
Mostra, ademais, o horror de uma situação em
que tudo fosse transparente, cristalino, explicado e certo. "Ilha onde
tudo se esclarece./ Aqui se pode pisar no sólido solo das provas./ Não há
estradas senão as de chegada."
A autora prefere o caminho de volta. Escreve
sobre a história bíblica da mulher de Lot, transformada numa estátua de sal.
Sabe-se lá por que razão, ousara olhar para trás, contemplando Sodoma
destruída.
É que da janela, diz outro poema, "Há
uma bela vista para o lago/ mas a vista não se vê a si mesma./ Existe neste
mundo/ sem cor e sem forma,/ sem som, sem cheiro, sem dor./ Sem fundo o fundo
do lago/ e sem margem as suas margens./ Nem molhada nem seca a sua água".
Nesse abismo de objetividade total, não há
bolo com passas que se possa comer com proveito. Desde que se garanta um mínimo
de passas para todos.
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Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/20588-poesia-em-fogo-baixo.shtml
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