domingo, 28 de setembro de 2014

Emoção e sociabilidade em rede: sedução e sentimentos no Facebook

Tenho sustentado que a análise social tem consideráveis ferramentas teórico-metodológicas para a abordagem da chamada 'sociedade em rede', colocando racionalidade onde pulula impressionismo. Claro, trata-se de uma démarche que requer criatividade teórica e disciplina intelectual, recorrendo-se, por vezes, também, a incursões metodológicas pouco habituais. O trabalho que aí abaixo reproduzo é um exemplo do esforço de se captar as novas configurações da sociabilidade em rede. O seu título original é 'Emoção e sociabilidade em rede: uma pequena introdução sobre a sedução dos sentimentos no Facebook', e a autoria é dos professores Jonatas Ferreira (UFPE) e Cristina Petersen Cypriano (PUC Minas). 



Jonatas Ferreira[1]
Cristina Petersen Cypriano[2]
            
A capacidade de mobilização e de articulação social e política das redes de sociabilidade baseadas na Internet - tais como aquelas abrigadas pelo Facebook ou Twitter - tem despertado o interesse de diversos atores, analistas e cientistas sociais. Um exemplo disto é a atenção que este tipo de media vem despertando entre os políticos profissionais. Em 16 de outubro de 2013, o ex-presidente Lula conclamava os seus seguidores no Facebook a atuar neste novo espaço técnico da seguinte forma: “Vamos utilizar essa ferramenta fantástica que é a internet para falar do nosso projeto, mostrar o que já fizemos e, claro, ouvir críticas, sugestões e questionamentos”[3]. Comentando o livro de Manuel Castells Redes de Indignação e Esperança, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso analisava a importância da tecnologia na viabilização de protestos na Islândia, Espanha e Egito: “Por trás desses protestos está o cidadão comum informado e conectado pelas redes sociais e por toda sorte de modernas tecnologias de informação”.[4]Dada a relevância evidente deste meio sociotécnico, não admira que políticos profissionais passem a buscar o apoio de especialistas em comunicação e em redes sociais para compreender e intervir nesse novo espaço de sociabilidade. Recentemente, por exemplo, Dilma Rousseff convidou ao Palácio do Planalto Jeferson Monteiro, o criador da personagem paródica Dilma Bolada, de enorme popularidade nas redes sociais baseadas na Internet. Com 1,4 milhão de seguidores no Facebook e 26 mil no Twitter, a personagem de Monteiro pode se dar ao luxo de obter espaço na agenda da Presidente da República, precisamente no momento em que seu autor havia decidido descontinuar as postagens envolvendo sua criação.
O forte prestígio da personagem Dilma Bolada não pode, entretanto, ser avaliado apenas segundo os critérios da elevada audiência que ela obteve. Em um contexto, como é o das redes sociais on-line, onde todos os integrantes administram suas próprias páginas – pessoais ou institucionais – e se colocam como produtores de conteúdos, tanto quanto como consumidores e divulgadores, “o valor é cada vez mais calculado através da abrangência atingida por replicações, replies, menções, comentários, curtições e compartilhamentos de conteúdos”. Diferentemente do poder que se manifesta pela somatória dos seguidores, a “abrangência traduz o valor como a potência que consegue alcançar e o quanto pode mobilizar uma comunicação no interior das timelines” (Malini & Antoun, 2013, p.216). Nas comunicações em rede, os formadores de opinião se distinguem não pela contabilidade do número total de receptores, mas sim pelo cultivo da participação ativa daqueles que recebem os conteúdos postados. Sob vários aspectos, esse potencial dialógico é entendido como parte constitutiva da própria dinâmica estabelecida neste tipo de rede social. Recentemente, a propósito, os administradores do Facebook decidiram tomar medidas contra o que identificam como chamadas fraudulentas, posts de aparência sedutora, iscas (clickbaits), que, uma vez abertos, mostram conteúdo sem qualquer relação com as promessas iniciais: [5] sob uma chamada em que figura o vídeo de um terno animal de estimação, por exemplo, encontrar-se-ia uma propaganda qualquer. A identificação da fraude é possível - e este é o ponto - pela contabilização do tempo médio gasto por internauta ao abrir a chamada e pela proporção do número de comentários e compartilhamentos que esses ensejam, dada a quantidade total de acesso. A participação é sempre a atitude esperada.
Retomemos o ponto com o qual abrimos este texto. Dada sua incontestável força política e social, as mobilizações em rede também vêm ganhando uma atenção especial de um segmento das ciências sociais (ver, por exemplo, Lecomte, 2013; Dobwor, 2013; Singer, 2013). No que pese a importância desses estudos, em geral, eles compartilham de uma visão distanciada destes fenômenos, quer este afastamento seja garantido por alguma perspectiva econômica, na qual o político, o social e o cultural sempre parecem se subsumir, ou numa análise técnica que invariavelmente toma a rede como um fato dado e mesmo comparável a outros tipos de redes, como aquelas que podem ser percebidas entre insetos (a esse respeito, ver Ferreira e Fontes, 2014). Neste texto, por outro lado, procuramos recuperar um pouco dos conteúdos emocionais que forjam os “laços” e os “nós” dessas redes sociais e técnicas. Parece evidente que, a esse respeito, devemos partir de uma constatação bastante difundida entre os estudiosos da tecnologia: os engajamentos pelos quais se encadeiam as ações nas redes sociais on-line sãotecidos pela interface entre seres humanos e máquinas. Os “pontos” que compõem a intrigante topologia reticular dos movimentos coletivos via Internet “são conectadas não por laços sociais per se, mas sim por vínculos sócio-técnicos. Elas são unidas por conexões tão técnicas quanto sociais” (Lash, 2001, p. 112). Daí decorre a desconcertante impressão de que “já não se sabe ao certo se existem relações específicas o bastante para serem chamadas de ‘sociais’”, ao mesmo tempo em que “o social parece diluído por toda parte e por nenhuma em particular”, como observa Latour (2012, p.19). Isso que parece um truísmo, infelizmente, não se traduz em análises que deem conta dos dois polos que compõem o fenômeno em questão.
 Entendendo as redes sociais baseadas na Internet como fenômeno socio-técnico, nossa abordagem não está à procura de pontos de origem em algum dos componentes da interface homem-máquina. Considera, antes, que trata-se de uma especial forma de relação que atualmente muitos de nós estabelecemos com as tecnologias de informação e comunicação, uma relação na qual somos autorizados e autorizamos, somos habilitados e habilitamos, somos capacitados e capacitamos a agir de forma imprevista (Latour, 2012). A partir dessa perspectiva, nossa intenção neste pequeno texto é perceber como a emoção é um componente fundamental das próprias dinâmicas sócio-técnicas – e, ao mesmo tempo, que a emoção encontra na interface entre humanos e dispositivos os ingredientes fundamentais que possibilitam e estimulam sua expressão. Tomaremos aqui o caso do Facebook como objeto de nossa análise e argumentaremos que a emoção é ali uma pressuposição do próprio dispositivo oferecido e, acreditamos, um dos motivos de seu enorme sucesso, de seu incontestável apelo. Lançado em 2004, por Mark Zuckerberg, o Facebook conta hoje com mais de 1 bilhão de usuários ativos – que utilizam a rede social ao menos uma vez ao mês –, dos quais mais de 60 milhões estão no Brasil.[6]
No que diz respeito à mediação tecnológica do Facebook, é notável o fomento à composição de coletivos de sociabilidade, considerando que esta é uma forma específica de relação social que pode ser definida, com Simmel (1983), pela mutualidade no cultivo do laço social per se, pela troca de conteúdos de cunho pessoal, pelo aspecto lúdico das interações, pelo prazer recíproco da sociação - embora finalidades instrumentais possam interferir neste processo, elas não são condições de partida para os usuários do Facebook. Assim, o site oferece um serviço que investe na sociabilidade entre seus frequentadores, na medida em que incentiva algum tipo de reciprocidade na disponibilização de conteúdos provenientes de suas vidas pessoais e promove interações em torno desses conteúdos. O fato de a emoção ser um ingrediente e uma moeda de troca importante em redes sociais como o Facebook – que nos faz pensar em uma espécie de economia da dádiva em que laços são reforçados entre aqueles capazes de mostrar uma sensibilidade afim - talvez possa ser apreciado em primeiro lugar pelo fato de os laços que a compõem serem caracterizados como laços de “amizade”. Ainda assim, não é incomum que essa reciprocidade seja rompida unilateralmente de forma a preservar de alguma forma o laço. Isso ocorre, por exemplo, quando deixamos de seguir um determinado amigo, ou deixamos de ser seguidos por ele, por atitudes julgadas inconvenientes: postar exageradamente, por vezes sobre um único assunto, mostrar opiniões ou valores considerados inadequados, etc. À importância da continuidade deste “laço fraco”, o Facebook está atento: é possível poupar um “amigo” ou “amiga” da triste verdade de que ele ou ela se tornou um chato.
Para alguns, aquilo que no Facebook “nós designamos convencionalmente pelo nome de ‘amizade’ é um tipo de ligação inteiramente específica dos ambientes sociais da Web” (Casilli, 2010: 270). Isso significaria aceitar que, embora possua a mesma nomeclatura de um vínculo social off-line, trata-se de um tipo de laço que não existe senão nas dinâmicas típicas do mundo on-line. Ao tratar de fenômenos técnicos desta natureza, todavia, é sempre importante analisar a ambiguidade dos meios que estes dão lugar, o processo de contaminação mútua que existe por exemplo entre dinâmicas off e on-line. Por isso mesmo, é importante analisar o que comumente entendemos por amizade e ver como esse valor é negociado nas redes sociais. Na língua inglesa “essa amizade assistida por computador toma o nome de friending. O neologismo designa o ato de ‘amigar’ ou de ‘tornar-se amigo de’ alguém” (Casilli, 2010: 271). Não é de se admirar que essa forma de ligação assuma o estatuto de uma ação, uma vez que abarca o movimento voluntário e persistente de tecer e manter laçoson-line, sejam quais forem as motivações dos indivíduos. O convite explícito para celebrar um laço de amizade no mundo virtual – que só tem paralelo no universo infantil – dá bem uma ideia de quão significativa é a ideia de ação neste âmbito. Esse exercício de tornar-se amigo, invariavelmente, está condicionado às possibilidades e às restrições dos sistemas informáticos.
A importância do uso do termo amizade para o sucesso do Facebook está associado, de maneira intuitiva, à ideia de que se trata de um ambiente onde sefica à vontade na medida em que seus frequentadores são convidados a se assegurar da qualidade dos laços que são ali formados. A sugestão é a de que estão todos entre amigos, senão, entre amigos de amigos[7]. A escolha do nome amizade - em torno do qual parecem se constituir as dinâmicas desta rede social - é sintomática da possibilidade que certos laços sociais têm de ser mais fortes que outros.[8] Quando indagado sobre as vantagens de fazer parte desta rede, não é incomum escutar de seus usuários que a possibilidade de manter contato com pessoas distantes espacialmente ou com amigos antigos dos quais se perdeu o contato estaria entre as mais atraentes. Assim, recursos disponíveis nesta plataforma, tais como “cutucar” parecem reforçar a pretensão de intimidade e emotividade sobre os quais os laços seriam fortalecidos. Entretanto, além da postagem de conteúdos, acreditamos que as ações de “curtir”, ou seja, de manifestar apreço, admiração, ou identidade com respeito a um conteúdo, e de compartilhar esses mesmos conteúdos estejam entre as ações que mais fortalecem os laços dentro da rede.[9]
É necessário aqui afirmar que o processo de reconhecimento e obtenção de prestígio na rede são fundamentais para que as próprias redes aumentem o número de seus nós. O Facebook estimula essa atitude propondo recorrentemente novas amizades, indicando amigos de amigos que talvez o internauta gostasse de incorporar à sua rede de contatos, ou melhor, de amigos. O motivo aqui é simples: a frequência das visitas, a intensidade das interações e seu alcance são os ingredientes a partir dos quais o Facebook obtém retorno financeiro e se dispõe a manter sua plataforma gratuita. Não é segredo que, nesse site, as ligações entre os usuários são os valiosos produtos da sociabilidade. O que o indivíduo curte e compartilha serve de base para que os algoritmos que orientam o Facebook possam oferecer produtos, serviços, sob a forma de propaganda[10]. O que você gosta, aquilo com o que você se identifica, que gostaria de compartilhar, são bases mediante as quais os anunciantes do Facebook podem propor negócios, serviços. Ademais, uma base de dados com informações tão valiosas acerca de gostos, preferências, susceptibilidades afetivas, convicções políticas e morais tem valor financeiro incalculável.
Não é de admirar que um tom afetivo, por vezes mesmo acalorado, circule e se propague, em certas ocasiões de modo furioso, nesta rede social. As opiniões, certezas associadas a esses afetos passam a ser um elemento fundamental na consolidação de laços ou em seu rompimento. Opiniões políticas intoleráveis podem ser objetos de avisos do tipo: “lamento informar, mas todas as pessoas que comungam com o valor x, a opinião y, que considero absurdas, serão excluídas, bloqueadas de minhas redes de contatos”. Esse tipo de anúncio, algo impessoal, reestabelece a diferença básica que existe entre amigo e contato. Além do ato de curtir ou compartilhar, as mensagens que são trocadas quando alguém se sente particularmente tocado por um conteúdo também são importantes no estabelecimento desta dinâmica. Os selfies, ou fotos de situações da vida cotidiana, postados recebem mensagens de incentivo ou expressão de afeto que variam de uma sonora risada em internetês (“hahahaha!” ou “kakakakaka|, carinhas sorridentes ou que distribuem beijos ou piscadelas, coraçõezinhos rubros) são um recurso bastante difundido, mas também comentários como “Linda!!!”, “Own!!”, “Adorei!”, “Que gato!” etc. etc. A própria plataforma oferece um recurso inestimável na manifestação de afetos: o lembrete do dia do aniversário de pessoas de sua rede de contatos, amigos. Há sempre ocasião para mensagens inspiradas, poéticas e respostas comovidas.
A intensidade dos afetos em rede é demonstrada sobretudo por ocasião da morte de celebridades, o que sempre envolve demonstrações emocionadas de admiradores, gente que se mostra “arrasada” diante do que consideram uma perda irreparável. “Choro desde ontem pela morte desse gênio que foi Rob Williams”, “tanta gente ruim continua vivo, por que Ariano Suassuna tinha de morrer?” A compartilha desses sentimentos é algo fundamental à manutenção, intensificação, estreitamento dos laços da rede. E, evidentemente, são passíveis de se tornar uma peça de negociação política e social. A prematura morte de Eduardo Campos constituiu-se em evento de delicada negociação de afetos no Facebook. Laços reforçaram-se, romperam-se ou se esgarçaram a partir da sensibilidade demonstrada por cada um em relação ao trágico evento: aqueles que se mostraram insensíveis à morte do candidato à presidência da República suscitaram a revolta daqueles para quem a oposição política não deveria ir tão longe. Estes, por seu turno, foram acusados pelos primeiros de postura política inconsistente, quando era o caso de serem seus adversários políticos, ou de acomodação. Rupturas de laços ocorreram, independente de afinidades políticas recentes, com base em uma impossibilidade de compartilha de um mesmo pathos.
Esse tipo de comoção que se encadeia como um rastilho pelas redes sociais do Facebook traz para o site importantes subsídios para conhecer seus usuários e a maneira como eles se ligam uns aos outros através das trocas emotivas. O contágio de emoções entre os usuários do serviço foi o tema de uma polêmica pesquisa recentemente publicada. A polêmica se deu a partir da falta de esclarecimento aos participantes da pesquisa quanto à participação deles no experimento, que consistiu basicamente na manipulação, durante uma semana, dos algorítimos que definem os conteúdos que aparecem no “feed” de notícias de cada um dos 700 mil usuários que integraram a pesquisa sem, no entanto, terem sido comunicados de que participariam. A manipulação do algoritmo se deu com base no teor positivo ou negativo das emoções associadas aos conteúdos publicados nos “feeds”, de modo que, durante a semana do experimento, metade deles recebeu apenas publicações que envolvem emoções “negativas” e a outra metade teve acesso exclusivamente ao que aparece vinculado a emoções “positivas”. Ao fim do experimento, constatou-se, entre os usuários pesquisados uma tendência à publicação e ao compartilhamento de conteúdos que vinculam emoções condizentes com aquelas às quais eles tiveram acesso. Segundo os autores, os resultados do experimento demonstram que “as emoções expressas pelos outros no Facebook influenciam nossas próprias emoções”. Eles consideram ter encontrado evidências de que essas influências emocionais processam por “contágio em larga escala via redes sociais." (Kramer et alii, 2014, p. 8789).
Considerando o forte potencial de mobilização social que se dá através dos contágios emocionais nessas redes sócio-técnicas, esperamos que esse texto se mostre contagiante e seja amplamente comentado, compartilhado e curtido. 

Nota: Todas as citações de frases encontradas nos sites de redes sociais não são literais, mas sim aproximações do que tem sido publicado nesses sites.

Referências bibliográficas
CASILLI, Antonio A. Les liasons numériques: vers une nouvelle sociabilité?Paris: Éditions Du Seuil, 2010.
CASTELLS, Manuel. Redes de Indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
DOBWOR, Monika; José SZWAKO.“Respeitável público... Performance e organização dos movimentos antes dos protestos de 2013”. Novos Cadernos CEBRAP, 2013 no. 97, novembro: 43-55.
FERREIRA, Jonatas e Breno FONTES. ­“Ágora Eletrônica: algumas reflexões teórico-metodológicas”. Estudos de Sociologia, Vol. 14, no. 2. 2014. No prelo.
GRANOVETTER, Mark S. “The strengh of weak ties”. American Journal of Sociology, 78 (6), 1973, pp. 1360-1380.
KRAMER, Adam T. I., GILLORY, Jamie E., HANCOCK, Jeffrey T. “Experimental evidence of massive-scale emotional contagion through social networks”. PNAS, Vol. 111 (29), 2014, pp. 8788-8790.
LASH, Scott. “Technological forms of life”. Theory, Culture and SocietyVol. 18 (1), 2001.
LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador: EDUFBA, Bauru: EDUSC, 2012.
LECOMTE, Romain. 2013. “Expression politique et activisme en ligne en contexte autoritaire”. Réseaux, 5, no. 181: 51-86.
MALINI, Fábio & ANTOUN, Henrique. A internet e a rua: ciberativismo e mobilização nas redes sociais. Porto Alegre: Sulina, 2013.
SIMMEL, Georg. “Sociabilidade, um exemplo de sociologia pura ou formal”, in: MORAES FILHO, Evaristo. (Org.). Georg Simmel: sociologia. São Paulo, Ed. Ática, 1983.
SINGER, André. 2013. “Brasil, junho de 2013. Classes e ideologias cruzadas”.Novos Estudos CEBRAP, novembro: 23-40.





[1] Professor associado da UFPE.
[2] Doutora em Sociologia pela UFMG, professora do IEC-Puc Minas.
[6] Estas informnações estão disponíveis emhttp://tecnologia.uol.com.br/noticias/afp/2014/02/03/facebook-em-numeros.htm. Acesso em 27/08/2014.
[7] Sugestão falaciosa, como o podem comprovar alguns escândalos de proporções nacionais e que teriam como base conteúdos destinados a amigos da rede, ou seja, o caráter público da rede é algo que é cotidianamente negligenciado.
[8] Sobre as noções de força e de fraqueza dos laços em redes socias, ver o já clássico texto de Granovetter (1973).
[9] Aqui é necessário que se diga que não pretendemos reduzir a dinâmica social no âmbito do Facebook ao que a sua arquitetura estimula – não se trata de um argumento behaviorista. Trata-se de entender quais são os pressupostos técnicos dessa arquitetura, considerando que algo como um “comportamento” neste espaço não nos interessa pelo simples motivo que não podemos abstrair as qualidades reflexivas, humanas que, evidentemente, impedem que “estimulo” corresponda a “comportamento”. Por isso mesmo, o que aqui está envolvido são ações de reconhecimento do outro e de si mesmo naquilo que é expresso ao outro, ações de atribuição e de busca de prestígio pelo que se julga serem boas ideias, emoções virtuosas. Este mútuo reconhecimento, fundado na emoção, como tivemos oportunidade de propor acima, pode ser entendido como uma moeda de troca.
[10] http://youpix.virgula.uol.com.br/redes-sociais-2/nao-curtir-coisas-facebook-pode-ser-melhor-coisa-que-voce-vai-fazer-na-vida/
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quarta-feira, 24 de setembro de 2014

O lugar de Brack Obana na História

Frustrado com o que tem representado a administração  Barack Obama para o mundo? Não deveria, segundo o lusitano Miguel Urbano Rodrigues. Por quê? Confira a resposta no texto abaixo.

Obama e suas guerras

Por Miguel Urbano Rodrigues
Assente a poeira do tempo atual, o que ficará na Historia da passagem pelo poder de Barack Obama no início do século XXI quando o fim da hegemonia dos EUA começava a ser transparente?
Creio que a imagem do homem e do estadista será muito negativa. Admito que será responsabilizado pelas gerações futuras no mundo e no seu próprio país pelo agravamento de uma estratégia imperial criminosa que empurrou a humanidade para uma crise civilizacional que ameaça a sua continuidade.
Mas nestes dias, nos países da União Europeia, a imagem de um Obama inexistente foi tão profundamente assimilada por milhões de pessoas, de Lisboa a Budapeste, de Londres a Varsóvia, que é muito difícil persuadir a maioria de que o atual presidente dos EUA é o oposto do cidadão exemplar a quem a Academia de Oslo atribuiu o Prémio Nobel da Paz.
Uma campanha massacrante, de âmbito mundial, fabricou e difundiu a imagem de um Obama disposto a mudar quase tudo nos EUA e a promover a paz no mundo, um político de matizes revolucionários.
O senador Barack Obama chamou a atenção ainda jovem por ser um homem muito inteligente, ambicioso, grande orador. Candidato pelo Partido Democrata soube, em plena crise, capitalizar o descontentamento da maioria do eleitorado, com um discurso progressista que sintetizou as aspirações dos mais pobres, da classe media, duramente atingida pelo escândalo dos subprimes, das minorias raciais. Atacou Wall Street, responsabilizou os bancos e as grandes transnacionais, pelos sofrimentos das vítimas da engrenagem. A sua famosa frase yes, we can (sim, nós podemos) as admoestações ao Congresso, as denúncias da corrupção na burocracia de Washington, as críticas às guerras do Iraque e do Afeganistão, a promessa de uma política diferente, orientada para a Paz foram decisivas para a grande vitória eleitoral que alcançou.
Uma onda de esperança varreu os EUA.
O fato de ser negro contribuiu também para que os intelectuais progressistas, incluindo muitos comunistas, admitissem que o país poderia estar em vésperas de uma viragem.
Entretanto, para surpresa da maioria, a sua campanha foi generosamente financiada pelo grande capital. Wall Street conhecia o homem; as suas críticas e promessas e a sua oratória populista não impressionaram a Finança.
Os senhores do capital agiram com inteligência.
Instalado na Casa Branca, Obama esqueceu, engavetou ou violou a maioria dos compromissos assumidos.
Não encerrou o Presidio de Guantánamo, manteve legislação repressiva de Bush, promulgou uma lei que na prática autoriza a tortura e outra sobre a prisão de suspeitos de ligação com presumíveis terroristas (diploma que no dizer de Michel Chossudovsky confere ao Estado um caráter totalitário), e chamou para o governo e cargos da sua confiança políticos e economistas intimamente ligados à engrenagem de Wall Street.
UMA POLITICA EXTERNA IMPERIAL E AGRESSIVA
A nomeação de Hillary Clinton para o Departamento de Estado foi o prólogo de uma política internacional profundamente reacionária.
A esposa do ex-presidente conseguiu o que se tinha por impossível. Imprimiu à sua ação um estilo mais agressivo e belicista do que o de Condoleeza Rice.
Obama apoiou a sua defesa do sionismo, as suas críticas desabridas à China, a sua indisfarçável hostilidade ao mundo islâmico.
Uma das primeiras decisões estratégicas do Presidente foi o envio de mais de 100 000 militares para o Afeganistão. Não hesitou em apresentar como prioridade a vitória na guerra de agressão ali iniciada por Bush filho. O resultado negou o projeto. Posteriormente, o fracasso de sucessivas ofensivas – dois comandantes regionais foram demitidos – desembocou no compromisso de retirar todas as tropas estadunidenses ate final de 2014. Mas, afinal, vão ali permanecer muitos milhares de soldados.
Hoje, as forças que combatem no país os ocupantes norte-americanos e a OTAN controlam quase todo o território com exceção de Kâbul e das principais cidades.
Quanto à produção de opio aumentou muitíssimo desde a invasão em 2001.
A agressão à Líbia, também concretizada invocando a defesa dos direitos humanos e o amor pela liberdade e a democracia, foi na realidade uma guerra imperial, preparada com antecedência com características genocidas. De acordo com o projeto, viabilizado pelo Conselho de Segurança da ONU, o seu desfecho após a destruição do país e o assassínio de Muamar Khadafi seria um “regime democrático”, tutelado por Washington, pelos aliados da União Europeia e pelas grandes empresas petrolíferas.
Mas as coisas não correram de acordo com o desejo de Obama.
Os governos fantoches instalados pelos ocupantes perderam rapidamente o controlo do país. A situação existente é anárquica, com diferentes milícias envolvidas em combates fratricidas. A desordem atingiu tais proporções que uma dessas milícias tribais ocupou em Trípoli edifícios da Embaixada dos EUA cujo pessoal diplomático havia prudentemente abandonado o país.
No Iraque, uma campanha estrondosa anunciou ao mundo que, cumpridos os objetivos da invasão do pais, e instalado em Bagdá ´”um regime democrático estável”, os EUA, honrando uma promessa, tinham retirado, finalmente todas as tropas de combate.
Outra mentira grosseira. Dezenas de milhares de mercenários, controlados por empresas mafiosas dos EUA, substituíram as forças do Exercito.
A situação em Bagdá e nas províncias é caótica. As últimas eleições, como as anteriores, foram uma farsa. Mas a recusa do primeiro-ministro Nouri Al Malik em abandonar o poder gerou uma crise, marcada por cenas próprias de um teatro de absurdo que só findou com um ultimato de Washington. A violência é endémica em todo o território.
Na Síria, Obama tentou repetir, recorrendo a um método diferente, a “operação” desestabilizadora que na Líbia tinha por objetivo o derrubamento do regime.
A fase inicial foi uma campanha mídiática montada a nível mundial para demonstrar que o país estava submetido a uma feroz ditadura. O presidente Bashar al Assad foi demonizado, apresentado como um monstro responsável por crimes contra a humanidade.
A segunda fase foi o desencadeamento de uma “rebelião”. Grupos de mercenários, armados e financiados pelos EUA, por Israel e pela Turquia, atacaram o exército, destruíram instalações públicas, ocuparam cidades e aldeias.
Crimes cometidos pelos “rebeldes” foram atribuídos pelos governantes e pela mídia dos EUA e da União Europeia às forças armadas sírias.
Obama chegou a anunciar num discurso inflamado, que tomara a decisão de bombardear a Síria para instalar no país a democracia e as liberdades.
Mas o contexto diferia do líbio. A grande maioria do povo sírio e o seu exército infligiram severas derrotas às organizações terroristas, tuteladas por Washington. E a firmeza da Rússia forçou Obama a recuar.
Essa derrota política coincidiu com outra. O governo norte-americano, que semanas antes multiplicava as ameaças ao Irã, e aprovava pacotes de sanções por Teerã não ceder às suas exigências, mudou subitamente de tática e discurso e decidiu abrir negociações com o governo do presidente Hassan Rohani.
OBAMA E O CAOS UCRANIANO
Numa demonstração de irresponsabilidade, Barack Obama tomou iniciativas na frente europeia que agravaram as relações com a Rússia, já muito tensas, no momento em que no Oriente Médio acumulava derrotas.
O cenário escolhido para o confronto foi à Ucrânia. Não soube extrair lições do fracasso georgiano.
Tudo começou no início de Fevereiro com manifestações em Kiev tendentes a desestabilizar o país. Na Praça Maidan grupos paramilitares, financiados pela CIA provocaram distúrbios, assaltaram ministérios, destruíram edifícios públicos, entraram em choques armados com a polícia.
Washington atingiu o objetivo. O presidente legítimo, Viktor Ianukovich – aliás, um aventureiro corrupto, tal como a ex. primeira ministro Timochenka, da ultradireita – foi deposto a 24 de Fevereiro.
Uma Junta de políticos fascistas, criada ad hoc, assumiu interinamente o governo do país.
Os EUA festejaram, e eleições promovidas a correr, levaram à Presidência o multimilionário Petro Poroshenko, conhecido pela alcunha de “rei do chocolate”.
A farsa democrática foi recebida com reservas por alguns dos aliados europeus dos EUA.
Ficou claro que o Parlamento e a Junta são controlados por partidos de extrema-direita, alguns dos quais exibem com orgulho símbolos nazistas. A caça aos comunistas foi oficializada.
Ucranianos que lutaram nas SS hitlerianos contra a União Soviética são agora guindados a título póstumo a heróis nacionais.
No leste do país, em províncias onde a maioria da população é russófona, a resistência encontrada pelo governo fantoche de Kiev foi imediata e firme. Exigiam garantias de uma ampla autonomia.
Poroshenko não soube extrair dos acontecimentos da Crimeia, as conclusões que se impunham.
Com o aval de Washington e confiando em promessas de uma ajuda financeira generosa, garantiu que iria submeter os “rebeldes” em poucos dias.
A bravata foi logo desmentida. As ofensivas do exército de Kiev, apoiadas por brigadas de voluntários que se assumem como nazistas e anti russos, foram derrotadas.
A própria imprensa dos EUA reconhece que a deserção de solados e oficiais é maciça.
No momento em que escrevo – início de Setembro – a situação militar, politica, econômica e social é catastrófica.
Os insistentes apelos para ajuda militar e o pedido de ingresso na ORAN, formulado pela Junta, expressam bem o desespero da camarilha instalada no poder.
As declarações do presidente dos EUA e do secretário de Estado John Kerry – um republicano muito conservador e de mediocridade inocultável – deixam transparecer a confusão existente em Washington.
Obama esclareceu que no momento não tem uma estratégia definida para a região.
Não pode confessar que todas as opções são negativas.
Os EUA reforçaram a presença militar nas repúblicas Bálticas e na Polônia e vão instalar cinco novas bases militares nos países do Leste. Simultaneamente, a União Europeia escolheu para presidente do seu Conselho de Ministros, como sucessor do belga Rompuy, o polaco Donald Tusk, um anti russo assumido que na juventude militou no Solidarnosc de Lech Walesa.
Mas as arrogantes ameaças de Obama à Rússia são na realidade tiros de pólvora seca. As sanções prejudicam, sobretudo a União Europeia.
O presidente sabe, aliás, que as acusações de participação de unidades militares russas nas províncias separatistas ucranianas são falsas.
Os generais do Pentágono consideram impensável o envolvimento dos EUA na Ucrânia numa guerra convencional contra a Rússia. E o recurso a armas nucleares, mesmo táticas, seria provavelmente o prólogo de uma tragédia planetária.
A desorientação que se instalou na Casa Branca, no Pentágono e no Departamento de Estado justifica-se.
No auge da crise da Ucrânia, a situação existente no Iraque e na Síria agravou-se perigosamente.
A proclamação do Califado em territórios do Crescente fértil por uma seita jihadista que se auto intitula Estado Islamico-EI desencadeou o pânico em Washington e nas capitais europeias. Surgindo repentinamente como vendaval de violência, essa organização de jihadistas fanáticos, liderada por Abu Bakr Al Baghadi (que afirma ser descendente do profeta Maomé) ocupou em poucas semanas uma área do Nordeste da Síria e quase um terço do Iraque. Infligiu derrotas demolidoras ao exército iraquiano e invadiu territórios do Curdistão autónomo, aliado dos EUA.
A situação, tal como se apresenta, lembra uma tragicomédia.
Reagindo ao SOS lançado pelo novo primeiro ministro de Bagdá, Haida al Abadi, homem de confiança da Casa Branca, os EUA decidiram realizar bombardeamentos cirúrgicos, alegando que agiam para evitar o extermínio dos Yazidis, uma minoria de religião pré-islâmica (serão no máximo uns 300 000) com rituais do mazdeísmo persa.
Omitiram a mídia que os Yazidis foram bombardeados em 2007 em circunstâncias mal esclarecidas e que na época o governo dos EUA ignorou o assunto.
Obama informou, entretanto, que os EUA não enviarão tropas terrestres para a região.
Os monstruosos atos de barbárie praticados pelo Estado Islâmico – já degolaram dois jornalistas americanos – provocaram a justa indignação de milhões de muçulmanos em todo o mundo. Os governos do Irã e da Síria tornaram pública a sua disponibilidade para combater os criminosos do fantasmático Califado.
A posição dos EUA, enfrentando uma situação de pesadelo, inimaginável há poucos meses, é, portanto, mais do que incómoda, dilemática. Todas as possíveis opções, – repito, – são negativas.
Não podem aceitar a ajuda militar da Síria, do Irã e de outros Estados inimigos que definem como terroristas e formam aquilo a que chamam “o eixo do mal”.
Não podem também reenviar tropas da US Army para o Iraque depois de terem utilizado a sua retirada do país como prova do cumprimento da sua missão “democrática e civilizadora”.
O que fazer então?
Barack Obama não tem resposta para a pergunta.
Acredito que os historiadores que identificam na Historia a mãe das ciências chegarão no futuro à conclusão de que o Obama foi o mais nocivo, hipócrita e perigoso para a humanidade de todos os Presidentes do país.
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Vila Nova de Gaia, Portugal,  Setembro de 2014 



segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Viagens do tempo

Por Leont Etiel

Desce um crepúsculo amargo
Noites de viagens intermináveis
Tristeza
Melancólica saudade
Que espera um sinal para ir embora
Apressa-se a chegada de outubro
Principia a Primavera
Clarear de um tempo como sombra
Espera-se um sinal
Para se abandonar o silêncio abrigado para lá da memória
Rubras árvores chamam
às viagens do tempo, dos anos
Buscando acender o desejo de viver



Escola, Tecnologias e Docência: Desafios e Alternativas


Por Ivonaldo Leite
O significado das novas tecnologias
Contemporaneamente, temos assistido a um intenso processo de reconfiguração dos sistemas educativos, com consequências diretas sobre a prática docente no cotidiano escolar, as quais se manifestam de diversas formas, a exemplo da  delegação de novas atribuições ao professorado.
Todavia, diferente da posição (explícita e implícita) de alguns discursos oficiais, entender o referido fenômeno requer uma reflexão analítica que vá além da aparência dos fatos. Nesse sentido, um postulado fundamental a ter em conta é que a reconfiguração contemporânea dos sistemas educativos não será inteiramente compreendida se não for considerado o significado das novas tecnologias[1], e, como decorrência, o entendimento do que representa o processo de mutação cognitiva que elas desencadeiam.
Está em marcha, desde a década de 1950, um evento histórico da mesma importância da Revolução Industrial dos séculos XVII/XVII, induzindo um padrão de descontinuidade nas bases materiais da economia, da sociedade e da cultura. Trata-se da Revolução da Tecnologia da Informação. Diferente das revoluções anteriores – da Primeira e da Segunda –, a atual refere-se às tecnologias da informação, processamento e comunicação.
Ou seja, a tecnologia da informação é para a mesma o que as novas fontes de energia foram para as revoluções industriais anteriores, do motor a vapor à eletricidade, aos combustíveis fósseis e até mesmo à energia nuclear. Contudo, o que a caracteriza não é a centralidade de conhecimento e informação, mas a aplicação desses conhecimentos e dessa informação para a geração de conhecimentos e de dispositivos de processamento da comunicação, gerando um ciclo de realimentação cumulativo entre inovação e seu uso.
Pode-se dizer que os usos das novas tecnologias de telecomunicações nas últimas décadas passaram por três fases diferentes[2]: a automação de tarefas, as experiências de usos e a reconfiguração das aplicações. Nas duas primeiras, o progresso da inovação tecnológica baseou-se no aprender usando. Na terceira fase, os usuários aprenderam a tecnologia fazendo, o que acabou resultando na reformatação das redes e na descoberta de novas aplicações.
O ciclo de realimentação entre a introdução de uma nova tecnologia, dos seus usos e dos seus desenvolvimentos em novos domínios torna-se muito mais rápido no novo paradigma tecnológico. Consequentemente, a difusão da tecnologia amplifica o seu poder de forma infinita, à medida que os usuários se apropriam dela e a redefinem. As novas tecnologias da informação não são simplesmente ferramentas a serem aplicadas, mas processos a serem desenvolvidos. Desta forma, os usuários podem assumir a gestão da tecnologia, como acontece no caso da internet.

Novas tecnologias, escola e socialização: redefinições
No contexto educacional, os efeitos das novas tecnologias, de modo mais direto, traduzem-se de duas formas: 1) por via da reestruturação produtiva, de onde decorre um conjunto de demandas do mercado de trabalho pleiteando que as escolas formem mão-de-obra apta à referida realidade, com isto significando dizer que a força laboral deve ser portadora de habilidades flexíveis, para, assim, ser propensa ao desempenho das mais diversas tarefas, onde o trabalho em equipe é uma dimensão central;  2) através da introdução de novas modalidades de ação educativa, onde a educação a distância, os programas offline de aprendizagem por computador, os cursos online, as ferramentas em rede de pesquisa e os ambientes online de partilha de experiências são exemplos paradigmáticos.
Daí emerge um processo de mutação cognitiva que, se não for devidamente apreendido, pode trazer consideráveis percalços para o contexto educacional.
Por exemplo, parece, hoje, cada vez mais desprovido de sentido conceber  a educação formal como a única instância gestora de conhecimento e ministrante de aprendizagem. Tendo em perspectiva que a relação entre os alunos (principalmente os dos meios populares) e o saber não é algo unilateral (monopólio do sistema escolar sobre os estudantes, centrado apenas no ensinar), é pertinente, portanto, admitir que há que se prestar uma atenção acrescida aos contextos educativos informais e não-formais, pois aí são criados e re-significados diversos saberes que circulam envolvendo a escola, agindo sobre ela, mas não interagindo com os seus propósitos. Este processo de mutação cognitiva encontra-se intimamente vinculado às noções de socialização primária e de socialização secundária, tendo implicações diretas sobre elas e sobre a escola. 
                        O âmbito da socialização primária, como sabemos, é o âmbito familiar, onde supostamente são transmitidos valores, normas de conduta e de coesão social. Entretanto, várias evidências empíricas, tanto nos países centrais como nos não-centrais, têm posto em causa o desempenho de tais atributos da socialização primária, por exemplo: a desestruturação familiar (por razões econômicas e também não-econômicas), a monoparentalidade, a escassez do tempo de relação doméstica e de convivialidades densas no lar.
Como decorrência disso, ou seja, com a redução da dimensão afetiva na transmissão de conhecimentos e de valores, assim como a perda de identificação com o mundo apresentado pelos adultos, configura-se um grave déficit de socialização primária das crianças e dos jovens, com a consequente perda de referências, relativismo de valores, ameaça à coesão e solidariedade socais.
 No vácuo deixado pela socialização primária, tem entrado em cena agentes da socialização secundária[3], oriundos das “velhas” e das novas tecnologias, como os meios de comunicação de massa e, agora, as redes sociais, substituindo os dispositivos e os contextos próprios daquela. Desse modo, ocorre aqui um fenômeno singular: por um lado, crianças e jovens antecipam o seu desenvolvimento cognitivo, obtendo conhecimentos que supostamente seriam alcançados mais tarde, na socialização secundária, na educação formal; por outro lado, são carentes de relações sócio-afetivas, da valoração típica da socialização primária.
Com efeito, dada a relativa falência da socialização primária, os seus atributos têm sido delegados à escola. É assim que se têm multiplicado os apelos para que, ao fim e ao cabo, ela assuma os afetos e as funções maternais e parentais, produza a interiorização das normas básicas do viver em sociedade e promova a aceitação dos dispositivos de legitimação e de adoção dos valores essenciais à vida social, para além de, claro, desempenhar o seu papel específico, isto é, as funções de instrução, ensino e socialização secundária.
Se formos mais adiante por essa via analítica, chegaremos aos principais problemas do cotidiano escolar contemporâneo: os jovens vão para a escola receber lições que deveriam ter recebido em casa (socialização primária); a escola exerce atributos cognitivos e de socialização secundária que não lhes são novidades, pois já tiveram acesso aos mesmos através, por exemplo, dos meios de comunicação de massa e das novas tecnologias. Como resultado, jovens e escola se encontram para um “diálogo” em linguagens diferentes.
Dessa forma, não é incomum que a escola e os alunos tenham momentos juntos,  mas, durante estes, convivam com mundos diferentes: a primeira procurando mecanismos para desempenhar o seu papel, por vezes depositando uma confiança ilimitada em dispositivos gestionários e burocráticos; os segundos, dentro e fora da escola, construindo um universo à parte do mundo escolar, erigindo relações de sociabilidade que estruturam uma cultural juvenil com padrões cognitivos distintos dos padrões escolares.
Possivelmente, portanto, só considerando devidamente o aludido processo de mutação cognitiva, associado com os fatores que lhe são correlatos, poder-se-á entender e enfrentar as questões, como a indisciplina, que têm marcado o cotidiano escolar nos dias atuais.

A escola hoje: um novo perfil de professor
Como inferência analítica do exposto anteriormente, é possível assinalar que, na escola hoje, emerge um novo perfil de professor, em face dos desafios educacionais contemporâneos. Podem ser referidas, dentre outras, três características desse novo perfil.
Uma primeira a ser destacada é a formação multidimensional e reflexiva do professor, ou seja, ele deve ser portador de um conjunto amplo de dispositivos cognitivos, não se fechando, portanto, numa área específica do conhecimento, mas deve, sim, dotar-se de instrumentos teórico-práticos que o capacitem para o diálogo inter/multidisciplinar/transdisciplinar, exercitando, ao mesmo tempo, a crítica e a autocrítica, que, em última instância, vem a ser uma manifestação do pensar reflexivo. 
                   Uma segunda característica a referir diz respeito à interculturalidade necessária ao agir profissional do professor. Isto é, aqui o que está em causa é a necessidade de se ter em conta uma política da diferença, de respeito a todas as diversidades humanas e de superação dos preconceitos, sejam eles quais forem. Como se sabe, a escola é um microcosmo da sociedade, e portanto um local onde as diferenças étnicas, culturais, de gênero, físicas, etc., se fazem presentes. Cabe, assim, ao docente desenvolver uma ação de inclusão baseada na comunicação, aproveitando a diversidade na sala de aula como fonte pertinente ao processo de ensino-aprendizagem. Trata-se, pois, de assumir a diversidade como um recurso útil ao processo de ensino-aprendizagem, ao invés de considerá-la um obstáculo, que logo resvala para os preconceitos.  
                    Last but not least, a terceira característica concerne à atuação do professor como indutor de relações entre a escola e a comunidade. O pressuposto aqui presente é o de que, tendo em conta que o tipo de formato que a ação escolar assume depende dos aspectos da comunidade em que ela se situa (aspectos que se fazem presentes na escola através dos alunos), e considerando que a vida extra-escolar dos estudantes é determinante para os seus percursos escolares, coloca-se como imprescindível que se leve a efeito uma articulação entre a escola e a comunidade, onde o professor, pela proximidade que supostamente tem com os alunos, é uma peça central, cabendo-lhe alimentar um diálogo marcado por momentos de sociabilidade.
Enfim, a escola, conectada com a movimentação comunitária, através do trabalho docente, vem a ser parte do desenvolvimento das próprias comunidades locais, assim como o desenvolvimento das comunidades locais é condição para o êxito da própria escola.


Notas





[1] De modo mais detido, tratei do referido assunto em:  LEITE, Ivonaldo. Novas tecnologias, trabalho e educação: desorganizando o consenso. Lisboa: Dinossauro Edições, 2002.

[2]  Uma das abordagens mais consistentes, analiticamente, a respeito de tal temática pode ser encontrada em:  CASTELLS, Manuel. The information age: Economy, society and culture, vol.I: The rise of the network society. Cambridge MA., Oxford UK: Blackwell Publishers, 1996.

[3] As redefinições contemporâneas em torno da socialização têm forte consequências para o processo de ensino e aprendizagem, mas elas não têm recebido a devida atenção. Cf. LEITE, Ivonaldo. A reconfiguração dos sistemas educativos e a formação docente: demandas e alternativas. In: Ciência Hoje, Porto/Portugal, set/2006.