segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Escola, Tecnologias e Docência: Desafios e Alternativas


Por Ivonaldo Leite
O significado das novas tecnologias
Contemporaneamente, temos assistido a um intenso processo de reconfiguração dos sistemas educativos, com consequências diretas sobre a prática docente no cotidiano escolar, as quais se manifestam de diversas formas, a exemplo da  delegação de novas atribuições ao professorado.
Todavia, diferente da posição (explícita e implícita) de alguns discursos oficiais, entender o referido fenômeno requer uma reflexão analítica que vá além da aparência dos fatos. Nesse sentido, um postulado fundamental a ter em conta é que a reconfiguração contemporânea dos sistemas educativos não será inteiramente compreendida se não for considerado o significado das novas tecnologias[1], e, como decorrência, o entendimento do que representa o processo de mutação cognitiva que elas desencadeiam.
Está em marcha, desde a década de 1950, um evento histórico da mesma importância da Revolução Industrial dos séculos XVII/XVII, induzindo um padrão de descontinuidade nas bases materiais da economia, da sociedade e da cultura. Trata-se da Revolução da Tecnologia da Informação. Diferente das revoluções anteriores – da Primeira e da Segunda –, a atual refere-se às tecnologias da informação, processamento e comunicação.
Ou seja, a tecnologia da informação é para a mesma o que as novas fontes de energia foram para as revoluções industriais anteriores, do motor a vapor à eletricidade, aos combustíveis fósseis e até mesmo à energia nuclear. Contudo, o que a caracteriza não é a centralidade de conhecimento e informação, mas a aplicação desses conhecimentos e dessa informação para a geração de conhecimentos e de dispositivos de processamento da comunicação, gerando um ciclo de realimentação cumulativo entre inovação e seu uso.
Pode-se dizer que os usos das novas tecnologias de telecomunicações nas últimas décadas passaram por três fases diferentes[2]: a automação de tarefas, as experiências de usos e a reconfiguração das aplicações. Nas duas primeiras, o progresso da inovação tecnológica baseou-se no aprender usando. Na terceira fase, os usuários aprenderam a tecnologia fazendo, o que acabou resultando na reformatação das redes e na descoberta de novas aplicações.
O ciclo de realimentação entre a introdução de uma nova tecnologia, dos seus usos e dos seus desenvolvimentos em novos domínios torna-se muito mais rápido no novo paradigma tecnológico. Consequentemente, a difusão da tecnologia amplifica o seu poder de forma infinita, à medida que os usuários se apropriam dela e a redefinem. As novas tecnologias da informação não são simplesmente ferramentas a serem aplicadas, mas processos a serem desenvolvidos. Desta forma, os usuários podem assumir a gestão da tecnologia, como acontece no caso da internet.

Novas tecnologias, escola e socialização: redefinições
No contexto educacional, os efeitos das novas tecnologias, de modo mais direto, traduzem-se de duas formas: 1) por via da reestruturação produtiva, de onde decorre um conjunto de demandas do mercado de trabalho pleiteando que as escolas formem mão-de-obra apta à referida realidade, com isto significando dizer que a força laboral deve ser portadora de habilidades flexíveis, para, assim, ser propensa ao desempenho das mais diversas tarefas, onde o trabalho em equipe é uma dimensão central;  2) através da introdução de novas modalidades de ação educativa, onde a educação a distância, os programas offline de aprendizagem por computador, os cursos online, as ferramentas em rede de pesquisa e os ambientes online de partilha de experiências são exemplos paradigmáticos.
Daí emerge um processo de mutação cognitiva que, se não for devidamente apreendido, pode trazer consideráveis percalços para o contexto educacional.
Por exemplo, parece, hoje, cada vez mais desprovido de sentido conceber  a educação formal como a única instância gestora de conhecimento e ministrante de aprendizagem. Tendo em perspectiva que a relação entre os alunos (principalmente os dos meios populares) e o saber não é algo unilateral (monopólio do sistema escolar sobre os estudantes, centrado apenas no ensinar), é pertinente, portanto, admitir que há que se prestar uma atenção acrescida aos contextos educativos informais e não-formais, pois aí são criados e re-significados diversos saberes que circulam envolvendo a escola, agindo sobre ela, mas não interagindo com os seus propósitos. Este processo de mutação cognitiva encontra-se intimamente vinculado às noções de socialização primária e de socialização secundária, tendo implicações diretas sobre elas e sobre a escola. 
                        O âmbito da socialização primária, como sabemos, é o âmbito familiar, onde supostamente são transmitidos valores, normas de conduta e de coesão social. Entretanto, várias evidências empíricas, tanto nos países centrais como nos não-centrais, têm posto em causa o desempenho de tais atributos da socialização primária, por exemplo: a desestruturação familiar (por razões econômicas e também não-econômicas), a monoparentalidade, a escassez do tempo de relação doméstica e de convivialidades densas no lar.
Como decorrência disso, ou seja, com a redução da dimensão afetiva na transmissão de conhecimentos e de valores, assim como a perda de identificação com o mundo apresentado pelos adultos, configura-se um grave déficit de socialização primária das crianças e dos jovens, com a consequente perda de referências, relativismo de valores, ameaça à coesão e solidariedade socais.
 No vácuo deixado pela socialização primária, tem entrado em cena agentes da socialização secundária[3], oriundos das “velhas” e das novas tecnologias, como os meios de comunicação de massa e, agora, as redes sociais, substituindo os dispositivos e os contextos próprios daquela. Desse modo, ocorre aqui um fenômeno singular: por um lado, crianças e jovens antecipam o seu desenvolvimento cognitivo, obtendo conhecimentos que supostamente seriam alcançados mais tarde, na socialização secundária, na educação formal; por outro lado, são carentes de relações sócio-afetivas, da valoração típica da socialização primária.
Com efeito, dada a relativa falência da socialização primária, os seus atributos têm sido delegados à escola. É assim que se têm multiplicado os apelos para que, ao fim e ao cabo, ela assuma os afetos e as funções maternais e parentais, produza a interiorização das normas básicas do viver em sociedade e promova a aceitação dos dispositivos de legitimação e de adoção dos valores essenciais à vida social, para além de, claro, desempenhar o seu papel específico, isto é, as funções de instrução, ensino e socialização secundária.
Se formos mais adiante por essa via analítica, chegaremos aos principais problemas do cotidiano escolar contemporâneo: os jovens vão para a escola receber lições que deveriam ter recebido em casa (socialização primária); a escola exerce atributos cognitivos e de socialização secundária que não lhes são novidades, pois já tiveram acesso aos mesmos através, por exemplo, dos meios de comunicação de massa e das novas tecnologias. Como resultado, jovens e escola se encontram para um “diálogo” em linguagens diferentes.
Dessa forma, não é incomum que a escola e os alunos tenham momentos juntos,  mas, durante estes, convivam com mundos diferentes: a primeira procurando mecanismos para desempenhar o seu papel, por vezes depositando uma confiança ilimitada em dispositivos gestionários e burocráticos; os segundos, dentro e fora da escola, construindo um universo à parte do mundo escolar, erigindo relações de sociabilidade que estruturam uma cultural juvenil com padrões cognitivos distintos dos padrões escolares.
Possivelmente, portanto, só considerando devidamente o aludido processo de mutação cognitiva, associado com os fatores que lhe são correlatos, poder-se-á entender e enfrentar as questões, como a indisciplina, que têm marcado o cotidiano escolar nos dias atuais.

A escola hoje: um novo perfil de professor
Como inferência analítica do exposto anteriormente, é possível assinalar que, na escola hoje, emerge um novo perfil de professor, em face dos desafios educacionais contemporâneos. Podem ser referidas, dentre outras, três características desse novo perfil.
Uma primeira a ser destacada é a formação multidimensional e reflexiva do professor, ou seja, ele deve ser portador de um conjunto amplo de dispositivos cognitivos, não se fechando, portanto, numa área específica do conhecimento, mas deve, sim, dotar-se de instrumentos teórico-práticos que o capacitem para o diálogo inter/multidisciplinar/transdisciplinar, exercitando, ao mesmo tempo, a crítica e a autocrítica, que, em última instância, vem a ser uma manifestação do pensar reflexivo. 
                   Uma segunda característica a referir diz respeito à interculturalidade necessária ao agir profissional do professor. Isto é, aqui o que está em causa é a necessidade de se ter em conta uma política da diferença, de respeito a todas as diversidades humanas e de superação dos preconceitos, sejam eles quais forem. Como se sabe, a escola é um microcosmo da sociedade, e portanto um local onde as diferenças étnicas, culturais, de gênero, físicas, etc., se fazem presentes. Cabe, assim, ao docente desenvolver uma ação de inclusão baseada na comunicação, aproveitando a diversidade na sala de aula como fonte pertinente ao processo de ensino-aprendizagem. Trata-se, pois, de assumir a diversidade como um recurso útil ao processo de ensino-aprendizagem, ao invés de considerá-la um obstáculo, que logo resvala para os preconceitos.  
                    Last but not least, a terceira característica concerne à atuação do professor como indutor de relações entre a escola e a comunidade. O pressuposto aqui presente é o de que, tendo em conta que o tipo de formato que a ação escolar assume depende dos aspectos da comunidade em que ela se situa (aspectos que se fazem presentes na escola através dos alunos), e considerando que a vida extra-escolar dos estudantes é determinante para os seus percursos escolares, coloca-se como imprescindível que se leve a efeito uma articulação entre a escola e a comunidade, onde o professor, pela proximidade que supostamente tem com os alunos, é uma peça central, cabendo-lhe alimentar um diálogo marcado por momentos de sociabilidade.
Enfim, a escola, conectada com a movimentação comunitária, através do trabalho docente, vem a ser parte do desenvolvimento das próprias comunidades locais, assim como o desenvolvimento das comunidades locais é condição para o êxito da própria escola.


Notas





[1] De modo mais detido, tratei do referido assunto em:  LEITE, Ivonaldo. Novas tecnologias, trabalho e educação: desorganizando o consenso. Lisboa: Dinossauro Edições, 2002.

[2]  Uma das abordagens mais consistentes, analiticamente, a respeito de tal temática pode ser encontrada em:  CASTELLS, Manuel. The information age: Economy, society and culture, vol.I: The rise of the network society. Cambridge MA., Oxford UK: Blackwell Publishers, 1996.

[3] As redefinições contemporâneas em torno da socialização têm forte consequências para o processo de ensino e aprendizagem, mas elas não têm recebido a devida atenção. Cf. LEITE, Ivonaldo. A reconfiguração dos sistemas educativos e a formação docente: demandas e alternativas. In: Ciência Hoje, Porto/Portugal, set/2006. 

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