A lista é de já algum tempo, mas, como a sua atualidade tem sido sustentada, aqui vai: o veterano Antonio Cândido relaciona dez 'para conhecer o Brasil'. Indicações úteis sobretudo às novas gerações.
Por Antonio Cândido
Quando nos pedem para indicar um número muito limitado de livros
importantes para conhecer o Brasil, oscilamos entre dois extremos possíveis: de
um lado, tentar uma lista dos melhores, os que no consenso geral se situam
acima dos demais; de outro lado, indicar os que nos agradam e, por isso,
dependem sobretudo do nosso arbítrio e das nossas limitações. Ficarei mais
perto da segunda hipótese.
Como sabemos, o efeito de um livro sobre nós, mesmo no que se
refere à simples informação, depende de muita coisa além do valor que ele possa
ter. Depende do momento da vida em que o lemos, do grau do nosso conhecimento,
da finalidade que temos pela frente. Para quem pouco leu e pouco sabe, um
compêndio de ginásio pode ser a fonte reveladora. Para quem sabe muito, um
livro importante não passa de chuva no molhado. Além disso, há as afinidades
profundas, que nos fazem afinar com certo autor (e portanto aproveitá-lo ao
máximo) e não com outro, independente da valia de ambos.
Por isso, é sempre complicado propor listas reduzidas de leituras
fundamentais. Na elaboração da que vou sugerir (a pedido) adotei um critério
simples: já que é impossível enumerar todos os livros importantes no caso, e já
que as avaliações variam muito, indicarei alguns que abordam pontos a meu ver
fundamentais, segundo o meu limitado ângulo de visão. Imagino que esses pontos
fundamentais correspondem à curiosidade de um jovem que pretende adquirir boa
informação a fim de poder fazer reflexões pertinentes, mas sabendo que se trata
de amostra e que, portanto, muita coisa boa fica de fora.
São fundamentais tópicos como os seguintes: os europeus que
fundaram o Brasil; os povos que encontraram aqui; os escravos importados sobre
os quais recaiu o peso maior do trabalho; o tipo de sociedade que se organizou
nos séculos de formação; a natureza da independência que nos separou da
metrópole; o funcionamento do regime estabelecido pela independência; o
isolamento de muitas populações, geralmente mestiças; o funcionamento da
oligarquia republicana; a natureza da burguesia que domina o país. É claro que
estes tópicos não esgotam a matéria, e basta enunciar um deles para ver
surgirem ao seu lado muitos outros. Mas penso que, tomados no conjunto, servem
para dar uma ideia básica.
Entre parênteses: desobedeço o limite de dez obras que me foi
proposto para incluir de contrabando mais uma, porque acho indispensável uma
introdução geral, que não se concentre em nenhum dos tópicos enumerados acima,
mas abranja em síntese todos eles, ou quase. E como introdução geral não vejo
nenhum melhor do que O
povo brasileiro (1995),
de Darcy Ribeiro, livro trepidante, cheio de ideias originais, que esclarece
num estilo movimentado e atraente o objetivo expresso no subtítulo: “A formação
e o sentido do Brasil”.
Quanto à caracterização do português, parece-me adequado o
clássico Raízes do
Brasil (1936), de
Sérgio Buarque de Holanda, análise inspirada e profunda do que se poderia
chamar a natureza do brasileiro e da sociedade brasileira a partir da herança
portuguesa, indo desde o traçado das cidades e a atitude em face do trabalho
até a organização política e o modo de ser. Nele, temos um estudo de transfusão
social e cultural, mostrando como o colonizador esteve presente em nosso
destino e não esquecendo a transformação que fez do Brasil contemporâneo uma
realidade não mais luso-brasileira, mas, como diz ele, “americana”.
Em relação às populações autóctones, ponho de lado qualquer
clássico para indicar uma obra recente que me parece exemplar como concepção e
execução:História dos índios do Brasil (1992), organizada por Manuela Carneiro da Cunha e
redigida por numerosos especialistas, que nos iniciam no passado remoto por
meio da arqueologia, discriminam os grupos linguísticos, mostram o
índio ao longo da sua história e em nossos dias, resultando uma introdução
sólida e abrangente.
Seria bom se houvesse obra semelhante sobre o negro, e espero que
ela apareça quanto antes. Os estudos específicos sobre ele começaram pela
etnografia e o folclore, o que é importante, mas limitado. Surgiram depois
estudos de valor sobre a escravidão e seus vários aspectos, e só mais
recentemente se vem destacando algo essencial: o estudo do negro como agente
ativo do processo histórico, inclusive do ângulo da resistência e da rebeldia,
ignorado quase sempre pela historiografia tradicional. Nesse tópico resisto à
tentação de indicar o clássico O
abolicionismo (1883),
de Joaquim Nabuco, e deixo de lado alguns estudos contemporâneos, para ficar
com a síntese penetrante e clara de Kátia de Queirós Mattoso, Ser escravo no
Brasil (1982),
publicado originariamente em francês. Feito para público estrangeiro, é uma
excelente visão geral desprovida de aparato erudito, que começa pela raiz
africana, passa à escravização e ao tráfico para terminar pelas reações do
escravo, desde as tentativas de alforria até a fuga e a rebelião. Naturalmente
valeria a pena acrescentar estudos mais especializados, como A escravidão africana
no Brasil (1949), de
Maurício Goulart ou A
integração do negro na sociedade de classes (1964), de Florestan Fernandes, que
estuda em profundidade a exclusão social e econômica do antigo escravo depois
da Abolição, o que constitui um dos maiores dramas da história brasileira e um
fator permanente de desequilíbrio em nossa sociedade.
Esses três elementos formadores (português, índio, negro) aparecem
inter-relacionados em obras que abordam o tópico seguinte, isto é, quais foram
as características da sociedade que eles constituíram no Brasil, sob a
liderança absoluta do português. A primeira que indicarei é Casa grande e
senzala (1933), de Gilberto
Freyre. O tempo passou (quase setenta anos), as críticas se acumularam, as
pesquisas se renovaram e este livro continua vivíssimo, com os seus golpes de
gênio e a sua escrita admirável – livre, sem vínculos acadêmicos, inspirada
como a de um romance de alto voo. Verdadeiro acontecimento na
história da cultura brasileira, ele veio revolucionar a visão predominante,
completando a noção de raça (que vinha norteando até então os estudos sobre a
nossa sociedade) pela de cultura; mostrando o papel do negro no tecido mais
íntimo da vida familiar e do caráter do brasileiro; dissecando o relacionamento
das três raças e dando ao fato da mestiçagem uma significação inédita. Cheio de
pontos de vista originais, sugeriu entre outras coisas que o Brasil é uma
espécie de prefiguração do mundo futuro, que será marcado pela fusão inevitável
de raças e culturas.
Sobre o mesmo tópico (a sociedade colonial fundadora) é preciso
ler também Formação do
Brasil contemporâneo, Colônia (1942),
de Caio Prado Júnior, que focaliza a realidade de um ângulo mais econômico do
que cultural. É admirável, neste outro clássico, o estudo da expansão demográfica
que foi configurando o perfil do território – estudo feito com percepção de
geógrafo, que serve de base física para a análise das atividades econômicas
(regidas pelo fornecimento de gêneros requeridos pela Europa), sobre as quais
Caio Prado Júnior engasta a organização política e social, com articulação
muito coerente, que privilegia a dimensão material.
Caracterizada a sociedade colonial, o tema imediato é a
independência política, que leva a pensar em dois livros de Oliveira Lima: D. João VI no Brasil (1909) eO movimento da
Independência (1922),
sendo que o primeiro é das maiores obras da nossa historiografia. No entanto,
prefiro indicar um outro, aparentemente fora do assunto: A América Latina,
Males de origem (1905),
de Manuel Bonfim. Nele a independência é de fato o eixo, porque, depois de
analisar a brutalidade das classes dominantes, parasitas do trabalho escravo,
mostra como elas promoveram a separação política para conservar as coisas como
eram e prolongar o seu domínio. Daí (é a maior contribuição do livro) decorre o
conservadorismo, marca da política e do pensamento brasileiro, que se
multiplica insidiosamente de várias formas e impede a marcha da justiça social.
Manuel Bonfim não tinha a envergadura de Oliveira Lima, monarquista e conservador,
mas tinha pendores socialistas que lhe permitiram desmascarar o panorama da
desigualdade e da opressão no Brasil (e em toda a América Latina).
Instalada a monarquia pelos conservadores, desdobra-se o período
imperial, que faz pensar no grande clássico de Joaquim Nabuco: Um estadista do
Império(1897). No entanto, este livro gira demais em torno de um só
personagem, o pai do autor, de maneira que prefiro indicar outro que tem
inclusive a vantagem de traçar o caminho que levou à mudança de regime: Do Império à
República(1972), de Sérgio Buarque de Holanda, volume que faz parte
da História geral da
civilização brasileira, dirigida por ele. Abrangendo a fase
1868-1889, expõe o funcionamento da administração e da vida política, com os
dilemas do poder e a natureza peculiar do parlamentarismo brasileiro, regido
pela figura-chave de Pedro II.
A seguir, abre-se ante o leitor o período republicano, que tem
sido estudado sob diversos aspectos, tornando mais difícil a escolha restrita.
Mas penso que três livros são importantes no caso, inclusive como ponto de
partida para alargar as leituras.
Um tópico de grande relevo é o isolamento geográfico e cultural
que segregava boa parte das populações sertanejas, separando-as da civilização
urbana ao ponto de se poder falar em “dois Brasis”, quase alheios um ao outro.
As consequências podiam ser dramáticas, traduzindo-se em exclusão
econômico-social, com agravamento da miséria, podendo gerar a violência e o
conflito. O estudo dessa situação lamentável foi feito a propósito do
extermínio do arraial de Canudos por Euclides da Cunha n’Os sertões (1902), livro que se impôs desde a
publicação e revelou ao homem das cidades um Brasil desconhecido, que Euclides
tornou presente à consciência do leitor graças à ênfase do seu estilo e à
imaginação ardente com que acentuou os traços da realidade, lendo-a, por assim
dizer, na craveira da tragédia. Misturando observação e indignação social, ele
deu um exemplo duradouro de estudo que não evita as avaliações morais e abre
caminho para as reivindicações políticas.
Da Proclamação da República até 1930 nas zonas adiantadas, e
praticamente até hoje em algumas mais distantes, reinou a oligarquia dos
proprietários rurais, assentada sobre a manipulação da política municipal de
acordo com as diretrizes de um governo feito para atender aos seus interesses.
A velha hipertrofia da ordem privada, de origem colonial, pesava sobre a esfera
do interesse coletivo, definindo uma sociedade de privilégio e favor que tinha
expressão nítida na atuação dos chefes políticos locais, os “coronéis”. Um
livro que se recomenda por estudar esse estado de coisas (inclusive analisando
o lado positivo da atuação dos líderes municipais, à luz do que era possível no
estado do país) éCoronelismo, enxada e voto (1949), de Vitor Nunes Leal, análise e
interpretação muito segura dos mecanismos políticos da chamada República Velha
(1889-1930).
O último tópico é decisivo para nós, hoje em dia, porque se refere
à modernização do Brasil, mediante a transferência de liderança da oligarquia
de base rural para a burguesia de base industrial, o que corresponde à
industrialização e tem como eixo a Revolução de 1930. A partir desta viu-se o
operariado assumir a iniciativa política em ritmo cada vez mais intenso (embora
tutelado em grande parte pelo governo) e o empresário vir a primeiro plano, mas
de modo especial, porque a sua ação se misturou à mentalidade e às práticas da
oligarquia. A bibliografia a respeito é vasta e engloba o problema do populismo
como mecanismo de ajustamento entre arcaísmo e modernidade. Mas já que é
preciso fazer uma escolha, opto pelo livro fundamental de Florestan Fernandes,A
revolução burguesa no Brasil (1974).
É uma obra de escrita densa e raciocínio cerrado, construída sobre o cruzamento
da dimensão histórica com os tipos sociais, para caracterizar uma nova
modalidade de liderança econômica e política.
Chegando aqui, verifico que essas sugestões sofrem a limitação das
minhas limitações. E verifico, sobretudo, a ausência grave de um tópico: o
imigrante. De fato, dei atenção aos três elementos formadores (português,
índio, negro), mas não mencionei esse grande elemento transformador,
responsável em grande parte pela inflexão que Sérgio Buarque de Holanda
denominou “americana” da nossa história contemporânea. Mas não conheço obra
geral sobre o assunto, se é que existe, e não as há sobre todos os
contingentes. Seria possível mencionar, quanto a dois deles, A aculturação dos
alemães no Brasil (1946),
de Emílio Willems; Italianos
no Brasil (1959), de
Franco Cenni, ou Do
outro lado do Atlântico (1989),
de Ângelo Trento – mas isso ultrapassaria o limite que me foi dado.
No fim de tudo, fica o remorso, não apenas por ter excluído entre
os autores do passado Oliveira Viana, Alcântara Machado, Fernando de Azevedo,
Nestor Duarte e outros, mas também por não ter podido mencionar gente mais
nova, como Raimundo Faoro, Celso Furtado, Fernando Novais, José Murilo de
Carvalho, Evaldo Cabral de Melo etc. etc. etc. etc.
---------------
Fonte: http://blogdaboitempo.com.br/2013/05/17/antonio-candido-indica-10-livros-para-conhecer-o-brasil/
Nenhum comentário:
Postar um comentário